Cabral cumprimenta Luiz Zveiter nos tempos de bonança

Propina com foro

Sérgio Cabral narra pagamento milionário de propina para Luiz Zveiter, um dos mais destacados desembargadores do Rio
20.03.20

A família Zveiter é um das mais poderosas no meio jurídico do Rio de Janeiro. O patriarca, Waldemar Zveiter, foi desembargador no Tribunal de Justiça fluminense e ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo ex-presidente José Sarney. Dono de um famoso escritório de advocacia, o clã também ocupa cargos destacados na política e na superestrutura que comanda o esporte nacional. Sérgio, um dos filhos de Waldemar, foi secretário estadual, deputado federal e presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, o STJD, que já teve outros familiares dele entre seus integrantes.

Luiz Zveiter, o primogênito, seguiu os passos do pai e é o decano do TJ do Rio, onde integra o órgão especial, encarregado de julgar personalidades com foro privilegiado. Ele chegou à corte em 1995 pelo quinto constitucional, sistema pelo qual a OAB pode indicar uma parcela dos magistrados de tribunais. Ao longo dos últimos anos, Luiz Zveiter foi alvo de representações no Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, por suspeitas diversas, de ajuda para amigos em concurso público a favorecimento a empresas clientes da banca de sua família. O rol inclui ainda irregularidades em licitações no TJ quando ele presidiu a corte, de 2009 a 2010. Todos os procedimentos foram arquivados ou estão estacionados nas gavetas do órgão que deveria fiscalizar a conduta de juízes brasileiros.

Um dos casos envolve a concorrência para a construção de um dos edifícios da sede do tribunal e foi remetido aos arquivos do CNJ recentemente. O conselho negou a abertura de um modesto processo administrativo disciplinar para averiguar a conduta do desembargador. Na última semana, porém, o ministro Edson Fachin enviou ao STJ um cartapácio com informações que podem mudar o rumo da história.

Integram o pacote dois inquéritos abertos com base no acordo de colaboração de Sérgio Cabral, ex-governador do Rio que tinha em Zveiter um de seus principais aliados no Poder Judiciário. Um desses inquéritos tem potencial para não apenas reabrir o caso no CNJ como, em paralelo, gerar problemas de ordem criminal para o desembargador carioca.

O material contém relatos acerca da contratação da Delta Engenharia, do multi-enrolado empreiteiro Fernando Cavendish, pela gestão de Zveiter na presidência do TJ, e traz uma acusação grave. De acordo com o relato de Cabral, ao qual Crusoé teve acesso, o empreiteiro pagou 10 milhões de reais para levar a obra, prevista para custar 141 milhões de reais e que extrapolou em muito os valores contratados.

O relato vai ao encontro das conclusões de uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União e pela Controladoria-Geral da União que esmiuçou os custos da obra e apontou um “sobrepreço global” estimado em 15,8 milhões de reais.

Trecho do depoimento em que o ex-governador acusa o desembargador
Ao delegado Bernardo Guidali, da Polícia Federal, Cabral foi às origens de sua relação com Zveiter. Disse que se aproximou dele nas eleições municipais de 2000, quando seu irmão Sérgio foi candidato à Prefeitura de Niterói. O delator era deputado estadual. À época, diz ele, a relação com o desembargador era “meramente institucional”. Com o irmão dele, porém, ia mais além: Cabral diz ter ajudado Sérgio, o político da família, na “administração dos recursos” e em “alianças políticas”.

A partir daí, a amizade com Luiz Zveiter foi se estreitando até que, em 2009, o desembargador lhe teria feito um pedido especial. Àquela altura, Cabral já era governador. Ele diz que Luiz Zveiter o procurou em busca de ajuda: queria se aproximar de Cavendish. A Delta Engenharia, uma das empresas prediletas de Cabral, vivia o auge de sua existência, com contratos milionários em várias partes do país – só anos mais tarde os métodos da empreiteira viriam a ser conhecidos.

O TJ do Rio tinha colocado na praça uma licitação para a construção de mais um prédio em seu complexo. Cabral atendeu o pedido do desembargador e acionou Cavendish de pronto. O assunto da conversa era justamente a concorrência. Segundo Cabral, o empreiteiro se animou com o interesse de Zveiter, principalmente porque a obra seria custeada com dinheiro do Fundo Estadual de Justiça e, portanto, dificilmente haveria atraso nos pagamentos.

É aí que Cabral começa a detalhar a grave acusação ao desembargador, até há pouco um de seus mais fiéis amigos. O ex-governador afirma ter ouvido de Zveiter, ainda no período em que a licitação estava em curso, que uma empresa “abusada” estava tentando entrar no jogo e atrapalhar o processo. Essa empresa teria sido “retirada” do páreo por decisão de Zveiter, então presidente da corte.

A partir de então, o caminho estava aberto para a Delta, que ganhou a concorrência e executou a obra – não sem pagar a milionária propina. Cabral diz que “no decorrer das obras, tanto Cavendish quanto Luiz Zveiter demonstraram que o acordo havia dado resultado”. O empreiteiro, na versão do político, comentou algumas vezes que a obra andava rápido porque o “fluxo de pagamentos não era interrompido”.

Cabral relata que Cavendish lhe falava, à altura dos acontecimentos, da “satisfação dos pagamentos em dia” e, nesse contexto, fez a ele o relato sobre o pagamento de 10 milhões de reais a Zveiter. O magistrado, segundo o governador, dizia que Cavendish era “sujeito homem”, que honrava os compromissos. E comemorava o acerto afirmando que o negócio tinha saído “até barato” – sim, ele considerou a propina uma pechincha – se fossem levados em conta o valor da obra e a pontualidade dos pagamentos do TJ à Delta.

DivulgaçãoDivulgaçãoO complexo do TJ fluminense: a Delta pagou propina milionária para fazer a obra, segundo Cabral
Agora no STJ, foro de investigações criminais envolvendo desembargadores, esse capítulo da delação de Cabral tende a virar um caso autônomo. No CNJ, que apura desvios administrativos de magistrados, o material pode fazer com que o procedimento recém-arquivado que tratava do assunto volte a ser apreciado.

Edson Fachin também enviou ao tribunal um relatório de Polícia Federal que corrobora o relato do ex-governador. Os investigadores confrontaram as afirmações de Cabral com informações conhecidas sobre a licitação para aferir se o que ele dizia tinha sentido. Encontraram os registros da disputa vencida pela Delta, cujo resultado foi publicado em julho de 2010, e pesquisaram as circunstâncias em que outra empresa, a Paulitec, foi limada da concorrência. Era, ao que tudo indica, a tal construtora “abusada” que queria atravessar o negócio.

A Paulitec, observam os policiais no relatório, chegou a ser declarada vencedora da licitação dois meses antes de o contrato ser entregue à Delta. Ela acabou saindo do jogo em razão de mudanças de última hora no edital. As tais mudanças levaram à realização de um novo processo de licitação, finalmente vencido pela empresa de Fernando Cavendish.

A PF também levantou os valores pagos pelo TJ à construtora: 268 milhões de reais. O documento conclui que “existem elementos que corroboram a narrativa de direcionamento de licitação para a Delta, tendo sido possível identificar a empresa adjetivada de ‘abusada’ no termo de colaboração como sendo a Paulitec”.

Como Crusoé já mostrou, a mesma delação que traz as suspeitas sobre Zveiter inclui acusações contra dois ministros do STJ, a corte que agora recebe o capítulo sobre o desembargador carioca. São citados os ministros Napoleão Nunes Maia Filho e Humberto Martins. Corregedor-nacional de Justiça, cargo que lhe confere as atribuições de xerife do Judiciário, no CNJ Martins votou pelo arquivamento da apuração disciplinar que ligava Zveiter a irregularidades na licitação.

Procurada por Crusoé, a defesa de Luiz Zveiter afirmou que ele nunca esteve com Fernando Cavendish e que manteve apenas contato institucional com Sérgio Cabral quando ele era governador do Rio de Janeiro. O advogado Pierpaolo Cruz Bottini disse que, embora a licitação tenha ocorrido quando o tribunal esteve sob a presidência do desembargador, apenas uma parte pequena do valor do contrato, 1 milhão de rais, foi paga no período. O restante, afirma, teria sido repassado pelos presidentes que o sucederam. O advogado disse ainda que a concorrência foi esmiuçada pelo CNJ, que não encontrou irregularidades, e que o próprio Cavendish, em depoimento, afirmou não conhecer Zveiter e negou ter pago propina pela obra.

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