MarioSabino

Vai e decifra o teu enigma

30.07.21

Na semana passada, li de uma sentada o livro Lacan Ainda, de Betty Milan, no qual a autora descreve a sua vivência como paciente — ou melhor, analisanda — de Jacques Lacan, o psicanalista francês que subverteu preceitos de Sigmund Freud, não como antípoda, mas continuador. Estamos aqui entre 1973 e 1977, numa Paris que ainda respirava os ares de 1968, entre o esquerdismo e o desbundismo. 

Sou amigo de Betty desde 2006, quando ela me hospedou num apartamento contíguo ao seu, no Marais, em Paris. Betty era amiga da minha então namorada e nos convidou para ficar lá. Eu não gosto de ser hóspede de ninguém, prefiro hotéis, mas o apartamento onde ficaríamos estava vazio, então tudo bem. Foi amizade à primeira vista, inclusive porque ela continuava paulistana — à minha maneira —, apesar de morar em Paris durante a maior parte do tempo, ser viúva de francês, ter um filho francês e viver com um francês, Jean Sarzana, amigo igualmente, que havia sido diretor da Câmara do Livro da França e, poucos anos depois, se lançaria como escritor pela editora Gallimard. Explico o que é ser paulistano à minha maneira: alguns de nós guardam o sentimento de que São Paulo é o pior melhor lugar do mundo onde se pode nascer, e isso molda não apenas a relação com a cidade, mas com todas as cidades que venhamos a conhecer ou nas quais venhamos a nos estabelecer. Betty faz parte desse grupo. Só que, à diferença de mim, São Paulo é um dos seus temas.

Quando foi fazer análise em Paris, Betty estava às voltas com a sua família libanesa, que era também a pior melhor família do mundo na qual se podia nascer: conservadora nos costumes, mas que incentivara a primogênita a estudar Medicina, até então reduto masculino; acolhedora e ao mesmo tempo castradora; inserida na sociedade pelo dinheiro, mas discriminada pela origem; estabelecida num país no qual não se reconhecia culturalmente, mas onde se multiplicara. Naquele momento, a paulistana Betty encontrava-se aprisionada como “turquinha”.

A análise com Jacques Lacan foi libertadora. Graças ao psicanalista, Betty aceitou as suas origens, a sua família, o seu país — e conseguiu ser mãe e tornar-se escritora. “Quando Lacan faleceu, em 1981, coloquei como epígrafe, no obituário escrito para o jornal, um verso de Saint-John Perse (poeta francês): ‘Me chamavam de obscuro e eu habitava o clarão’. Lacan iluminou o meu caminho, possibilitando que uma descendente de imigrantes libaneses, vítima de xenofobia e autoxenofobia, pudesse se aceitar”, diz Betty.

Os escritos de Jacques Lacan são impenetráveis muitas vezes até para os iniciados, como se fossem códigos a ser decifrados num futuro distante. Na sua prática clínica, ele delegava ao analisando (não paciente), a arqueologia e reconstrução da sua própria história. A consulta dependia do “tempo lógico”, não se estendia pelos 45 ou 50 minutos de praxe, durante os quais o discurso tanto de quem se deita no divã como de quem se senta na poltrona do analista pode ser encobridor, uma vez que quase sempre se fala para não revelar e se escuta para não ouvir. Uma frase do analisando era suficiente para funcionar como “deixa” para que a sessão fosse interrompida. Era desse modo que se vencia a resistência a descobrir o germe da neurose.

Betty relata que Jacques Lacan “cortava a sessão sem explicação alguma, confiando no analisando, na sua possibilidade de descobrir sozinho a razão do corte. Incitava o outro a se analisar. Vai e volta para me dizer o que você descobriu. Vai e decifra o enigma da tua própria história. Isso explica a substituição da palavra paciente por analisando. A posição do paciente é a de quem espera. Já a do analisando é de quem está fazendo análise, como o gerúndio indica. Nesse contexto, a cura analítica tanto dependia do analista quanto do analisando e a sessão não existia sem a rua. No meu caso, sem a caminhada do número 5 da Rue de Lille (o endereço de Lacan) até a Rue de La Harpe ou, como num lapso meu, do Quartier Lacan ao Quartier Latin. Na caminhada, eu pensava no que havia sido dito e frequentemente fazia alguma descoberta que me certificava da importância do trabalho. Com o meu eureka, a autoestima aumentava e o desejo de uma nova sessão se impunha”. Revelava-se, assim, o obscuro que habitava o clarão.

Corte.

O psicanalista francês habitou o romance O Vício do Amor, publicado por mim em 2011, como personagem terrível. Eu havia lido a autobiografia escrita por uma das suas filhas, Sybille, intitulado Un Père (Um Pai), e ficara impressionado com a sua entrega. A Rue de Lille, onde Betty Milan encontrou a redenção, foi palco de uma história dramática protagonizada por Jacques Lacan, a sua mulher, Marie-Louise, e a amante do psicanalista, Sylvia. Quando ele já estava separado da mulher, a amante instalou-se no número 3 da Rue de Lille, juntamente com as suas duas filhas, Laurence e Judith — que era filha de Lacan. Marie-Louise estava grávida de oito meses quando o psicanalista comunicou-lhe que Sylvia esperava uma criança sua. Como descrevi no romance, “o anúncio colocou um ponto final à vida dupla de Jacques Lacan, fez com que Marie-Louise entrasse numa grave crise de depressão — e foi em meio à depressão causada pelo rompimento traumático que ela deu à luz Sibylle, em novembro de 1940. Em julho do ano seguinte, nasceu Judith. Em sua autobiografia, Sybille escreveu: ‘Quando eu nasci, meu pai já não estava. Eu poderia mesmo dizer que que, quando fui concebida, meu pai já estava em outro lugar, não vivia mais verdadeiramente com minha mãe. Um reencontro no campo, entre marido e mulher, quando tudo já estava terminado, está na origem do meu nascimento. Eu sou o fruto do desespero, alguns dirão do desejo, mas eu não acredito nisso’”.

A pedido de Marie-Louise, que temia ser execrada socialmente, Jacques Lacan não contou aos três filhos do seu casamento que ambos haviam se divorciado formalmente e que ele vivia com outra mulher, com a qual tivera uma filha. Sybille (e a irmã, Caroline, e o irmão, Thibaut) só viria a saber a verdade quando completou 17 anos. As circunstâncias de seus nascimentos levaram a que ela e Judith passassem a nutrir uma rivalidade feroz, que se acirrou depois da morte de Jacques Lacan, quando Judith se apossou do legado intelectual do pai, juntamente com o seu marido, Jacques-Alain Miller, discípulo do sogro.

Corte.

Os livros de Betty Milan e Sybille formam um retrato cubista de Jacques Lacan, no qual duas faces opostas convivem em complementariedade, sem contradição. O que quero dizer é que podemos ser obscuros e habitar o clarão, bem como sermos clarão em meio à nossa obscuridão, e isso também nos torna interessantes.

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