Agência Brasil

‘Roubo de conversas do Telegram contou com o apoio financeiro de alguém’

Relator da Lava Jato no Rio de Janeiro, o desembargador Abel Gomes diz que contaminar a operação era o objetivo de quem idealizou, articulou e executou o ataque dos hackers a autoridades
20.12.19

Aos 61 anos, dos quais 26 sob a toga, o desembargador Abel Gomes conhece bem as dificuldades enfrentadas por quem atua no combate à corrupção e aos crimes de colarinho branco no Brasil. No ano de 2000, foi dele a ordem de prisão contra o banqueiro Salvatore Cacciola, principal nome do escândalo do Banco Marka, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Dias depois, viu com pesar o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, libertar o banqueiro que, sem pensar duas vezes, fugiu para a Itália.

Decorridos quase 20 anos, o carioca de Botafogo, onde mora desde que nasceu em 1958, é o relator da Lava Jato do Rio de Janeiro na 2ª instância. É quem arbitra os casos envolvendo pessoas como foro especial na Justiça Federal. Ele é o juiz, por exemplo, da Operação Furna da Onça, que prendeu 11 deputados da Assembleia Legislativa do Rio, a Alerj. Foi nesse processo que apareceu pela primeira vez o relatório do Coaf com as transações suspeitas de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, o primogênito de Jair Bolsonaro, alvo de busca e apreensão na última semana. Gomes também relatou os processos envolvendo Sérgio Cabral e os já conhecidos crimes praticados pela organização criminosa liderada por ele.

Ele diz em entrevista a Crusoé enxergar com temor as tentativas de impor obstáculos às ações de combate à corrupção no país. A lei de abuso de autoridade e o ataque hacker a celulares de investigadores e juízes — do qual Abel Gomes foi um dos alvos — seriam, para ele, um dos emblemas da reação dos que querem dinamitar a Lava Jato e fazer com que poderosos voltem a desfrutar do aconchego da impunidade. No episódio, em particular, do roubo criminoso de mensagens do Telegram de autoridades, ele está convencido de que “foi previamente planejado e houve o financiamento de alguém, com um receptáculo pronto para dar a divulgação do que se conseguisse violar e apoio jurídico para os autores da violação”.

Qual a análise que o senhor faz dos mais de três anos de investigação da Lava Jato no Rio de Janeiro?
Foi um trabalho minucioso e sério desenvolvido pela força-tarefa. As autoridades integrantes dela souberam utilizar com legitimidade e eficiência um arcabouço legal editado desde a década de 1990 pelo Legislativo nacional, e que é fruto da reafirmação do Brasil como uma nação ansiosa por saneamento de um ambiente bastante suscetível à corrupção na administração pública e na política. São elas: a lei de prevenção e repressão às organizações criminosas, a de lavagem de dinheiro, as que preveem a cooperação internacional, entre outras.

Depois de colher os louros das ações bem-sucedidas, a Lava Jato do Rio, assim como as outras, tem sofrido com a reação de setores interessados em impor travas às investigações e operações de combate à corrupção no país. Como o senhor interpreta a ofensiva?
De fato, trata-se de uma realidade perceptível e até mesmo esperada. E isso tem relação com fenômenos de cunho criminológico e social. Não se poderia esperar outra coisa que não a reação de alguns integrantes dos setores atingidos, já que historicamente esses agentes são aqueles que sempre estiveram a salvo do alcance da jurisdição criminal. Como já deixou assentado o criminologista americano Edwin Sutherland, que foi o primeiro a destacar o fenômeno do crime do colarinho branco presente nas sociedades, os desvios de alguns integrantes das classes poderosas, economicamente sobretudo, jamais foram vistos como criminosos. A tolerância e o encobrimento dessa criminalidade estariam ligados principalmente a uma autopreservação compartilhada entre os iguais das camadas de cima. Mas quando isso envolve também agentes poderosos das classes políticas, a reação passa a ter um cunho mais perverso, que é o da preservação do próprio poder.

O senhor acha que a aprovação da lei de abuso de autoridade pode impactar no seu trabalho e no de outros magistrados responsáveis por processos envolvendo agentes públicos?
A lei de abuso de autoridade causou estranheza pelo contorno de alguns de seus artigos, o que fez com que ela fosse vista como um dos pontos do “pacote de abafamento da Lava Jato”. Havia uma série de projetos de lei sobre o tema, todos procurando aperfeiçoar o texto da Lei n. 4.898/65, inclusive um que mereceu da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), nos idos de 2009, uma participação de magistrados para sugerir melhorias no texto. E isso já era sinal de que os próprios juízes compreendiam a necessidade de melhoria. Ocorre que, num trâmite relâmpago surpreendente, agora no início de 2019, foram aprovados artigos que, em suma, tolhem consideravelmente o exercício da autoridade, ameaçam o processo de decisão judicial, principalmente a necessidade de prisões preventivas, transformam atos de policiais que atuam na interface direta com o crime em atos dependentes de demorada fundamentação e, entre outras coisas, criminalizam a não oficialização imediata de informações obtidas em investigação.

Qual a consequência disso?
Num país em que a criminalidade é notoriamente severa (a de rua, a organizada, e a ligada à corrupção), a lei desconfia e intimida as autoridades da persecução penal e da justiça criminal que estão constitucionalmente previstas para lidar com tal criminalidade incisiva.

O senhor foi um dos alvos do ataque hacker que roubou criminosamente mensagens trocadas por autoridades via aplicativo Telegram. Qual leitura o senhor faz do episódio?
A meu ver foi uma ação previamente planejada e conjugada, que contou com apoio financeiro de alguém, com um receptáculo pronto para dar a divulgação do que se conseguisse violar e apoio jurídico para os autores da violação e da publicação do conteúdo violado naquilo que viessem a sofrer de revés. E também, claro, para de alguma forma legitimar aquelas ações criminosas. Nada ocorreu por acaso. Partiram de uma das duas seguintes hipóteses: apostavam que as autoridades violadas se comunicavam entre si e com terceiros, e que poderiam tirar proveito disso para divulgar trechos seletivos que pudessem suscitar a desconstrução da lisura de suas atuações funcionais; ou, o que é mais grave, tiveram informações fornecidas por alguém de dentro das instituições de que algumas dessas autoridades mantinham contatos entre si diretamente ou em grupos de aplicativos.

Qual seria o objetivo, em sua avaliação?
O objetivo dessa trama criminosa, a meu ver, seria assassinar reputações, colocar dúvidas nas atuações dessas autoridades, afetar as investigações e processos penais na Operação Lava Jato e bisbilhotar o processo político que estava em curso no período em que ocorreram as interceptações. É bom lembrar que, em que pese só ter havido vazamento evidentemente seletivo de diálogos atribuídos a membros da força-tarefa de Curitiba, muitas e variadas autoridades da República foram interceptadas ilegalmente, até mesmo jornalistas.

Há quem diga que o clima criado pelos vazamentos deu suporte para o recrudescimento da reação contra a Lava Jato. O senhor concorda?
Contaminar a Lava Jato estava no programa de quem idealizou, articulou e executou isso. Não sei, entretanto, se isso deu algum suporte importante às reações contra a Lava Jato, ou se elas viriam de qualquer jeito. Vejo muita hipocrisia na avaliação positiva que é feita sobre o material vazado, do qual nem sequer é possível por meio dos trechos esparsos aferir o contexto em que eventualmente ocorreram. Me admira que as pessoas que militam nos tribunais e conhecem como funciona o Brasil realmente queiram passar ao público a ideia de que magistrados apenas despacham hermeticamente nas petições apresentadas pelo Ministério Público e mesmo pelos advogados. Juízes recebem advogados todos os dias no Brasil inteiro, em todos os tribunais e varas. E os recebem sozinhos, sem a presença da parte contrária que, no caso do processo penal, é o Ministério Público.

Jose Lucena/Futura Press/FolhapressJose Lucena/Futura Press/FolhapressAbel Gomes diz que objetivo de ataque hacker era o de assassinar reputações
E quanto ao uso dos meios eletrônicos para os profissionais do direito se comunicarem?
De uns anos para cá, a utilização desses meios é fato amplamente conhecido por todos. Então, por que isso acontece? O que leva um advogado que já registrou sua petição no protocolo a procurar pessoalmente o juiz sem a parte contrária? Querem explicar e até trocar impressões jurídicas sobre o que já está no papel. Dialogam com o juiz sobre o processo, sobre atos processuais que foram ou serão executados. E, atualmente, com o advento dos aplicativos e e-mails, até comunicações de atos do juiz já vêm sendo feitas às partes por esses meios. Não deveria ser assim? Então que se mude isso. Que se estabeleça na legislação processual a obrigatoriedade de despacho entre partes e juízes apenas com a presença da parte contrária e registros em atas. Vamos burocratizar mais isso, então.

Uma das frentes da reação contra a Lava Jato tem origem no caso Queiroz. Como o senhor analisa essa discussão sobre o uso e compartilhamento de dados do antigo Coaf?
O Coaf tem como função essencial concentrar informações de operações econômico-financeiras que lhe são obrigatoriamente remetidas por lei e que indiquem a probabilidade de configurar crime de lavagem de dinheiro, para repassá-las ao Ministério Público. Nada há a corrigir em relação a isso. Tudo está de acordo com a razão de ser do órgão, sua origem e intercâmbio necessário com outras UIFs internacionais. Não é possível pretender criar uma “UIF (ou Coaf) à brasileira”. O Brasil não está sozinho nisso, e terá que arcar com as consequências se quiser roer a corda.

Há muita expectativa em relação a acordos de colaboração relacionados a alvos da Lava Jato do Rio. Entre eles, o do ex-governador Sérgio Cabral. Na sua opinião, é possível um criminoso contumaz como Cabral ser beneficiado?
Não há como especular sobre essas questões. A colaboração premiada segue pressupostos e requisitos legais. O juiz em regra verifica se foram atendidos os requisitos da regularidade, legalidade e voluntariedade para o acordo. No atual momento dos processos em curso, cabe ao MPF avaliar.

Qual o balanço o senhor faz deste ano e o que esperar para 2020 no que diz respeito ao combate à corrupção?
O ano de 2019, embora realmente recheado de alguns percalços para a atuação das autoridades encarregadas da persecução, prevenção e repressão ao crime e especialmente à corrupção, mesmo assim não foi capaz de apagar tudo aquilo que se fez de realmente inédito e positivo nos outros cinco anos de Operação Lava Jato que o antecederam. Não há dúvida de que muito se avançou na lida e prevenção com o fenômeno da corrupção. Há coisas que jamais se imaginou que pudessem acontecer no Brasil. Para o futuro, vejo que o país é carente de políticas públicas em muitas e variadas áreas importantes que também precisam ser focadas. Contudo, a questão da corrupção de grande porte prosseguirá sendo o ponto central a ser tratado. Ela permeia todas as demais áreas e parece estar na base de tudo o que não vem dando certo na administração pública. Alguns alegam que a ineficiência é que é o grande problema. Mas até nisso não se pode afastar a hipótese de a corrupção estar no âmago. E já não é possível separar uma coisa da outra. Elas se retroalimentam, sem se saber qual veio primeiro.

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