Marcos Oliveira/Agência SenadoRenan se orienta pelo que sai nas redes sociais

O perigo do holofote

A CPI da Covid retoma os trabalhos com a obrigação de estabelecer prioridades e avançar nas investigações. Para cumprir a missão, os senadores precisam, antes de tudo, contornar a tentação midiática
06.08.21

Quando, na primeira quinzena de julho, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, autorizou a prorrogação da CPI da Covid por 90 dias, a decisão foi louvada pelo meio político – os únicos contrariados foram os acólitos do Planalto, para os quais, por motivos óbvios, a comissão de inquérito não deveria ter sido nem sequer instalada.

A comissão começou a funcionar em junho, investigando o colapso da saúde em Manaus, onde brasileiros morreram por falta de oxigênio, além das omissões do governo federal que retardaram a compra de vacinas e o estímulo do governo – em especial do presidente Jair Bolsonaro – ao “tratamento precoce”, que incluiu medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid. Durante os trabalhos, surgiram mais dois temas que passaram a guiar as apurações: as negociações irregulares para compra de vacinas e suspeitas sérias sobre contratos celebrados pelo Ministério da Saúde.

Na verdade, um escândalo revelou o outro. A negociação para a compra das doses da vacina indiana Covaxin por 1,6 bilhão de reais feita com uma intermediária, a Precisa Medicamentos, cuja dono já era processado por não ter cumprido um contrato de 20 milhões de reais, acabou lançando luz sobre os negócios firmados pelo ministério durante a pandemia. Um contrato assinado com a empresa VTCLog, que presta serviços de transporte e armazenamento de medicamentos, por exemplo, teve o valor multiplicado algumas vezes — conforme revelou Crusoé, um dos reajustes se deu graças à ingerência política de líderes do Centrão que exercem influência sobre a pasta.

Arthur Max/MREArthur Max/MREDepoimento de Filipe Martins está até hoje pendente de agendamento
É natural que, a cada fio que se puxe, surjam novos. Ainda há muito a ser esclarecido. O risco, porém, é abrir a todo momento novas frentes de investigação com base somente no que é pop e midiático – e que vai gerar visibilidade para os senadores. Quando isso ocorre, em geral, o que se vê é a produção de muita espuma para pouco resultado efetivo. Nesta semana, a CPI foi retomada com integrantes da cúpula da comissão falando em compilar vídeos antigos de Jair Bolsonaro e até em quebrar o sigilo de um órgão de imprensa. Teve até senador festejando o início da “segunda temporada” da comissão, como se investigação fosse uma série da Netflix.

Não foram situações isoladas. Desde que foi criada, por várias vezes a CPI se moveu ao sabor do potencial midiático dos casos. Com isso, muitos temas de interesse público foram largados pelo caminho tão logo assuntos de maior apelo popular vieram à tona, e assim tem ocorrido sistematicamente. Por exemplo, a comissão deixou em segundo plano apurações sobre o chamado “Gabinete Paralelo da Saúde”, responsável pelo aconselhamento de Bolsonaro durante a pandemia, à margem das recomendações validadas cientificamente. Depoimentos de figuras de relevo no governo, como o assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência Filipe Martins, estão até hoje pendentes de agendamento. O mesmo vale para Arthur Weintraub, ex-assessor especial de Bolsonaro apontado como precursor do tal gabinete.

Até o caso Covaxin segue com pontas soltas porque a comissão ainda não convocou peças-chave do escândalo, como funcionários do Ministério da Saúde envolvidos na trama. O deputado Ricardo Barros, líder do governo na Câmara que teria operado em favor da aquisição das vacinas, não foi ouvido. Segue na lista de pendências o depoimento do lobista Silvio de Assis, suspeito de oferecer propina ao deputado Luis Miranda em troca de ajuda para remover os entraves para a aquisição do imunizante dentro do ministério, como também dos diplomatas e da assessora da Casa Civil envolvidos na negociação pelo ingresso do Brasil no consórcio de vacinas Covax Facility, liderado pela Organização Mundial da Saúde. Em reuniões interministeriais reveladas por Crusoé, a subchefe adjunta de política econômica da Casa Civil, Talita Saito, atribuiu a Bolsonaro a culpa pelo atraso do governo brasileiro na adesão ao consórcio.

Wallace Martins/Futura Press/FolhapressWallace Martins/Futura Press/FolhapressAziz: jeitão de apresentador de programa de auditório
Nesta semana, a CPI adiou a decisão de convocar o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, para prestar depoimento.  O general é um dos ministros mais próximos do presidente. “Esse cidadão, sentado na cadeira, coordenava as ações de todos esses órgãos. Se esse cidadão não precisa ser ouvido numa CPI que investiga ações e omissões do governo federal, tenho dúvida de quem precisa”, lamentou o senador Alessandro Vieira, autor do requerimento.

A esta altura, a CPI já poderia ter produzido relatórios e concluído a análise de documentos importantes que estão em seu poder, como quebras de sigilo e relatórios de transações financeiras suspeitas. Ao menos uma parte importante do trabalho poderia estar concluída — o essencial, que é a responsabilidade de Jair Bolsonaro sobre o agravamento da pandemia no país, está mais do que demonstrado. E as demais pontas da apuração, por ordem de prioridade, poderiam estar claramente estabelecidas. Mas, ao invés disso, a comissão parece seguir um roteiro em aberto que vai sendo preenchido conforme os interesses de ocasião. Nesta semana, durante um depoimento transmitido ao vivo pela televisão e pela internet, o presidente da comissão, senador Omar Aziz, abriu longos parênteses para brincar com a senadora Leila Barros, ex-jogadora da seleção brasileira de vôlei, pegando carona no gancho da Olimpíada. “Me fez muita raiva, mas me deu muita alegria também. Quando tu dava aquelas cortadas de canhota, quando tu errava, eu brigava contigo”, brincou. Parecia programa de auditório. Renan Calheiros, o relator, não esconde que guia parte de sua atuação pelo que lê nas redes sociais.

A CPI precisa ter objeto definido e foco, e não ficar ao sabor do que rende popularidade aos senadores. Nos próximos três meses, a comissão terá a chance de superar a agenda eleitoralmente lucrativa e se ater ao que interessa: fatos que levem aos principais responsáveis pelo morticínio registrado no país. A história cobrará.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO