MarioSabino

O meu complexo de vira-lata

07.06.19

O escritor Jean Cocteau disse certa vez que os italianos eram franceses de bom humor. Depois de conviver durante anos com franceses, constatei que Cocteau estava certo e que os franceses são italianos de mau humor. Ou seja, poderiam formar um só povo com os vizinhos transalpinos. Na verdade, a única diferença entre ambos é que os italianos não escondem as suas mazelas. Gritam sobre a corrupção que os assola e autoflagelam-se como se vivessem no pior país do mundo. Mais: não mentem nas estatísticas que lhes são desfavoráveis. Os franceses, ao contrário, tentam ocultar tudo que é ruim. E mentem nas estatísticas que, se espelhassem fielmente a realidade, mostrariam que eles não são, assim, uma Alemanha.

Na verdade, os políticos franceses são tão corruptos quanto os italianos, com as exceções de praxe. E as máfias marselhesa e corsa não ficam atrás das originais peninsulares — mas são tratadas quase como se fossem parte de um folclore inevitável. No dia a dia dos cidadãos, eles também vivem dando jeitinho para burlar a legalidade. Em Paris, pequeno exemplo, quase todos os prestadores de serviços embolsam em espécie, no “bláck”, como dizem, para evitar pagar impostos — o que é difícil de recriminar, dada a carga fiscal escorchante que se tem na França. Como não dá para esconder tudo o tempo todo, os escândalos de corrupção que explodem por lá são abordados como exceções, não como sistêmicos, o exato contrário do que ocorre na Itália. O ex-presidente Nicolas Sarkozy pode ir para a cadeia, porque recebeu pelo menos 5 milhões de euros da Líbia de Muamar Kadafi, para financiar a sua campanha eleitoral de 2007. Dinheiro transportado em malas. Mas a questão é apenas Sarkozy, como se fosse um caso isoladíssimo. Não é. Financiamento ilegal de campanha — e desvio de dinheiro público — é um crime recorrente na França. Ninguém até agora explicou a contento como o filho do ex-ministro socialista Laurent Fabius comprou um apartamento de 285 metros quadrados, em Paris, por 7 milhões de euros, sem que tivesse renda justificável para a aquisição. O caso de vez em quando volta à imprensa, mas… É um caso isolado, claro, parce que la grandeur de la France, vous savez

Não estou aqui desancando os franceses porque acho o assunto especialmente interessante. Estou apenas buscando, como brasileiro, diminuir o meu complexo de vira-lata na comparação com eles. Nessa operação psíquica, Patrick Balkany, prefeito de Levallois-Perret, ocupa um lugar especial. Do mesmo partido de Sarkozy, ele ocupa o cargo desde 2001. Os eleitores o adoram. Ganham presentes de aniversário de Balkany, comprados com dinheiro público, e cada bebê nascido na cidade recebe um enxovalzinho da prefeitura. Balkany também diverte os cidadãos que comparecem a audiências públicas. Ele brinda a plateia humilhando os adversários com piadas grosseiras. Em 2012, quando era deputado na Assembleia Nacional (na França, estranhamente, um político pode ser parlamentar e prefeito ao mesmo tempo), Balkany e colegas seus não contiveram os seus ímpetos atávicos ao recepcionar a então ministra Cécile Duflot, que apareceu com um vestido esfuziante para expor um projeto aos deputados. O fato chamou ainda mais a atenção porque ocorreu às vésperas de os deputados votarem uma lei contra assédio sexual.

Balkany é assombrosamente despudorado, o que é ótimo para a minha operação psíquica de vira-lata brasileiro. Ele está às voltas com investigações sobre o seu patrimônio, mas não se abala. Os 13 milhões de euros que acumulou e não declarou? Fruto de trabalho duro como empresário. A casa suntuosa na ilha de Saint-Martin, no Caribe, comprada por meio de uma offshore e avaliada em 3,2 mihões de euros? Primeiro não era dele. Depois, a sua mulher, a fidelíssima Isabelle, disse que foi comprada por ela com dinheiro de herança. A outra casona em Saint-Martin, vendida pelo casal por 3,5 milhões de euros? Era só alugada. A casa de campo em Giverny, colocada à venda por 6 milhões de euros? Não valia tanto assim no momento da compra pelo equivalente a 150 mil euros. O triplex no Guarujá? Oops, errei. Quando não há saída, Balkany, descendente de judeus do Leste Europeu, saca da carta do antissemitismo francês. Tradição é tradição.

Nesta semana, Balkany compareceu a um tribunal para dirimir algumas dúvidas: a quem pertence a mansão em Marrakech, no Marrocos, adquirida via uma offshore, para variar, e muito frequentada pelo prefeito? Metade do preço foi mesmo pago pelo empresário saudita Mohamed Al Jaber, em troca de vantagens imobiliárias obtidas em Levallois-Perret?

Indagado, Balkany foi mais Balkany do nunca: afirmou que aceitou frequentar a mansão, como se fosse dele, porque o braço-direito de Mohamed Al Jaber lhe havia dito que o empresário saudita sofria risco de vida, por causa das dívidas colossais contraídas junto ao governo da Arábia Saudita. A mansão era para lhe servir de refúgio secreto. O juiz do tribunal não segurou o sarcasmo, como relata o jornal Le Monde:

“Então, se bem entendi, o senhor teve participação na proteção física do Sr. Al Jaber, ameaçado no seu próprio país?”

“Não tenho essa pretensão. Mas o seu braço-direito me que disse que, em pouco tempo, ele talvez não pudesse mais entrar na Arábia Saudita. O senhor sabe, todos os príncipes do Golfo têm uma casa em Marrakech porque não sabem o que o futuro lhes reserva”, respondeu Balkany.

Mohamed Al Jaber, presente à sessão, foi irônico:

“Eu gostaria de agradecer ao Sr. Balkany por ter comprado uma casa em Marrakech para mim, onde eu podia me refugiar e graças à qual ainda estou vivo, mesmo que há vinte anos eu não vá ao Marrocos! Nego tudo o que ele diz. É uma loucura. Não faz nenhum sentido.”

O meu complexo de vira-lata foi encolhendo à medida que eu lia a reprodução das falas. Ao final, perguntaram a Balkany por que a offshore oficialmente proprietária da mansão chama-se Dar Gyucy. De acordo com os investigadores, trata-se de uma contração dos nomes dos dois netos de Balkany, Gyula e Lucie.

Resposta de Balkany:

“Não poderia ser um anglicismo em relação ao suco de frutas, “juicy”? Porque lá (no Marrocos), o senhor sabe que há laranja para todo lado. De qualquer forma, não fui eu (que deu o nome) nem minha mulher. Não sei. Sem dúvida foi alguém que achou bonitinho.”

Adoro Balkany, assim como os eleitores de Levallois-Perret. Adoro Balkany porque ele é Gyucy como o Brasil.

Não tem jeito, não vou me livrar nunca do viralatismo. Me engana que eu gosto, francesada.

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  1. estive na França por mais de 10 dias, percorri de Paris a Nice de carro. Percebi diversas semelhanças entre nossas culturas... falta de policiamento, preços abusivos, infrações de trânsito, desrespeito com a mulher do próximo, machismo e muito mais.

  2. Como disse De Gaule se a França parasse de receber a taxa africana, que as ex colônias pagam por terem se emancipado, e são bilhões ; seria um país de terceira categoria.

  3. eu já conhecia o "decadance avec elegance" , não sei se escrevi certo .. mas assim como as francesas não tomam banho e exalam perfume frances, conseguem usar a mesma roupa uma semana inteira, agora podemos dizer que há sim corrupção com charme e savoir faire .. pena que o nosso lado italiano não nos permita suportar a lama que derramam sobre os brasileiros sem diminuir nossa autoestima ..

  4. Precisa ser divulgado.. tendo estudado e morado fora do pais.. em vários outros.. acho compreensível esse "complexo de vira-latas" que nos foi imputado e docilmente aceito -- é só rever nossas origens.. mas ao fim e ao cabo, "C'est tout la même merde!!"

  5. Texto delicioso! Meu viralatismo revigorado me lembra que mesmo com todas essas semelhanças, ainda se vive muito melhor na França que nas terras tupiniquins...

  6. Bom dia Mário. Não sofra! A sociedade pós moderna é vira-lata. Não volte pra França. Pelo menos no Brasil pode ir tranquilo a jogos de futebol com o teu filho. Abraço.

  7. Ótimo artigo, Mario. Na mesma linha do tema e também para ajudar, peça a algum amigo seu alemão para lhe contar sobre as obras monumentais da Alemanha. Somente 2 exemplos seria suficientes: Edificio da Filarmonica de Hamburg e Construção da nova Estação Ferroviária de Stuttgart. Só saber desses 2 casos, nós brasileiros ficaríamos mais calmos e com menor complexo de vira lata também.

  8. Me sentiria melhor se isso fosse mudar alguma coisa por aqui. A mim não interessa se França tem políticos corruptos, isso é problema deles. Não tenho complexo pelo fato políticos corruptos daqui serem muito piores, tenho é muita raiva desses FDP.

    1. Renata não sofra. a "vira-latice" é um fenômeno pós-moderno!

  9. Pois é, com esta matéria lembrei-me da famosa frase quando descreviam Budapest, com seus boulevards lembrando Paris... com a vantagem de não ter parisienses por lá.

  10. Um texto primoroso, como sempre, mas tenho dúvidas se as semelhanças entre italianos e franceses são tão grandes, como salientam Cocteau e Sabino, mesmo porque, as diferenças regionais entre os italianos são imensas, associadas a pp unificação tardia do país.

  11. Sillvia Excelente seu texto e, como habitualmente, aplaudido e apreciado pelos leitores de Crusoé, que continuam cobrando do Diogo Mainardi maior empenho na escolha dos temas e no tom da abordagem... Afinal a qualidade de sua coluna semanal na antiga Veja deve ter motivado a maioria dos assinantes a abraçar a Crusoé, como eu. Esse reencontro parece a cada semana mais distante...

  12. Ele teria melhor argumentação se dissesse que o imóvel foi financiado pelo Bancoop, mas como este faliu, ele ficou com o apartamento de graça.

    1. quero tornar sem efeito o comentario acima. Era destinado a outro texto. O Mário merece esta auto correção.

    1. ...mas jamais irá assumir! Até sofrer novamente a Noite de São Bartolomeu versão islâmica.

  13. Quase me sinto melhor por saber que a corrupção sistemica nao é privilégio nosso, mas é lamentavel porque todos esses milhões surrupiados seja em que país for, carregam o ônus social enorme onde pessoas honestas trabalham e pagam essa conta. Sobre franceses serem itliianos de mau-humor, tenho que concodar. Nao deixa de ser engraçada a comparação. Brasileiros que convivem ou conviveram com ambos conseguem entender.

  14. A França é mais "honesta" do que o Brasil, segundo o site Transparência Internacional.... A corrupção é mensurável e o site pretende medi-la .... Usa pesquisas e deve ter uma margem de erro... Entediante....

  15. Por que será que as colunas do Mario estão cada vez melhores e as do Diogo cada vez mais preguiçosas e desonestas (sobretudo quando tratam de sua obsessão por Olavo de Carvalho)

  16. Por ofício, residi na França por longos anos. Quando sentia saudades do Brasil, eu visitava a Itália (qualquer grande cidade). A bagunça era a mesma mas o espírito do povo era melhor. Outro detalhe: não era necessário explicar o óbvio duas vezes para os italianos. Mais um: uma vez travado um contato de amizade com um italiano, ele nunca mais cruzava por você sem lhe cumprimentar. Já o francês agia como nunca lhe tivesse visto na vida dele, ignorando.

  17. O texto é sempre interessante e esclarecedor, com pitadas de humor. Quanto ao complexo canino discordo: Em se tratando de corrupção somos Filas Cabeçudos e ninguém tasca!

  18. será que a turma do luladrão ensinou através de "palestras" o mundo inteiro? dá prá pensar, tanta coisa parecida... sempre pensei que o pt fazia a máfia parecer jardim da infância.

  19. Ao menos roubam com estilo. É mansão em Sant Martin, casa de campo em Giverny, apartamento em Paris... comparando com sítio em Atibaia, triplex minha casa minha vida no Guarujá e demais tosqueiras.

  20. Nossos viralatas não são península res muito menos transalpinos ou marroquinos. Ficamos com, ao seu tempo, malufismos, lulismos ou os palacetes bolsonaristas de Angra. Somos multiculturalistas raiz, acho que não seremos teocráticos islâmicos....rsrs

  21. Ah Sabino! Suas cronicas são mesmo uma ilha- de qualidade e bom gosto - neste mar poluido da mídia brasileira. Lembram os anos dourados de Rubem Braga, Sabino, Paulo Mendes Campos...

    1. A Igreja Católica perdoa assassinos, estupradores, pedófilos e genocidas, e os manda para o Céu! Nenhum católico precisa ser bom, se houver um padre a seu lado, na hora da morte! Um bandido como o Lula, já deve ter os seus graves e mortais pecados perdoados por algum bispo comunista da CNBB. Vai direto para o paraíso dos mancomunados com o clero vermelho! É desta ética cínica e criminosa que estamos falando!

    2. A Igreja católica novamente sendo culpabilizada pelas mazelas do mundo, Sr.DAlmeida? Me parece que desde o século XIX o ocidente resolveu escantear a Igreja e construir uma nova sociedade... Isto que estamos assistindo é resultado de nossas escolhas individuais e coletivas. Chega de apontar o dedo para a Igreja. Ela, hoje, fala somente para os crentes. Na França as Igrejas são vazias... Portanto a hipocrisia e a corrupção estão nas entranhas humanistas. Mais honestidade, por favor.

    3. Ah, a igreja! Suas torturas, seus roubos, suas mortes, suas mentiras...

    4. A formação católica não é hipócrita. As pessoas são. O hipócrita que se diz católico mas rouba (7o mandamento) e dá falso testemunho (8o mandamento) está em pecado grave.

  22. Texto sem reparos. Genial! Notadamente pelas pitadas de humor e sarcasmo, bem adequados à pena inteligente e bem letrada do articulista. Apenas quem morou na França (como eu) sabe como os franceses são mentirosos, arrogantes, oportunistas e larápios. Parabéns Sabino, por desvendar o mito de honestidade dos antigos gauleses. Suponho que um grande farsante que morou por lá muito tempo e chegou a presidência do Brasil (FHC), tenha adquirido PhD em matéria de dissimulação e mentira.

    1. Morei em Paris e conheço os franceses, particularmente os parisinos. Agora moro em Lisboa e estou conhecendo os lisboetas. Minha esposa é professora e está a perceber que a qualidade do ensino aqui varia como no Brasil. Lá temos ilhas de excelência em educação e saúde que nada deixam a desejar às européias. Quanto ao vira-lata observo que as raças puras costumam ser limitadas e em geral doentes. Vira-latas são mais criativos e resistentes. E alegres. Somos nós. Viva!

  23. Existem Lulas às dúzias em qualquer lugar do planeta. Mas esse fato não o torna menos desprezível ou menos culpado. Aguardo ansiosamente o momento em que ficará claro para o mundo que tipo de pessoa se passou, por tanto tempo, como “o salvador da pátria “, o “ cara” e outros epítetos menos votados. Um dia a máscara vai cair definitivamente.

  24. Esse prefeito mente com uma cara de pau que lembra muito certo ex-presidente do Brasil que está preso em Curitiba, babacas do PT! Mas o nome do prefeito é emblemático: vindo do Leste europeu, ele está cumprindo à risca sua estratégia de promover a Balkanyzação da França, dado, mais dia, menos dia, que prefeitos de Paris costumam virar primeiros-ministros.

    1. Meus parabéns Sabino pelo excelente texto! Culto, inteligente, sarcástico e talentoso. Eu já começava a desconfiar que você estaria sofrendo de algum distúrbio mental nos últimos tempos, mas folgo em saber que era apenas efeito de “más companhias”... Parabéns pela cura, não do complexo de vira latas, posto que esse todos nós temos, mas pela volta do jornalista e escritor de grande talento!...

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