FelipeMoura Brasil

Reforma psicológica já

07.06.19

Em 1937, no livro A personalidade neurótica do nosso tempo, a psicanalista alemã Karen Hornay descreveu atitudes ligadas à ânsia de poder:

“Outra atitude no anelo de poder é a de nunca ceder. Concordar com uma opinião ou aceitar um conselho, ainda quando julgado certos, é considerado fraqueza, e a mera ideia de incorrer nela provoca revolta. As pessoas para quem esta atitude é importante tendem a ser do contra e, só de medo de ceder, compulsivamente, adotam sempre uma opinião antagônica. A manifestação mais generalizada desta atitude é a insistência secreta do neurótico de que o mundo devia adaptar-se a ele em vez de ele adaptar-se ao mundo.”

Para Hornay, “uma das dificuldades básicas da terapêutica psicanalítica provém dessa causa”. “A razão decisiva da análise do paciente não é conseguir conhecimento ou discernimento, mas sim usar esse discernimento de modo a modificar suas atitudes. A despeito de reconhecer que uma modificação viria em seu próprio benefício, o neurótico deste tipo detesta a possibilidade de modificar-se porque para ele isso significaria uma transigência definitiva.”

Naquela época, ainda não havia televisão, muito menos internet, que dirá rede social.

Em 1973 – ou seja: 36 anos depois –, o cronista Paulo Mendes Campos apontou na revista Manchete um efeito psíquico das mudanças na comunicação:

“A supremacia da comunicação visual sobre as outras é um dado inevitável para o entendimento da psicologia coletiva de nosso tempo. Depois da fotografia, da revista de grande tiragem, do cinema, da televisão, acabamos todos condicionados pela imagem física do outro. As chamadas virtudes morais desceram ao porão. Inteligência, saber e personalidade só valem, um pouco, quando podem servir de título-legenda a uma figura atraente. (…) Do ponto de vista psíquico, a primazia do corpo retarda e deforma a integração da personalidade. (…) A juventude está fazendo tudo para desligar a tomada da alma. (…) Mas não é apenas em relação ao outro que o jovem se desliga da verdade humana: ele acaba por se desligar de si mesmo, estancando a todo custo suas mais profundas camadas de humanidade. (…) Outro resultado do culto corporal é agravar uma tendência natural do jovem eterno: o narcisismo.”

Naquela época, ainda não havia internet, muito menos rede social, que dirá Instagram.

De lá para cá, para além do culto corporal, o aumento do número e do alcance dessas plataformas reais e virtuais de exposição pessoal (mesmo que ligada a atividades profissionais, sociais, políticas e/ou intelectuais) multiplicou e banalizou o estrelato, turbinando o narcisismo do “jovem eterno” de qualquer idade, sexo, opinião ou mercado, habitante de um universo particular atualmente conhecido como “bolha”.

O espaço público foi virando Neverland. A importância exacerbada que as “estrelas” de hoje se dão (pela visibilidade conquistada em razão de características, posições ou habilidades específicas, com frequência confundidas com virtudes morais) leva à falta de cordialidade e de respeito ao outro – falta que, uma vez exposta, desperta nelas a retórica vitimista de “jovem eterno”, ou seja, de criança mimada de 20, 40, 60, 70 anos.

Abundam exemplos no esporte, nas lideranças políticas, no STF, no Twitter, na imprensa. Quando a ânsia de poder vira deslumbre, o pavor de incorrer em fraqueza com qualquer transigência se agrava; e a insistência de que o mundo devia adaptar-se à “estrela” (ou à “bolha”) ultrapassa todas as barreiras, incluindo a do ridículo.

A neurose narcisista não tem time de coração, partido, ideologia, nem pátria. Para identificar seus portadores, a despeito das bandeiras que eles empunham, é preciso despir-se do corporativismo clubístico, partidário, ideológico e patriótico que cega torcedores, militantes, ativistas e inocentes úteis para a arrogância estúpida.

Ceder à realidade ainda é a mais urgente de todas as reformas.

Felipe Moura Brasil é diretor de Jornalismo da Jovem Pan.

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