MarioSabino

O Natal do desprezo

24.12.20

Como esta será a última edição regular de 2020 da Crusoé, uma vez que teremos na próxima semana a coletânea de artigos com as perspectivas para o ano que vem, decidi interromper o meu repouso forçado para escrever algumas linhas. Não, eu não estava de férias, mas no hospital, por questões literalmente de coração. Agradeço aos leitores que me desejaram um bom descanso, induzidos pelo título enganoso da coluna ausente (seria difícil publicar um “colunista no hospital”, convenha-se). Até prova em contrário, agora está tudo bem comigo.

Em geral, no final do ano, nós nos tornamos mais sentimentais, as lembranças familiares incorporando aquela suave melancolia do espírito de Natal. Eu já tive Natais com muita gente ao meu lado, enquanto outros foram absolutamente solitários, acompanhado apenas dos meus fantasmas camaradas. Um dos mais estranhos que passei foi o de 2015, quando fui à Missa do Galo, em Saint-Sulpice, em Paris, logo depois dos atentados de novembro. Havia revista na entrada, feita por soldados do exército francês, e toda a liturgia desenrolou-se sob os olhares vigilantes daqueles anjos de farda e metralhadora, uma coorte singular para outro anjo, o de Delacroix, retratado na sua luta com Jacó, na capela próxima à entrada da igreja.

Eu ia dizendo que ficamos mais sentimentais no Natal, mas neste de 2020 estou imune à festa. Não pela química dos remédios que me vi obrigado a tomar, e sim pela do desprezo, sentimento antinatalino. A repulsão que eu sentia pelos nossos políticos aumentou em escala incomensurável e cancelou toda e qualquer reminiscência individual, boa ou má, que eu pudesse ter desta época do ano. Chegamos ao final de nove meses de pandemia com a prova definitiva de que esses safados que nos governam são também desprovidos de qualquer sentimento de comiseração e solidariedade pelo próximo, bem como de competência administrativa.

O primeiro fato é sobejamente constatável pela sociopatia transbordante do presidente da República e os seus asseclas governamentais ou não. O que dizer de um invertebrado moral que afirma que a melhor vacina é o próprio vírus? Também está comprovado pela falta de pudor do governador João Doria, que se mandou para Miami depois de fechar o comércio no estado de São Paulo, em mais uma quarentena que consegue ser tão fajuta quanto estorvante. Voltou correndo porque pegou mal. O quadro repugnante se completa com o descaramento de ministros do STF e STJ que querem furar a fila da vacina contra a Covid-19, logo que houver uma à disposição no Brasil. Estou sendo breve, porque um relato mais longo do que ocorreu ao longo do ano, além de desnecessário, seria mais nauseabundo.

Enquanto diversos países já começaram a vacinação, depois de apostar numa cesta dos imunizantes desenvolvidos a toque de caixa durante 2020, os sacripantas que nos governam ficaram basicamente com duas opções, enquanto se engalfinham binariamente pelo butim eleitoral de 2022: a vacina da AstraZeneca/Oxford, cujos testes clínicos tiveram de ser estendidos porque houve erro na dosagem aplicada em voluntários, e a Coronavac, sobre a qual ainda há dúvidas sobre o seu real grau de eficácia. Em nome do quê? Da idiotice da “transferência de tecnologia”. No altar do nacionalismo, mais existências serão sacrificadas no Brasil, enquanto outras serão poupadas no Chile e México, que compraram a vacina da Pfizer, sem querer nada em contrapartida. Agora dependemos da importação de insumos.

A patifaria e a inépcia governamentais em relação ao combate à Covid-19 deveriam servir para que os empresários brasileiros agissem e demostrassem aos cidadãos como o capitalismo pode ser a nossa salvação. As entidades que reúnem banqueiros, industriais e comerciantes de peso poderiam unir-se para comprar dezenas de milhões de doses das vacinas mais eficazes, assim que os laboratórios tiverem quantidade suficiente para vendê-las a quem não seja governo — o que, pelo jeito, começará a ocorrer antes que os cretinos do Poder Executivo consigam ter um plano de verdade de imunização em massa e concretizá-lo. As milhares de farmácias serviriam como postos de vacinação para a população, o que aliás já foi oferecido pela associação que as congrega. Apesar da precariedade da nossa infraestrutura, temos especialistas em logística na iniciativa privada capazes de organizar rapidamente o transporte e a distribuição de vacinas. Ninguém precisa de um bronco como Eduardo Pazuello.

Mesmo com os fabricantes de vacinas vendendo apenas para governos, os grandes capitalistas deveriam intervir para dar um basta imediato a esses estultos desonestos que nos distanciam do final do túnel — que comprem as vacinas logo, para que possamos distribuí-las e aplicá-las, ou ninguém mais terá contribuição nenhuma no caixa um, dois ou três. A lógica não é apenas da benemerência, mas da necessidade econômica. Um único mês faz diferença. Um único dia faz diferença. O país precisa urgentemente salvar vidas e empregos. O pessoal do dinheiro tem de falar grosso com esses gorilas de Brasília e dos governos estaduais. Eles ouvirão como animais amestrados. E não esqueçamos que teve banco dando bilhão de reais para minorar os efeitos da quarentena. Que seja gasto outro tanto para vacinar. Bilhão é o que não falta no capitalismo nacional.

Se banqueiros, industriais e comerciantes de peso tomassem as rédeas do processo de imunização em massa, mortes seriam evitadas, o Brasil sairia mais rapidamente do atoleiro pandêmico e quem sabe os cidadãos finalmente reconhecessem no capitalismo a via real de progresso para este país sufocado pelo estado. Com sorte, até os próprios banqueiros, industriais e comerciantes de peso chegassem à mesma conclusão.

Não é necessário somente desprezar essa escumalha instalada nos nossos palácios esquálidos. É urgente escapar da incompetência dela. Essa é a minha mensagem de Natal. A única poesia natalina que me ocorre agora é a de Carlos Drummond de Andrade, autor que não está entre as minhas preferências: “Menino, peço-te a graça / de não fazer mais poema / de Natal. / Uns dois ou três, inda passa… / Industrializar  o tema. / eis o mal.”

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