MarioSabino

Grampo ilegal é sequestro

21.06.19

Tenho 35 anos de jornalismo e, apesar de os leitores serem muito mais bem informados hoje do que na época em que comecei a trabalhar, acho que continua valendo aquela máxima do escritor inglês G.K. Chesterton, de um século atrás: “Jornalismo consiste largamente em dizer ‘Lorde Jones morreu’ para pessoas que nunca souberam que Lorde Jones estava vivo”. Para quem nunca soube que G.K Chesterton esteve vivo, é dele a seguinte frase: “Democracia significa governo dos sem-instrução, enquanto aristocracia significa governo dos mal instruídos” – afirmativa plenamente verificável na sua primeira parte sempre que assistimos a uma sessão do Legislativo.

Não raro, jornalistas acham que Lorde Jones está morto, mas ele continua vivo – ou pensam que ele continua vivo, quando já morreu há muito tempo. O que prova que eles (nós) são iguais aos leitores ignaros e também tão sem instrução como quem os (nos) governa. Lembro-me de um jornalista que, na década de 1980, adentrou a redação da Folha de S. Paulo querendo saber o telefone de Ismael Nery, para fazer uma entrevista, até que alguém lhe disse que ele só poderia conversar com o pintor através de um médium, visto que Ismael Nery morrera em 1934. Deixados à solta, sem editores, os repórteres publicariam muito mais bobagens do que já publicam. Mas editores não são garantia de que pequenas besteiras não saiam publicadas. Ou até mesmo grandes mentiras, sob o manto de reportagem investigativa.

Dei toda essa volta para chegar a Glenn Greenwald. Ele se vende como jornalista, mas é um advogado que foi parar no jornalismo primeiro como colunista e, em seguida, como mero publicador de conteúdo repassado por espiões. Esfrega na cara dos outros os prêmios jornalísticos que lhe foram dados, como se isso lhe conferisse legitimidade, embora neste momento esteja à procura de jornalistas de verdade que saibam ler e organizar as supostas mensagens roubadas de Deltan Dallagnol. Parece que encontrou, segundo anunciou no Twitter (para um “jornalista investigativo”, convenhamos, ele passa horas demais nas redes sociais e dando entrevistas).

Greenwald pode se vangloriar dos seus prêmios jornalísticos, mas nunca levei a sério nenhum — americano, brasileiro ou islandês. Muito jovem, colei na porta do meu armário um artigo de Paulo Francis, recomendando que jornalistas recusassem prêmios. Não me lembro exatamente dos argumentos dele – tinha algo a ver com compactuar com o poder, ponto a que retornarei adiante –, mas sedimentei convicções suplementares ao longo do tempo. Ganhadores de prêmios jornalísticos são, em geral, escolhidos por outros jornalistas – que se esquecem de que o jornalismo é só o primeiro rascunho da história, frase atribuída a Philip Graham, ex-publisher do Washington Post, mas cuja autoria parece ser do jornalista Alan Barth. Há quem diga até que foi um terceiro jornalista a pôr a frase na boca de Philip Graham. Ou seja, se nós, jornalistas, não sabemos de qual cérebro saiu essa frase lapidar, não temos mesmo que ganhar honraria nenhuma. É mais uma prova de que somos apenas rascunhadores. Quando não são jornalistas que escolhem jornalistas, são professores de jornalismo – e, sinceramente, eles nem sequer imaginam como informar a causa da morte de Lorde Jones, se é que fazem ideia de que ele estava vivo. Além disso, dar a notícia sobre a morte de Lorde Jones pode ser bom ou não, a depender do julgamento ideológico que o júri de jornalistas ou professores de jornalismo faz a respeito do morto e, principalmente, de quem noticiou a sua morte.

O mesmo Prêmio Pulitzer que o cúmplice de hackers ganhou em 2014 foi dado em 1932 a Walter Duranty, então correspondente do New York Times em Moscou. Duranty é uma vergonha para o jornalismo: ele simplesmente escondeu os crimes do stalinismo, inclusive o genocídio pela fome perpetrado pelos soviéticos na Ucrânia. É de se perguntar se não foi justamente por ter protegido Stalin que ele ganhou o prêmio. Em 1981, Janet Cooke, do Washington Post, levou o Pulitzer por causa de uma reportagem sobre uma criança de 8 anos viciada em heroína. Era tudo mentira. Janet Cooke tinha ainda um currículo acadêmico falso. Ao final, ela teve de devolver o Pulitzer. Janet Cooke é negra, e acho que o politicamente correto vendou os olhos dos jurados – e dos editores do jornal em que publicou a sua mentira.

No Brasil, prêmios jornalísticos são patrocinados por empresas. É aqui que entra Paulo Francis. Como é que um jornalista pode receber prêmio pago por produtor de gasolina, firma de empresário desonesto ou assessorias de imprensa, sem compactuar com gente poderosa ou parecer que compactua, vá lá? Quando era redator-chefe da Veja, proibi os jornalistas da revista de concorrer a prêmios jornalísticos. Ainda mais porque o fato de a Veja participar – a velha Veja, bem entendido – emprestava credibilidade a escolhas malandras feitas por jurados mais suspeitos do que o habitual. Não posso ser muito querido mesmo pela classe, e a recíproca é verdadeira.

Também jamais permiti que publicassem, sob os meus auspícios, reportagens com grampos ilegais. Como já expliquei a quem me perguntou, uma coisa é publicar grampos legais de interesse público, provenientes de um devido processo judicial, ou documento oficial que o governo não quer divulgar. Grampo ilegal é encrenca porque você nunca pode atestar integralmente a autenticidade do que caiu nas suas mãos. Para mim, trata-se de um crime que está na mesma categoria do sequestro. Ou é para executar a pessoa grampeada ou é para cobrar resgate. Em 2005, jornalistas que trabalhavam diretamente subordinados a mim descobriram que havia uma máfia que direcionava os resultados do Campeonato Brasileiro de Futebol. Eles tiveram acesso a um grampo ilegal entregue pelo sujeito que alertara os repórteres. Na gravação, um árbitro conversava sobre o esquema. Vetei a publicação do diálogo e disse, com a concordância da editora da seção, que era preciso informar o Ministério Público e a PF sobre a existência da máfia. Eles que determinassem a abertura de um inquérito, tomassem as providências necessárias — e nos garantissem a exclusividade das investigações. Paralelamente ao trabalho das autoridades, os jornalistas realizaram as suas próprias apurações, cruzando relatos de estranhezas em partidas e placares, em colaboração com a Justiça (sim, Greenwald, é assim que jornalismo investigativo funciona). Sem cumpliciar-se com a ilegalidade, a Veja conseguiu interromper o Campeonato Brasileiro e ajudou a desbaratar a máfia que comprometia a principal competição de futebol do país.

Noticiamos que Lorde Jones estava morto sem participar do assassinato dele. Não me lembro se os jornalistas que assinaram a reportagem ganharam um prêmio (acho que foi antes de eu baixar a proibição). Nunca foi um ponto importante para mim.

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