Google MapsO DNIT do Ceará será entregue a um deputado do Centrão

O fisiologismo no microcosmo

A troca na chefia de um órgão federal no Ceará ilustra como o toma lá dá cá de Brasília se reflete no dia a dia, abrindo caminho para o apadrinhamento político e para os desvios
05.02.21

Em meados de janeiro, em plena campanha para a eleição de Arthur Lira à presidência da Câmara, o general Antônio Leite dos Santos Filho, diretor-geral do DNIT, departamento vinculado ao Ministério da Infraestrutura ao qual compete administrar a malha viária do país, foi avisado por emissários do Palácio do Planalto de que precisaria liberar uma de suas superintendências regionais. Pouco depois, o Diário Oficial da União confirmou a exoneração da engenheira Líris Silveira Campelo Carneiro, funcionária de carreira que comandava o órgão no Ceará, estado onde construiu a fama de xerifona ao jogar duro contra irregularidades e não se dobrar às pressões políticas dos poderosos de Brasília. A vaga de Líris acabou leiloada no vale-tudo dos cargos e verbas pelo comando da Câmara. Hoje, o posto está prometido ao deputado federal Júnior Mano, do PL cearense – leia-se Centrão –, que quer colocar na cadeira um aliado.

O caso é ilustrativo de como a aliança do governo Jair Bolsonaro com o Centrão, esquadrinhada nas últimas semanas pela crônica política nacional, se reflete no microcosmo das realidades locais. Mostra que, quando conveniências políticas estão em jogo, não importa se a dança de cadeiras em órgãos públicos que deveriam ser eminentemente técnicos vai impactar no desempenho ou afetar os serviços que chegam na ponta para o cidadão. O importante é acomodar os interesses do governo e de partidos – e é exatamente por isso que uma funcionária gabaritada e intransigente com os conhecidos desmandos no departamento, um feudo que durante anos serviu a esquemas de corrupção, é apeada sem o menor pudor de seu cargo para dar lugar a um indicado de um partido fisiológico.

Reprodução/Redes SociaisReprodução/Redes SociaisLíris Campelo: a xerife foi enxotada pelo presidente que prometeu acabar com a corrupção
Como superintendente do DNIT no Ceará, responsável entre outras funções pela construção e manutenção de estradas e rodovias, Líris Carneiro se tornou uma pedra no sapato de corruptos. Testemunhou contra políticos e servidores que operaram esquemas de corrupção e desvios de recursos públicos em obras realizadas durante os governos do PT. Uma sentença judicial de 2017 derivada de uma operação deflagrada sete anos antes atesta que a engenheira se recusou a participar dos crimes, mesmo sofrendo assédio moral para aceitar obras mal executadas e superfaturadas. Um dos alvos foi o antecessor de Líris, Joaquim Guedes, acusado de fraude em contratos. “Joaquim Guedes montou esquema com grandes empreiteiras, afastando os engenheiros que não queriam fazer parte de tal esquema, como por exemplo, Líris Campelo Carneiro”, diz um trecho da sentença.

Não deixa de ser irônico que a funcionária tenha sido enxotada justamente no governo que se elegeu prometendo acabar com a corrupção – mais ainda que tenha sido enxotada para dar lugar ao afilhado de um deputado cujo partido decidiu se engajar na base de apoio do Planalto. A servidora foi alçada à chefia da superintendência do DNIT cearense em agosto de 2018, durante o governo Michel Temer. Não demorou para que ela passasse a ser detestada. Ao menor sinal de irregularidade, sindicâncias internas eram abertas. Nos últimos meses, para além de ter seu cargo desejado pelos novos aliados do governo, ela havia se tornado um empecilho para o grupo político do senador Cid Gomes e de seu irmão, Ciro, ambos do PDT. Embora aliados do governo Camilo Santana, do PT, e ferrenhos opositores de Jair Bolsonaro, os irmãos Gomes passaram a exercer influência direta sobre o DNIT em razão de uma antiga amizade com o diretor-geral Santos Filho, conhecido por políticos nordestinos como um “ilustre cearense”.

Reprodução/Facebook/Tarcísio de FreitasReprodução/Facebook/Tarcísio de FreitasO general Santos Filho, diretor-geral do DNIT, e o ministro Tarcísio de Freitas: ordens superiores para abrir espaço para a ala fisiológica do Congresso
Por ordem do general, funcionários do DNIT cearense foram pressionados a atender a seguidas demandas da família Gomes, mesmo sem justificativa técnica. Uma delas foi garantir acesso à BR-222 a uma empresa sediada às margens da rodovia. Para atender ao pleito, era preciso alterar um projeto de obras já aprovado, o que significaria custos adicionais ao erário. Líris se negou a assinar a papelada. Agora, a tendência é que os pedidos de Brasília, principalmente os que serão embalados pelo Centrão, fluam mais facilmente. A nomeação do novo chefe ainda não saiu no Diário Oficial, mas é aguardada para breve.

A cobiça do Centrão sobre o DNIT não é novidade para quem opera no varejo dos cargos da capital federal. Criado em 2001 pelo governo Fernando Henrique Cardoso em substituição ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, o DNER, o órgão continuou a tradição na área de ser um escoadouro de recursos públicos. Nos últimos anos, várias operações da Polícia Federal foram deflagradas para tentar debelar os desvios – uma delas, realizada em dezembro do ano passado, desbaratou uma quadrilha que abocanhou nada menos que meio bilhão de reais em obras realizadas em Minas Gerais, em um esquema que os investigados chamaram de “institucional”. Além da facilidade que o DNIT proporciona para operar toda sorte de malfeitos com o seu orçamento bilionário – o previsto para 2021 é de 6,6 bilhões de reais, maior do que o de muitos ministérios e estatais –, o fato de o departamento estar presente em todas as regiões do país também enche os olhos de partidos fisiológicos como os do Centrão. Durante o governo do PT, o DNIT era feudo de Valdemar Costa Neto. O político do PL era padrinho do então diretor Luiz Antônio Pagot, que acabou virando habitué das páginas policiais, apanhado em escândalos. Nada indica que a história, desta vez, será diferente. O microcosmo cearense serve de alerta.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO