MarioSabino

O efeito estranho do coronavírus

20.03.20

Estou sozinho no meu autoconfinamento. Home office. Milhões de pessoas mundo afora estão sozinhas como eu. Como serão os próximos dias, ninguém sabe sobre si próprio, o quadro é apenas geral no seu drama. A única certeza é de que eles, os dias, deverão compor um longo prazo para solitários ou aparentemente não. Lá fora, os barulhos da cidade diminuem a cada dia, prenunciando mais solidões. Com os silêncios que gradativamente se instalam, a imagem que me vem à cabeça é a da Morte divertindo-se enquanto ceifa vidas com a sua gadanha— o clichê do esqueleto com um sorriso no lugar da boca que nunca houve. Quem enviou o Anjo do Abismo? Tenho uma desconfiança.

Espero o resultado, mas não importa — o novo coronavírus tem efeito estranho sobre mim. É como se fosse eu o agente patogênico e não ele. Talvez tenha a ver com a minha solidão, mas me sinto isolado numa caixa hermética, de vidro, sob observação contínua. Sob observação da Natureza, mesmo que distante neste cupinzeiro de concreto no qual vivo. A Natureza que inverteu os papéis e me faz acreditar que nós, a humanidade, é que somos a peste a ser evitada, a ser contida, a ser exterminada. Neste apartamento vazio, sou parte do todo. Enfim, parte.

Na Idade Média e nos primórdios da Idade Moderna, acreditava-se que as pestes eram castigo divino, de um Deus colérico que decidira punir os pecadores. As pestes, evidentemente, eram consequência das condições insalubres que propiciavam a propagação de bactérias, principalmente. Um microscópio rudimentar permitiu que se descobrisse a existência de bactérias, no século XVII; um microscópio eletrônico propiciou a descoberta dos vírus, na década de 1930. Os vírus são seres alienígenas na essência: partículas de proteína que precisam instalar-se em células alheias para reproduzir o seu próprio material genético. Bactérias podem ser boas, tanto que as temos aos trilhões no corpo; vírus não são bons, com exceção daqueles que matam bactérias ruins, os bacteriófagos. As células preferidas dos coronavírus, velhos ou novos, são os pulmões.

Metade do mundo está confinada ou em vias de confinar-se porque, ao que tudo indica, um chinês comeu um tipo de tamanduá contagiado por um morcego infectado com o novo coronavírus. Alguns chineses também comem morcegos, como soubemos por meio daquele vídeo da sopa que viralizou, com o perdão do trocadilho. Explica-se: morcegos praticamente não envelhecem, tanto que um adulto velho é semelhante a um jovem. São capazes de conviver saudavelmente com os vírus mais mortais, inclusive o Ebola. A pele de um morcego regenera-se de cortes profundos sem deixar cicatrizes. E a força deles é descomunal: único mamífero que voa, o morcego não tem os ossos ocos das aves. Alguns chineses, portanto, comem morcegos porque acham que toda essa força lhes será repassada. Pois é.

Ninguém sabe muita coisa sobre o novo coronavírus, mas pesquisadores americanos, em parceria com colegas franceses, trabalham incessantemente para descobrir uma forma de impedir que as nossas células pulmonares abram caminho para que o novo coronavírus entre nelas. Neste momento, fechar a porta das células parece ser a forma mais promissora de enfrentar o inimigo — e a descoberta de um antiviral eficaz, qualquer que seja a estratégia empregada, não impede que se tenha uma vacina daqui a relativamente pouco tempo. É desses abnegados crentes na Ciência que dependemos todos.

O pouco que sei sobre bactérias, vírus e morcegos é suficiente para demonstrar que não sou um homem com mentalidade medieval, que enxerga castigo divino nas pestes. Ainda assim, resta o efeito estranho que me causa o novo coronavírus — a de que ele é instrumento do Anjo do Abismo, que está a serviço da Natureza. O serviço é a destruição dos verdadeiros agentes patogênicos: nós, humanos.

Do ponto de vista da Natureza, se é que podemos dizer que ela tem um, quem lhe faz mal é o homem, não os vírus. Imagens de satélite mostram que o céu da Itália está menos poluído por causa da quase total paralisação da atividade industrial e dos transportes movidos a derivados de petróleo. A água dos canais de Veneza, como pode constatar o meu amigo Diogo, está ficando transparente, sem o óleo de tantos barcos que lá navegam habitualmente. Na Paris deserta, os passarinhos se fazem ouvir, relatam os cronistas. Você até pode achar que o aquecimento global não é causado pelo homem, mas não há como negar as evidências de que tudo melhorou, em curto espaço de tempo, sempre do ponto de vista da Natureza.

Não me tomem por ecochato. Tento aqui ser filosófico. A humanidade não será exterminada pelo novo coronavírus. Quando esse pesadelo acabar, e tivermos enterrado todos os nossos mortos, voltaremos à rotina de acreditar piamente que somos uma espécie invencível na sua marcha de progresso. Torço pela espécie, porque pertenço a ela, afinal de contas. Mas esse efeito estranho vai perdurar em mim até o fim: o de que nós é que somos os agentes patogênicos para a Natureza — que um dia irá prevalecer sobre a doença, a humanidade. Que o faça com propósito ou indiferença, tanto faz, o Anjo do Abismo não precisa obedecer a ordens. Agora entendo, na pele, o que o inglês John Gray escreveu em Straw Dogs: 

“O Homo Sapiens é somente uma entre as diferentes espécies, e obviamente não vale a pena ser preservada. Cedo ou tarde, será extinta. Quando ela se for, a Terra se recuperará. Muito tempo depois que desaparecerem os últimos traços da humanidade, várias das espécies que tentamos destruir ainda existirão, ao lado de outras que ainda não surgiram. A Terra esquecerá a humanidade. O jogo da vida continuará.”

Volto para a minha solidão de agente patogênico, ansiando pela minha solidão rotineira. Aguentem firme.

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