Carlos Fernandodos santos lima

Mentem, simplesmente mentem

12.06.20

“Mentem, sobretudo, impune/mente. Não mentem tristes. Alegremente/mentem. Mentem tão nacional/mente/que acham que mentindo história afora/vão enganar a morte eterna/mente.” Ao ouvir Bolsonaro sobre a Covid, penso sempre nesse trecho do poema “A Implosão da Mentira”, do poeta Affonso Romano de Sant’Anna.

A poesia, um libelo contra as mentiras contadas na ditadura sobre o atentado do Riocentro, vem a calhar neste momento. Ao contrário daquela época, entretanto, vivenciamos não a ausência da verdade, impedida de chegar aos ouvidos da população pela censura, mas sim o seu soterramento por uma enxurrada de mentiras, agora travestidas de fake news ou pós-verdades. Ou seja, a verdade é escondida de todos pela dificuldade de separarmos tanto joio de tão pouco trigo.

Não se trata apenas de imbecis que tiveram sua voz ouvida além da mesa de botequim, tal como previsto por Umberto Eco. Trata-se agora de uma manipulação sofisticada da psicologia das multidões, para sobrepor o grito ao diálogo, a ofensa ao respeito e um discurso maniqueísta à pluralidade de pensamento. As tropas de propaganda cibernética atualizam Goebbels para a nova sociedade da informação. Assim, uma mentira compartilhada cem mil vezes torna-se verdade.

Essa questão é o núcleo de um debate necessário sobre os limites da admissão em um regime democrático, do uso sistemático da mentira em redes sociais e aplicativos de mensagem no jogo político e na governabilidade. Trata-se, enfim, da preservação de outros direitos constitucionais quando confrontados com o da liberdade de expressão nesta era digital.

Primeiramente, é necessário determinar alguns pressupostos necessários a essa discussão. O ponto inicial é o de que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, como aliás não o são nenhum dos direitos previstos constitucionalmente. Há limites claros a ela quando, por exemplo, o estado pune criminalmente a calúnia, a difamação e a injúria.

O que não se permite é a censura prévia. A todos é permitido manifestarem-se da maneira que quiserem, observando-se apenas eventual responsabilização posterior, criminal ou cível, por qualquer desbordamento dos limites da sua liberdade. Parafraseando uma velha máxima, os demais direitos constitucionais são o limite da liberdade de expressão.

Dessa forma, Alexandre de Moraes foi muito além de qualquer autorização constitucional quando determinou a censura a esta revista Crusoé no malfadado inquérito das fake news do STF. No afã de agradar Dias Toffoli, o ministro calouro resolveu atropelar a Constituição e acabou atropelado pela reação da sociedade brasileira contra a censura. Apesar das inúmeras inconstitucionalidades daquele inquérito, e que devem ser sanadas pelo pleno do STF esta semana para salvar a cara de Toffoli e Alexandre de Morais, o abuso da censura foi tamanho que só restou a Alexandre de Morais voltar atrás na decisão.

Entretanto, temos que estabelecer limites ao fenômeno das fake news. Não devemos buscar aprovar leis no afogadilho dos acontecimentos, como é comum aos nossos legisladores, criando monstrengos legais que ofendem nossa tradição jurídica. Devemos é discutir a nova realidade, pois a repressão às mentiras com base nos mecanismos tradicionais não está a impedir que os efeitos desejados pelos mentirosos alcancem a sociedade, solapando o processo democrático e o direito à saúde, a honra e à própria vida.

A pandemia atual é um bom exemplo de como as informações falsas são utilizadas para subsidiar ideologias políticas. O próprio Bolsonaro minimiza as evidências científicas contra suas convicções, preferindo fazer propaganda de um remédio com efeitos colaterais comprovados, a cloroquina, mas sem nenhum estudo cientifico que lhe dê suporte para o combate ao coronavírus, a assumir os custos de medidas tecnicamente eficazes contra a pandemia.

Fica claro que a liberdade de expressão de uma velha tia falando dos benefícios do alho ou do enxofre contra a Covid-19 não é a mesma de um presidente da República. Os efeitos de seu negacionismo contam-se em milhares de brasileiros mortos por falta de liderança do governo federal no combate à pandemia. Sua liberdade de expressão está necessariamente restringida pela responsabilidade do cargo que ocupa, e os efeitos das mentiras contadas, uma pedalada sanitária medida em vidas humanas perdidas, é suficiente para o seu impeachment.

Por outro lado, a transmissão de notícias falsas em aplicativos de mensagem, com seu espalhamento exponencial sem checagem pela população, pode levar a situações dramáticas, como em 2018, quando dois homens foram linchados pela população de uma cidade mexicana por terem sido associados falsamente ao sequestro de crianças e venda de órgãos. Esses fatos tornaram-se relativamente comuns também na Índia e servem de exemplo do potencial negativo da internet no que se refere a boatos. Se houvesse redes sociais e aplicativos de mensagem na Nova Inglaterra, no final do século XVII, teríamos milhares de mulheres queimadas por bruxaria do que apenas as 19 mortas em Salem.

A democracia também tem sido aviltada por notícias falsas. Aliás, sempre o foram, como é exemplo o falso Plano Cohen, que serviu para justificar a ditadura Vargas em 1937. Entretanto, uma democracia moderna não pode ficar à mercê de mentiras em escala industrial, disseminadas muitas vezes a partir de sites no exterior e com imensa dificuldade para serem rastreadas. Marina Silva, na sua campanha de 2018, já alertava ter sido vítima em 2014 de fake news criadas por João Santana, marqueteiro da campanha de Dilma Rousseff. Essa prática, diga-se, demonstrou-se endêmica em nossa última eleição, chegando ao ápice de seu uso pela campanha vencedora de Jair Bolsonaro.

Também uma das inovações mais infames dessa última eleição foi o uso de perfis falsos e softwares de disseminação automática de mensagens – chamados de robôs – para criarem a impressão artificial de uma maré favorável a um determinado candidato ou proposta, aproveitando-se da tendência humana de se conformar à opinião geral, também conhecida como efeito manada. Não se está aqui falando em direitos humanos, pois pessoas inexistentes ou robôs não são seres humanos, por óbvio, e não estão abrangidas pela proteção constitucional.

Fake news e pós-verdades são perniciosas sob qualquer ponto de vista, pois distorcem a verdade, polarizam a sociedade, fortalecem preconceitos e radicalizam o discurso, tornando o consenso mínimo necessário à democracia muito difícil de ser alcançado. Devemos discutir o seu combate diante de mudanças tecnológicas que tornaram o arsenal jurídico anterior obsoleto em evitar sua disseminação sem controle e em responsabilizar seus mandantes. Um bom começo é a criminalização dos perfis falsos e dos robôs quando usados para veicular mensagens que atentem contra a democracia ou tragam risco à saúde pública, à incolumidade pessoal e à honra. De outra forma, se deixarmos o atual estado de coisas sem controle, “a mentira repulsiva/ se não explode pra fora/ pra dentro explode/ implosiva”. Pobre Brasil!

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