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Os militares estão de olho

A cúpula das Forças Armadas vê com desconfiança alguns movimentos de Jair Bolsonaro, mas trabalha silenciosamente para que o futuro governo dê certo. Até porque, como o presidente eleito está colado à imagem da caserna, eventuais deslizes também poderão significar danos aos quartéis
23.11.18

No primeiro andar do Centro Cultural do Banco do Brasil, onde há três semanas trabalha a equipe de transição do presidente eleito Jair Bolsonaro, ecoam os gritos da secretária chamando oficiais de diferentes patentes. Na moderna sala de espera, com sofás cinzas e poltronas pretas e amarelas, não param de chegar militares. Fardados ou à paisana, eles vão sendo convidados a entrar. Oficialmente, dos 50 designados para a equipe de transição, a metade é comandada por gente da caserna. Mas, para além dos que foram formalmente nomeados como integrantes do grupo, há mais algumas dezenas de militares cedidos e até voluntários que engrossam esse número, participam do burburinho no quartel-general do futuro governo. Em conexão direta com a superestrutura montada para a transição, a oito quilômetros dali, nos nove imponentes prédios que integram o complexo do Alto Comando do Exército, no Setor Militar Urbano de Brasília, está uma engrenagem que tem exercido forte influência sobre os rumos do futuro governo, mas que, ao mesmo tempo, tem dado sinais de preocupação com o andar da carruagem – ou melhor, do tanque de guerra – de Jair Bolsonaro.

O maior receio dos militares hoje com o governo em formação é sobre a capacidade do seu núcleo político, encabeçado pelo futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, de servir de fato como um esteio para as articulações que precisarão ser encabeçadas principalmente com o Congresso Nacional e também para a execução de projetos. A avaliação é a de que o parlamentar não tem estofo nem capacidade técnica para ocupar o cargo, o que deve causar problemas a Bolsonaro. Alguns deles já são visíveis, como a dificuldade de articular os interesses do novo governo no Senado e na Câmara. Também pesa contra Onyx seu envolvimento com a JBS, empresa da qual ele já assumiu ter recebido recursos de caixa dois.

A habilidade política, de fato, não é o maior talento do futuro chefe da Casa Civil. Muito menos em um governo. Desde 1999 o gaúcho não sabe o que é ser governista. A última vez que ajudou alguém do executivo foi no seu primeiro mandato como deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, entre 1995 e 1998, quando integrava a base do então governador Antonio Britto, do MDB. Àquela época no PL, atual PR, Onyx tinha uma agenda: defendia a concessão de subsídios para que montadoras se instalassem no estado. Mudou ao migrar para a oposição ao PT. Em nível estadual, a partir de 1999 e federal, a partir de 2003. Abraçou a bandeira da segurança pública e se tornou um dos porta-vozes da empresa de armas Taurus no Congresso Nacional. Mas nunca participou das grandes negociações do Congresso.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéBolsonaro em Brasília na terça-feira: para integrantes do alto comando militar, parte civil do time está “mal escalada”
Além disso, o jeito estridente de atuar fez com que colecionasse uma série de desafetos dentro e fora da política — e até mesmo dentro da própria equipe de transição. Já nas primeiras horas após a vitória no dia 28 de outubro, desagradou ao futuro ministro da Economia, Paulo Guedes. Seu passado no estado também é vulnerável. Uma simples pesquisa em processos de tribunais no Rio Grande do Sul revela a existência de algumas ações judiciais contra ele. Uma delas, trabalhista, foi movida em junho por uma enfermeira que diz ter trabalhado quatro anos para a família dele sem carteira assinada. Outra, também deste ano, foi movida pela Prefeitura de Porto Alegre para lhe cobrar 7 mil reais pelo não-pagamento de IPTU e de taxa de coleta de lixo. São problemas pequenos, diminutos, perto do grande desafio que o futuro ministro tem pela frente. Mas dão molho extra às críticas que ele já vem sofrendo.

Para tentar neutralizar o potencial de danos que a fragilidade de Onyx parece representar, militares pediram a Bolsonaro duas alterações no organograma que vinha sendo projetado pelo presidente eleito. Uma delas foi para que o general Augusto Heleno Ribeiro fosse deslocado do Ministério da Defesa para o Gabinete de Segurança Institucional, o GSI. O pedido foi feito pelo próprio comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. A ideia é que Heleno, que goza da confiança absoluta não só do próprio Villas Bôas, de saída do posto, como de outros integrantes da cúpula do Exército, seja um conselheiro avançado do presidente. Com sala no Planalto a partir de 2019, ele estará por perto para orientar no que for preciso e debelar eventuais crises geradas pela inexperiência de figuras, Onyx à frente, que mostram que o time político de Bolsonaro tem “problemas de escalação”, para exprimir a ideia de uma alta fonte militar. “Será o nosso anjinho, para falar o que deve ser feito ao presidente”, disse essa fonte a Crusoé.

A preocupação e o esforço do Exército para que o futuro governo dê certo têm explicação: como Bolsonaro, que se construiu por suas ligações com os quartéis, se elegeu com a imagem atrelada à caserna, um eventual fracasso de sua gestão seria prejudicial aos militares. A segunda mudança, em curso, é o empoderamento do vice-presidente, o general Hamilton Mourão. De causador de problemas na campanha eleitoral, como na ocasião em que criticou o décimo-terceiro salário e foi posteriormente desautorizado por Bolsonaro, passou a ser desatador de problemas. Seu espaço tem crescido nas últimas semanas não apenas pelo seu perfil proativo, mas também pelo desejo dos militares em avançar sobre a área civil.

Roberto Casimiro /Fotoarena/FolhapressRoberto Casimiro /Fotoarena/FolhapressGeneral Villas Bôas: foi ele quem sugeriu que Heleno fosse para o Planalto
Bolsonaro já topou que toda a parte de gestão e governança de projetos, por exemplo, historicamente sob o guarda-chuva da Casa Civil, fique com Mourão. Outra área em estudo para ficar ao alcance do vice é o Programa de Parceria e Investimentos (PPI), onde se concentra o bilionário programa de concessões do governo federal. Pela configuração atual, ele ficará sob o cuidado da Secretaria-Geral da Presidência, a ser comandada pelo advogado Gustavo Bebianno, coordenador da campanha de Bolsonaro anunciado oficialmente nesta semana para o posto. A Crusoé, perguntado sobre as queixas do núcleo político de que estaria ocupando setores que não seriam da sua alçada, Mourão respondeu: “Isso aí tudo faz parte daquele ditado ‘dividir para conquistar’. A turma aí quer dividir. Aguardem a decisão do presidente, ele que vai decidir o espaço de cada um. Cada dia com sua agonia”.

Assim como Onyx, o advogado Bebianno, futuro secretário-geral do Planalto, também não é bem visto pelos militares. Os comandantes consideram que ele é outro cujos passos precisam ser acompanhados com lupa. Mas sua lealdade a Bolsonaro é um trunfo na guerra surda que se desenha. A eventual transferência do sensível PPI para Mourão está diretamente relacionada à preocupação com o perfil do advogado, apesar de sua decantada ligação com o presidente eleito. O receio maior é que, nas mãos de um civil, o programa fique mais vulnerável a transações que caracterizam a relação entre políticos e empresários no país — Bebianno, como mostrou Crusoé, é ligado ao empresário-lobista Paulo Marinho.

Outra área que os militares desejam ter sob sua guarda é a de infraestrutura. Um dos coordenadores do programa de governo nesse setor, o general da reserva Oswaldo Ferreira, desejava uma pasta que tivesse a aura de superministério, a exemplo do que ocorrerá na Economia com Paulo Guedes e na Justiça com Sergio Moro. Sem esse sinal, Ferreira anunciou que ficaria fora do governo. Ainda há, porém, um esforço para que ele mude de ideia. Temendo perder esse naco de poder, militares avaliam que o general da reserva ainda pode reconsiderar a decisão.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéOnyx é criticado até por aliados, que o acusam de inexperiência e falta de tato
Tamanha é a desconfiança dos militares com os civis que até mesmo um projeto paralelo da reforma da Previdência, uma das prioridades da agenda legislativa de 2019 do presidente eleito, tem sido elaborado na caserna. A preocupação é que ela afete o regime de previdência dos próprios militares, diverso do restante da população. No entanto, trata-se de uma exceção na relação deles com o núcleo econômico, liderado por Paulo Guedes. À diferença do que ocorre em relação às demais frentes comandadas por civis, o time montado até agora na economia é muito elogiado pelos quartéis. Não há temor, ao menos até o momento, de que o pensamento ultraliberal de Guedes e de sua equipe esbarre no conhecido nacionalismo dos militares — muito embora considerem que estatais como a Petrobras não devam ser privatizadas e que o liberalismo a ser colocado em prática não deva ser “dogmático”. Ao desenvolver a ideia de que as privatizações devem ser limitadas e subordinadas aos “interesses estratégicos do país”, os chefes militares costumam recorrer à experiência de Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990, que, segundo eles, causou danos à população em áreas mais remotas.

Há na história exemplos de uma aliança informal entre militares e liberais, todos eles, porém, sob a égide de uma ditadura em que direitos civis eram cerceados. O Chile de Augusto Pinochet é o melhor exemplo, por ter sido um dos primeiros locais em que os chamados Chicago Boys, o grupo de economistas liberais que passaram pela Universidade de Chicago, tiveram a oportunidade de por em prática seu receituário. Da equipe econômica atual, estudaram lá Paulo Guedes, Joaquim Levy e Castello Branco. O que pretendem adotar agora se parece com o projeto chileno nos anos 1970, que incluiu privatizações, abertura ao comércio exterior e um forte ajuste fiscal. A expectativa, aliás, é de que o país de Sebastian Piñera seja o primeiro a ser visitado pelo futuro presidente do Brasil.

Mesmo para os que veem similitudes no processo chileno, há singularidades relevantes a serem observadas no Brasil de 2018 que serão fundamentais para a definição do que será o governo Bolsonaro. O ex-capitão do Exército chegou ao poder por uma eleição direta e terá de trabalhar com um Congresso igualmente eleito – e repleto de civis – com o qual terá necessariamente que negociar. Essa é uma questão. A outra é justamente o deslinde do jogo das forças que foram responsáveis por seu sucesso nas eleições. Quem esteve com Bolsonaro nos últimos dias diz que ele pouco fala sobre os embates que já tomam conta do seu governo, mas aparentemente tem uma receita pronta para lidar com as diferenças. “Ele deixa rolar para ver quem sobrevive”, afirma uma fonte próxima do presidente eleito.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO vice Mourão: novas atribuições no front para evitar erros de cálculo
Não é só com aliados de Bolsonaro que há incômodo dos militares. Eles também manifestaram diferenças com o próprio presidente eleito na política externa. Avaliam ser desnecessário querer mudar a embaixada do Brasil em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém e não veem com bons olhos as declarações que ele já deu sobre um eventual conflito econômico com os chineses. Por outro lado, veem com simpatia uma aliança preferencial com os Estados Unidos, conforme deseja o novo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. “Não se briga com quem é grande. Você se alia a ele”, diz uma alta patente. A avaliação é a de que a era petista, sob o comando de Celso Amorim, tinha uma oposição “quase infantil” aos americanos, o que impediu um intercâmbio mais efetivo entre os dois países. Em outra frente, segundo essa mesma fonte, é chegada a hora de o Brasil exercer liderança na América do Sul, um antigo desejo dos americanos e, claro, dos militares.

Não bastassem as disputas na cúpula do governo de transição, o PSL, partido do presidente, começa a despontar como fonte de problemas para Bolsonaro. A primeira reunião da bancada eleita realizada na quarta-feira, em um hotel na região central de Brasília, foi, segundo alguns dos presentes filiados à sigla, um “show de horrores”. O principal motivo: há um levante de setores do partido que reivindicam justamente o que Bolsonaro combateu na campanha: o toma lá dá cá. Algo que os aliados de farda também repudiam enfaticamente. Há dezenas de anos sem participar de uma guerra de verdade, talvez agora os militares estejam diante de sua missão mais complexa.

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