MarioSabino

O meu filho garçom e o filho de Lula

13.12.19

O meu filho mais velho mora na Austrália, onde complementa a formação em marketing. Trabalha como garçom em eventos e também num restaurante, vinte horas por semana como permite a lei para estudantes estrangeiros. Foi para lá porque achou a faculdade boa e não conseguia emprego por aqui — além disso, os salários no Brasil são muito ruins na sua área. Ele já havia morado na Austrália, onde fez parte do ensino médio, e gosta muito do país. Disse que ficaria feliz se conseguisse o visto definitivo no outro lado do mundo. Os meus sentimentos são confusos em relação a isso. Ao mesmo tempo que tenho orgulho do esforço que está fazendo, sou tomado pelo sentimento de ter fracassado como brasileiro. É um fracasso geracional: não conseguimos legar aos nossos filhos uma nação decente e com oportunidades suficientes para os jovens. Esse sentimento foi o que predominou quando me despedi dele.

Em 2006, o meu filho mais velho tinha treze anos — idade que o meu caçula tem hoje — e estudava numa escola cujos professores achavam a revista Veja, da qual eu era o número dois, “fascista” (delicadeza que também costuma ser endereçada a O Antagonista). Um desses seres encantadores chegou a pronunciar o epíteto em sala de aula, com o meu filho presente. Fui à escola e exigi que o moço pedisse desculpas. O bullying, que já era grande por causa da cobertura da revista sobre o mensalão, havia aumentado depois que publicamos a segunda reportagem sobre o caso Gamecorp, aquela empresa que fez de Lulinha um súbito milionário.

A primeira reportagem foi publicada em julho de 2005. Jornalistas da Veja baseados em São Paulo haviam descoberto que Lulinha, que até os 28 anos ganhava um salário de 600 reais como monitor do Jardim Zoológico de São Paulo, havia feito sociedade com os filhos de Jacó Bittar, amigão de Lula, numa empresa que atuava em publicidade e confecção de jogos eletrônicos. Lulinha havia montado o negócio depois de o pai assumir a Presidência da República. Até aí nada de errado. Todo mundo pode empreender. A questão é que a empresa, rebatizada de Gamecorp, desconhecida e sem nenhuma grande ideia revolucionária, havia recebido mais de 5 milhões de reais da Telemar — e a operadora de telefonia com grandes interesses junto ao governo entraria na sociedade por meio de uma engenharia contratual-financeira intrincada.

Apuração finalizada, os jornalistas procuraram Lulinha para ouvi-lo a respeito da associação da Gamecorp com a Telemar. Os assessores do filho de Lula bancaram os espertos: entregaram uma parte da história a O Globo, que a publicou em tamanho reduzido, pouco antes da Veja, já com a versão oficial (o jornal fez certo, noticiou o que tinha). É a técnica de “vazamento controlado”. Ela serve para tentar diminuir os danos que a divulgação da história inteira causará ao cliente e, quem sabe, reduzir o destaque a ser dado por quem a apurou. Decidimos mesmo assim colocar a reportagem na capa. Eu estava na sala do diretor de arte, juntamente com o diretor de redação, examinando qual imagem de Lulinha publicar sob a logo da Veja, quando a secretária chamou o número um da revista. Passada meia hora, mais ou menos, ele voltou. Antonio Palocci havia telefonado. Com Lula ao lado, ambos haviam pedido, quase implorado, segundo o diretor de redação, para que não puséssemos o filho do presidente na capa. Evocaram, inclusive, a aflição de Marisa Letícia. O número um cedeu: a reportagem seria publicada, mas não como capa. E ainda tirou uma página. Argumentei que era a melhor história daquela edição. Cumpri tabela. Era o meu papel insistir, mesmo sabendo que não adiantaria nada. Tudo bem: a reportagem causou escândalo. O título era “O negocião de Lulinha — como o filho do presidente se tornou sócio de uma gigante da telefonia”.

Lulinha seria capa da revista em outubro de 2006, pouco antes da eleição presidencial. A sucursal da Veja em Brasília descobrira que o filho de Lula mantinha uma sala no escritório do lobista Alexandre Paes dos Santos, conhecido como APS na capital federal, e avançara em relação à primeira reportagem sobre as ligações de Lulinha com a Telemar. Naquele mesmo ano, a empresa do filho do presidente havia alugado seis horas de programação por dia de uma rede de televisão — e a operadora de telefonia, sua sócia, havia destinado mais 5 milhões de reais para a Gamecorp, a título de antecipação por comerciais a serem exibidos durante as horas televisivas alugadas. Por que a Telemar injetara tanto dinheiro numa empresa ligada a jogos eletrônicos? A desconfiança virou certeza em 2008, quando a operadora fundiu-se à Brasil Telecom, para criar uma “supertele”, graças à mudança na lei geral das telecomunicações promovida por Lula.

A primeira reportagem da Veja apenas adiara o que já estava combinado, como foi revelado na segunda matéria da revista:

O caso de Lulinha tem uma complexidade maior. Sua relação com a Telemar não se esgota nos interesses de ambos na Gamecorp. O filho do presidente foi acionado para defender interesses maiores da Telemar junto ao governo que o pai chefia. Em especial, em setores em que se estudava uma mudança na legislação de telecomunicações que beneficiava a Telemar. VEJA descobriu agora que a mudança na lei foi tratada por Lulinha e seu sócio Kalil Bittar com altos funcionários do governo. O assunto levou a dupla a três encontros com Daniel Goldberg, titular da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE). Em um desses encontros, ocorrido no início de 2005, Lulinha e Kalil, já então sócios da Telemar, sondaram o secretário sobre a posição que a SDE tomaria caso a Telemar comprasse a concorrente Brasil Telecom – fusão que a lei proíbe ainda hoje. Goldberg, ciente do obstáculo legal, disse que o negócio só seria possível mediante mudança na lei. O estouro do escândalo Lulinha abortou os esforços para mudar a legislação e favorecer o sócio do filho do presidente.”

A apuração de Brasília havia sido engavetada por causa das enormes pressões do Planalto sobre Roberto Civita, depois da publicação da primeira reportagem em 2005. A coisa ficou nesse pé durante bom tempo, até Lula dizer, em entrevista à Folha de S.Paulo pouco antes do primeiro turno da eleição do ano seguinte, que não tinha culpa de Lulinha ser um “Ronaldinho” — um gênio, portanto —, ao ser perguntado sobre o sucesso da Gamecorp. Na reunião de pauta da Veja, todos ficamos indignados com a desfaçatez. Concordamos que não poderíamos colaborar com o cinismo do presidente da República, candidato à reeleição, e continuar guardando a outra bomba. O diretor de redação, então, comunicou a Roberto Civita que a capa seria Lulinha. O dono da Veja acabaria tendo uma fibrilação, coitado, mas a reportagem foi publicada com o devido destaque e a chamada “O Ronaldinho de Lula”. A revista foi acusada de fazer campanha contra o petista às vésperas da eleição que ele viria a vencer; Lulinha processou a revista e perdeu.

Treze anos depois, a PF detonou a operação Mapa da Mina, recolocando Lulinha e a sua Gamecorp nas manchetes. Tudo o que publicamos na Veja foi confirmado, e dados espantosos vieram à tona. Só da operadora de telefonia beneficiada durante o governo do pai, a empresa de Lulinha recebeu 132 milhões de reais. O filho mais velho de Lula com Marisa Letícia agora está na capa da Crusoé e nada garante que será punido, a julgar pelo que anda ocorrendo na Justiça brasileira; o meu filho mais velho está na Austrália trabalhando como garçom e nada garante que conseguirá um bom emprego na sua área, o que é do jogo. Mas eu é que sou da elite opressora. Um “fascista”, como o meu primogênito habituou-se a ouvir na escola.

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