Nem oito, nem oitenta

23.05.19

O único presidente americano conhecido pelo apelido de infância, Jimmy Carter, tomou em 1980 uma atitude radical que faria o Barão de Coubertin revirar no túmulo: tirar os EUA das Olimpíadas de Moscou, boicote justificado pela invasão soviética no Afeganistão ocorrida meses antes. A politização dos Jogos só foi maior em 1936, na famigerada versão patrocinada em Berlim por Adolf Hitler.

Nós brasileiros temos uma memória amarga dos Jogos de 1980 pela anulação de um salto do eterno campeão João do Pulo, inquestionavelmente o grande atleta da sua modalidade daquela geração, quando fomos garfados pela arbitragem soviética e perdemos o ouro que era dele e nosso por mérito, o que lembra como é difícil argumentar sobre meritocracia num regime socialista. Na cerimônia de encerramento, o famoso mascote daqueles Jogos, o ursinho Mischa, se despediu com lágrimas através de um gigantesco painel humano no estádio Olímpico de Moscou. Lágrimas de despedida para quem havia competido e uma certa melancolia e tristeza para quem assistia. A política havia superado o espírito olímpico.

Tivemos que aceitar a vergonhosa garfada de 1980 contra João do Pulo, mas os soviéticos não engoliram o boicote e retribuíram a atitude quatro anos depois, não participando da Olimpíada de 1984 disputada em Los Angeles. Foi uma edição histórica, amplamente considerada a mais bem-sucedida da Era Moderna dos Jogos e que serve até hoje de exemplo de como conduzir o modelo correto, com baixos custos de construção aliados ao financiamento privado. Os Jogos Olímpicos de 1984 geraram um lucro de mais de 250 milhões de dólares e a cidade, que usufrui dos frutos deste lucro até hoje, exibiu ao mundo um período mágico americano em que Ronald Reagan esteve no Salão Oval da Casa Branca. Gina Hemphill, a neta de Jesse Owens, o campeão que desafiou os nazistas na Olimpíada de 1936, carregou a tocha olímpica e foi ovacionada por mais de 93 mil espectadores que lotaram o Coliseu de Los Angeles. Olimpíada inesquecível, mas também imperfeita, com resultados até hoje questionados pela ausência dos atletas soviéticos, que, assim como os americanos, eram favoritos a medalhas e recordes.

A ideia do Barão de Coubertin, ao recriar os Jogos Olímpicos no final do século XIX, foi promover a paz e o congraçamento das nações com disputas em que a busca do limite humano no esporte servisse como uma maneira lúdica e positiva de canalização dos sentimentos patrióticos de cada povo. A politização do esporte e o boicote é o exato oposto de seu sonho. Os jogos deveriam servir, sempre, como uma ponte para recriar laços de tolerância, confiança e diálogo entre as nações para que busquem pacificamente superar suas diferenças em nome da paz.

Depois de ânimos acirrados numa eleição presidencial americana conturbada em 2016, Donald Trump assumiu o posto de homem mais poderoso do mundo em 20 de janeiro de 2017. Em 6 de fevereiro de 2017, exatos 16 dias após sua entrada na Casa Branca, o Partido Democrata, através de uma das representantes da Califórnia na Câmara, Maxine Waters, iniciava a agenda para um possível processo de impeachment do presidente republicano.

Quase dois anos e meio depois da eleição que apontou45º presidente americano, os democratas ainda insistena agenda de um desejado impeachment de Donald Trump enquanto medidas significativas para a sociedade americana, como rever as leis imigratórias devido à crise na fronteira sul e o inviável sistema de saúde Obamacare, são colocadas de lado para que brigas políticas continuem alimentando as manchetes dos jornais na esperança de minar a possível reeleição de Trump. Mesmo com a pulsante economia americana que apresenta números positivos como não se via desde 1969, personalidades da TV e do jornalismo americano como Joy Behar já não escondem o desejo de ver Trump fora da Casa Branca. Behar declarou recentemente em seu programa diário que é a favor do impeachment do presidente, mesmo que isso possa provocar desnecessárias crises no país, apenas pela razão de não gostar dele.

O atual clima de conflagração no Brasil, com tanta radicalização nos discursos e apostas em rupturas e na queima de pontes de diálogo, vai contra qualquer ideal de aproximação, entendimento e progresso. “Vem cá, dois dedin de prosa concêis”, diria meu pai agora, com uma infinita sabedoria mineira, ao ver tanta divisão, boicote, acusações e julgamentos apressados num momento em que o país, mais do que nunca, precisa de trégua e união, e não amizade, em torno de algumas prioridades inescapáveis como a reforma da Previdência, o pacote anticrime, a reforma tributária, a MP da liberdade econômica e a retomada do crescimento e do emprego.

Seria raso e equivocado comparar os atuais presidentes dos EUA e do Brasil como personalidades, e apesar de o sistema eleitoral americano ser bem diferente do nosso, é possível apontar algumas similaridades em ambos cenários políticos. Assim como Trump, que tem seus fiéis eleitores, Bolsonaro também angariou votos de eleitores que chamamos aqui nos EUA de “single issue voter”, ou eleitores que, apesar de não serem simpáticos a um candidato, tinham uma única – e suficiente razãoeconômica, política ou ideológica para votar naquele candidato. A maioria elege o capitão (sem trocadilhos), por um motivo, dois ou três, mas todos estão no mesmo barco. Não há como fugir.

Pouco mais de cinco meses depois da posse no nosso 38º presidente, a oposição já mostra prioridade na agenda de um desejado impeachment de Jair Bolsonaro e, por incrível que pareça, mesmo com nossos inúmeros problemas sociais e econômicos para serem urgentemente resolvidosconsegue eco e exposição por parte de muitos na imprensa. Talvez seja necessário salientar o óbvio, apesar de algumas similaridades nas rotas até a conclusão das eleições presidenciais no Brasil e nos EUA, essas semelhanças estão longe de culminar nos mesmos resultados. Não há nenhum impacto significativo na vida diária do americano se a oposição a Donald Trump continuar gritando e esperneando por um impeachment, ou que os democratas gastem 35 milhões de dólares do contribuinte para alimentar essa narrativa numa investigação que depois de dois anos não comprovou nada. O barco ianque não está afundando e não há medidas para serem aprovadas que afetem imediatamente a sobrevivência de todos.

Na política não há santos, salvadores, ungidos ou semideuses, apenas homens e mulheres imperfeitos e falhos como todos nós, que devem ser pressionados a buscarem juntos, com diálogo, sabedoria e espírito público soluções para os profundos, graves e urgentes problemas do país. O período de campanha e eleições acabou, e em vez de boicotes e garfadas, é preciso que seguremos a tocha olímpica acima das diferenças ou todos, sem exceção, perderemos. Nos EUA, uma república sólida e fundada em pilares democráticos muito bem estruturados há quase 250 anos, ainda existe muita gordura para se queimar com histerias de qualquer lado do espectro político e até aquelas vindas da imprensa. Nós não temos esse luxo no Brasil. A hora é agora. Se todos gritam “É o lobo!” todos os dias, quando o lobo de fato aparecer — e ele vai aparecer sem as urgentes aprovações das reformas — seremos todos devorados, sem exceção. Menos Pedrinho, mais Coubertin.

Depois dos grandes boicotes de 1980 e 1984 nas Olimpíadas, o mundo do esporte voltava à normalidade na bela e histórica edição de 1988 em Seul, mesmo com a ausência das delegações cubana e norte-coreana. A lição dos Jogos Olímpicos da Coreia do Sul em 88, ecoando o espírito do Barão de Cobertin, é eterna: há que se manter um espaço para diálogo, encontro e negociação sempre. O caminho do boicote, muitas vezes tentador por ser o caminho mais curto, requer menos trabalho e engajamento, mas é sempre o caminho que todos perdem. No esporte como na vida, nem oito, nem oitenta: oitenta e oito.

Ana Paula Henkel é analista de política e esportes. Jogadora de vôlei profissional, disputou quatro Olimpíadas pelo Brasil. Estuda Ciência Política na Universidade da Califórnia.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO