FelipeMoura Brasil

Como governos compram apoio de veículos de comunicação

31.07.20

1. A distribuição de verbas de publicidade de governos, inclusive de estatais, a veículos de comunicação tem consequências (que a maioria da população desconhece) no próprio mercado de comunicação e no debate público e eleitoral de um país, ainda mais quando é feita sem transparência, nem critério técnico, nem fiscalização.

2. Emissoras de rádio e TV, algumas até mais voltadas ao entretenimento e por isso mesmo de grande alcance, usam sua área de suposto jornalismo, ou a desenvolvem, para negociar com governos federais, estaduais e/ou municipais as verbas que seus donos desejam receber.

3. Esse tipo de empresário prefere se aproximar dos governos de turno a desenvolver um setor comercial capaz de gerar assinaturas, trazer anunciantes privados e manter a independência editorial, o que demanda planejamento e competência administrativa.

4. A área de suposto jornalismo conta com uma base de profissionais técnicos, usados para que o jornalismo pareça real: apresentadores, repórteres, produtores e operadores, bem ou mal remunerados, mas geralmente temerosos de perderem o emprego. Chamemos de equipe 1.

5. Emissoras contam também, cada vez mais, com âncoras e comentaristas atuantes em talk-shows e programas de opinião, de debate, de humor, de jogos, ou policiais, além de quadros em telejornais (onde a equipe 1 se faz mais presente). Chamemos de equipe 2.

6. Para o governo de turno, muito mais eficaz que fazer a própria propaganda pelas vozes de seus membros é ter sua propaganda terceirizada em veículos tradicionais, ainda mais se disfarçada de jornalismo ou na voz de influenciadores de outra área.

7. O empresário de rádio e TV, quando não tem contato direto com o governante, tem como interlocutor o chefe da secretaria ou do ministério de comunicação, de modo que ambos se aproximam, interessados em estabelecer uma troca de favores benéfica para a emissora e o governo.

8. Basicamente, a emissora mostra que pode fazer uma cobertura positiva ou defender o governo; e o governo mostra que pode ajudar financeiramente a emissora, pagando-lhe com dinheiro público para, oficialmente, exibir ações e campanhas da atual gestão, bem como das empresas estatais sob seu controle.

9. Nem sempre a relação começa ou transcorre em paz. A emissora insatisfeita com a verba (não) recebida pode bater mais no governo, com o propósito deliberado de obter dele (mais) verba, passando ou voltando a defendê-lo quando a consegue.

10. Na emissora, ordens pontuais para bater no governo ou defendê-lo vêm do dono, geralmente não como comunicado oficial, nem orientação geral. Ele manda membros de sua confiança, geralmente mais antigos na empresa, providenciarem ou suspenderem a exibição de matérias e/ou comentários incômodos ou elogiosos ao governo.

11. Quando a emissora consegue a verba, o dono determina a gestores de confiança a omissão de notícias incômodas ao governo, aumenta o espaço para passadores de pano e reduz (ou tira) o dos críticos. Há, também, os âncoras e comentaristas que simplesmente mudam de postura conforme o desejo do patrão, não raro expresso com todas as letras.

12. Emissoras com públicos mais escolarizados mantêm um ou dois críticos do governo (a “cota”, como se diz nos bastidores), normalmente em programas de debate, para afetar “pluralidade”. Quando o governismo excessivo gera desgaste, aumenta para três. A menos que a emissora seja nova e queira afetar um maior equilíbrio, os críticos, se são bons, costumam ser colocados fora dos picos de audiência para debater com passadores de pano, enquanto estes falam sozinhos nos horários nobres.

13. As emissoras mais dissimuladas sempre deixam, assim, uma margem para alegar, caso venha a público o recebimento de dinheiro do governo, que elas também sempre tiveram críticos do governo e que, portanto, nunca venderam apoio; mas a presença controlada de críticos é justamente uma forma de maquiar a propaganda embutida em noticiários e nas maiores, e mais ouvidas e assistidas, partes da programação.

14. Para o governo, interessam tanto a vassalagem completa de grandes emissoras populares quanto a vassalagem maquiada de emissoras influentes em outras faixas do eleitorado. O importante para o governo é garantir a legitimação de suas narrativas por meios diversos e se blindar contra a circulação de verdades inconvenientes.

15. Caso a cobertura de determinada emissora soe insatisfatória, o governo pode ameaçar cortar (ou de fato cortar) verbas e até a concessão pública da emissora, além de negar-lhe entrevistas e mobilizar sua militância para atacá-la real ou virtualmente. Também pode, sem jamais admitir, pedir cabeças de profissionais incômodos.

16. “O telefone tocou” é o jargão no mercado para o momento em que o governo reclama de algo ou alguém de uma emissora que ele possa prejudicar ou deixar de beneficiar. Há emissora que até suspende edição de telejornal depois do toque.

17. Como privilégio, o governo oferece prioridade em entrevistas com o chefe do Poder Executivo, os ministros ou secretários, e demais membros e aliados. Chefes do Executivo geralmente escolhem os programas mais amigos, onde sabem que não serão devidamente confrontados em temas sensíveis.

18. As verbas de publicidade incluem a opção de merchandising, o que significa que âncoras de emissoras beneficiadas podem ser pagos pelo governo para fazer propaganda não declarada de alguma medida do Executivo. Presidentes, em geral, preferem dar entrevistas a âncoras pagos pelo seu governo.

19. Nas emissoras que vendem apoio a governos, há profissionais mais conscientes, sobretudo na equipe 1, que lamentam a guinada publicitária, mas que precisam do salário; e há, em menor número, os que lutam internamente para fazer jornalismo, mas que geralmente acabam saindo para um veículo que faz.

20. Em emissora que vira agência de publicidade de governo, nenhum jornalista sério suporta ficar num cargo de gestão de fachada, quando o dono (não por ideais, mas manifestamente para receber dinheiro público) quer multiplicar passadores de pano e/ou omitir informações incômodas, principalmente sobre o secretário que negocia as verbas.

21. Para identificar emissoras que vendem apoio a governos, um dos truques é buscar em seus principais telejornais notícias sobre os primeiros escândalos envolvendo o eventual secretário de comunicação, na data em que foram noticiados pela imprensa de verdade. Se não há, é porque o dono determinou a omissão.

22. Na equipe 2, a tropa de passadores de pano reúne economistas, advogados e demais “especialistas” sem grandes realizações em suas áreas; profissionais aposentados em outras (da política ao esporte, passando pelo cinema); e, sempre, jornalistas decadentes de opinião, conhecidos por já terem participado de algum programa ou trabalho jornalístico no passado, geralmente como apresentadores ou repórteres.

23. O governo que compra apoio de emissoras com verbas de publicidade naturalmente quer combater grandes veículos que, bem ou mal, fazem jornalismo; de modo que o objetivo casa com o ressentimento de ex-jornalistas demitidos desses grandes veículos e demais profissionais que nunca tiveram neles o espaço que julgam merecer.

24. Emissoras financiadas pelo governo pagam altos salários a passadores de pano, que, cientes disso, capricham para serem contratados ou ganharem mais. Passar pano para o governo em emissora financiada pelo governo é altamente rentável, de modo que só picaretas e suas massas de manobra acusam de “vendidos” os que se recusam a fazê-lo.

25. Como o governo eleito conta, de saída, com o apoio da maior parte do eleitorado e, com frequência, com um núcleo inabalável de fiéis, o governismo garante um nicho de audiência à emissora e um mercado consumidor fixo a passadores de pano, que abrem cursos, lojas, revistas, opções de investimento e consultorias, voltados a esse nicho.

26. O espaço do(a) passador(a) de pano em emissoras financiadas pelo governo, portanto, passa a ser utilizado por ele(a) para angariar clientes em outros negócios. Com isso, cada um evita ao máximo desagradar seus consumidores (e potenciais eleitores, quando existe um planejamento de carreira política) com informações ou opiniões incômodas ao nicho, nem que para isso precisem alegar gripes, crises alérgicas e demais enfermidades passageiras quando o noticiário do dia complica a passagem de pano.

27. Empresários governistas de outros ramos, que financiaram a chapa e/ou apostaram no governo para obter vantagens em seus negócios, ainda se dispõem a financiar esses passadores de pano com doações e patrocínios diretos e indiretos. Eventualmente, promovem jantares com palestras para estimular os pares a fazerem o mesmo.

28. Empresários governistas também pagam altos cachês a famosos passadores de pano para “entrevistarem” o chefe do Executivo e demais membros do governo, ou os próprios empresários, em eventos empresariais. Há passadores de pano que se tornam “entrevistadores oficiais” de chefes do Executivo em eventos periódicos e pagos.

29. O oportunismo dos passadores de pano diante de variadas formas de lucro, visibilidade e poder leva invariavelmente cada um deles não somente a contorcionismos para eximir o chefe do Executivo de responsabilidade por atos nocivos, mas também a incorrer em contradições com seus próprios posicionamentos passados – estas que são percebidas e/ou expostas, atualmente nas redes sociais, por pessoas decentes e independentes, ou por adversários que também lucraram com o governo anterior.

30. Os bons princípios e valores que supostamente embasavam o repúdio à sujeira dos adversários revelam-se inexistentes quando a sujeira é do esquema de poder de turno, de modo que aqueles bons princípios e valores de fato não existem como medula moral do indivíduo, mas apenas como fonte de discursos adotados conforme a conveniência.

31. A exposição das contradições, assim como a refutação da desinformação que passadores de pano disseminam, porém, não atinge o mesmo público alcançado por eles nos horários nobres de emissoras que este público nem sequer sabe serem financiadas pelo governo. Para que atinja, é necessário que o próprio público acesse outros meios e, considerando a natureza mais longa da refutação que da mentira, despenda uma atenção maior do que a necessária para absorver as sínteses da propaganda política.

32. Quando o governo compra apoio de muitas emissoras de TV e rádio (inclusive comunitárias) de grande capilaridade e alcance – e ainda usa seus próprios canais virtuais e os da militância paga em outros cargos no estado para propagandear e disseminar o conteúdo dos passadores de pano dessas emissoras –, o dinheiro público desequilibra o debate, o processo eleitoral e a disputa democrática.

33. A sabotagem a veículos independentes, por meio de alianças estatais com empresas que monopolizam parte do mercado real ou virtual onde esses veículos operam, também pode ajudar a neutralizar o alcance da vigilância exercida, em benefício da sociedade, por jornalistas de verdade sobre o poder de turno.

34. Em nome do combate a todos os males que, real ou alegadamente, os governos anteriores geraram e legaram, uma parcela significativa da população ainda é suscetível a acreditar cegamente nos passadores de pano (sobretudo de governos populistas), a entender a desinformação como a exposição de ideias contrárias às do establishment, a exaltar como “coragem” a vassalagem ao poder, e até a defender que o governo financie seus porta-vozes com dinheiro dos pagadores de impostos para combater seus inimigos.

35. Intelectualmente, é muito mais fácil ser contra todos os declarados inimigos do governo e a favor de todas as suas decisões, atitudes e narrativas que analisar as nuances de cada situação específica com base num conjunto de princípios e valores milenares, além da experiência histórica acumulada, preservando a decência e a coerência.

36. Moralmente, o comportamento tribal e maniqueísta de passadores de pano, que contaminam o público mais fanático ou ingênuo, também exige muito menos que a força necessária para contrariar o poder, a maior parte do eleitorado e parte do próprio público do comentarista, se cativado com vigilância e críticas a governos anteriores.

37. As parcas exigências intelectuais e morais para ser passador de pano da sujeira do poder resulta na ascensão de profissionais de baixa qualidade humana a posições de destaque, nas quais afetam uma autoridade indevida. Entre eles, destacam-se aqueles com maior talento para a enganação, cujas carreiras geralmente deixam, nos bastidores do mercado, um rastro de sujeira que não chega ao conhecimento do público.

38. Tudo somado, às vezes só uma força-tarefa perseverante de combate à corrupção consegue furar a hegemonia instituída, mostrando ao povo as sujeiras do governante beneficiado pela compra estatal de mídias que as varriam para baixo do tapete.

39. Ciente disso, o governo subsequente atua para evitar esse obstáculo, sabotando o combate à corrupção ao mesmo tempo que compra o apoio de emissoras tradicionais, reduzindo assim a possibilidade de que seus podres apareçam aos olhos do eleitorado.

40. Com mandatos de quatro anos, o governo pode construir, portanto, uma máquina de propaganda dissimulada que detém muito mais força, durabilidade e tentáculos que uma campanha adversária pode enfrentar em menos de um ano de corrida eleitoral.

41. A existência da reeleição e de mecanismos publicitários estatais, que o governo de turno pode utilizar para permanecer no poder sob a impressão de ter respeitado o processo democrático, são uma combinação danosa aos cofres públicos, à saúde mental do povo e à democracia de qualquer país, agravada pela complacência dos tribunais de contas, dos ministérios públicos, dos políticos e de boa parte da própria imprensa.

42. Tão grave quanto a absoluta falta de transparência dos governos sobre os nomes das emissoras que eles beneficiam, os valores das verbas e os períodos correspondentes, bem como os critérios aplicados, é a absoluta falta de cobrança de transparência.

43. Parte dessa omissão se deve ao fato de cargos de tribunais de contas serem ocupados por indicação ou aprovação política, assim como a chefia de ministérios públicos, o que torna suas atuações mais sujeitas ao jogo do poder. Já os políticos, mesmo de oposição, temem bater de frente com emissoras influentes, que podem retaliá-los fechando espaço para entrevistas e providenciando uma cobertura negativa de sua atuação.

44. Boa parte dos veículos de comunicação que topa receber dinheiro público (O Antagonista e Crusoé não topam) evita expor publicamente esses mecanismos, seus beneficiários e os valores, seja em razão do próprio interesse, seja por corporativismo.

45. É sintomático que parte dos veículos de comunicação cobre de governos a transparência com os gastos públicos, exceto com os gastos públicos dos governos com a própria imprensa. Obviamente, trata-se de hipocrisia que vem de cima, já que os profissionais contratados não podem revelar no veículo o que os donos preferem omitir. Alguns jornais, revistas e sites, porém, publicam planilhas e dados obtidos sobre campanhas específicas, quando conseguem furar o sigilo que os governos tentam impor.

46. Governos e passadores de pano que se dizem liberais mostram sua própria hipocrisia quando atacam quem cobra transparência com os gastos públicos, assim como faz a militância quando ataca veículos que recebem ou receberam de governo adversário, omitindo que o governo que defendem também financia outros veículos amigos.

47. O ápice da hipocrisia ocorre quando uma militância ataca um veículo por receber verba de governo adversário e, depois que seu governo de estimação passa a financiar este mesmo veículo (às vezes com muito mais dinheiro público e influência editorial), ela então passa a aplaudi-lo, divulgá-lo e participar alegremente da programação.

48. Um ambiente político-cultural de tal modo degradado moralmente e reduzido a um embate de facções, onde os fins justificam os meios (e os meios incluem usar contra os adversários todos os expedientes que neles se critica), marginaliza ou até impossibilita o debate sério, honesto, racional e minucioso sobre temas de interesse público.

49. Se não quiserem “enxugar gelo”, porém, cabe a jornalistas, membros de ministérios públicos, juízes, ministros de tribunais de contas e demais profissionais que não se vendem (nem praticam atividades incompatíveis com a independência que deles se espera) expor como podem, e em todas as suas nuances, problemas permanentes, cujos efeitos nocivos são sentidos difusamente por uma população alheia a suas causas.

50. Entre um governo divulgar uma campanha de vacinação para conter uma pandemia, por exemplo, e usar as verbas de publicidade para comprar apoio de emissoras capazes de influenciar o eleitorado a seu favor, vai uma distância que só a transparência sobre o tema pode ajudar a estabelecer, regrar e fiscalizar, a despeito da gritaria de todos os interessados em manter o status quo e das carapuças que vestem espontaneamente.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO