Carlos Fernandodos santos lima

Há algo de podre no reino da Dinamarca

20.03.20

“Há algo de podre no reino da Dinamarca”, diz Hamlet ao perceber que se encontrava desamparado e em perigo diante do poder que presumia legítimo, o da coroa dinamarquesa. Da mesma forma que o herói de Shakespeare, o brasileiro também percebe seu abandono por uma elite política irresponsável, que busca apenas assegurar sua próxima eleição e a manutenção do poder em detrimento da população. Vemos isso, sabemos disso, mesmo com todas as tentativas de nos confundir. Há algo de podre na política brasileira!

E dois exemplos claros dessa irresponsabilidade foram-nos dados nos últimos dias. O primeiro deles foi quando o Congresso Nacional, por significativa maioria (na Câmara dos Deputados, foram 302 votos contra o veto e 132 a favor, e no Senado Federal, foram 45 votos a 14), derrubou o veto presidencial sobre o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e criou despesa sem fonte de até 20 bilhões de reais.

Não se trata, por óbvio, de negar que existam pessoas em situação de extrema penúria, merecedoras do amparo assistencial. Já há muito a Justiça, caso a caso, conforme estudo social demonstrativo da pobreza extrema, estendeu os parâmetros legais do BPC; nem mesmo, como sempre sugere Rodrigo Maia, de que qualquer crítica ao Congresso Nacional seja atentatória à própria democracia, esquecendo-se de que esta se fundamenta essencialmente no direito de crítica e da livre manifestação do pensamento. Trata-se de deixar clara a irresponsabilidade dessa decisão no momento que vivemos.

O que mais salta aos olhos é a completa dissociação da realidade que os parlamentares brasileiros demonstraram com essa derrubada do veto. Estamos vivendo em meio à crise sem precedentes do coronavírus, que pode levar milhões à penúria e milhares à morte, com risco crescente de abortar qualquer recuperação econômica, e o que eles fazem é destruir o pouco que resta de credibilidade deste governo. Sem a crença na capacidade econômica de superação da crise, ela se potencializará ainda mais. Economia vive de expectativas. Mas vá explicar isso para nossa elite política, que vive seu mundo próprio de interesses e barganhas.

Continuam nossos parlamentares com seu velho e abusivo hábito de fazer favor com o chapéu alheio. Parlamentares da meia-entrada, podemos assim chamá-los, que depois usam do rádio e de outdoors para assumir a paternidade do “benefício” que sequer sabem ou querem saber quem os paga. Agem como gordos bispos medievais, refestelados em seus magníficos tronos, que distribuíam poucos pães produzidos com impostos e dízimos à multidão faminta, esperando depois que esta lhes beijasse os anéis em agradecimento.

Mas do outro lado da Praça dos Três Poderes também há muita irresponsabilidade. Em um momento no qual aglomerações são indesejadas, em que se espera das autoridades exemplo e liderança, aquele que deveria encarnar essas qualidades só confirma sua inaptidão para o cargo. Ao descer para cumprimentar a multidão reunida em contrariedade à orientação de seu próprio governo, ou pelo menos da parcela responsável que ainda nele existe, Bolsonaro demonstrou que não exerce qualquer influência positiva sobre a população brasileira, muito pelo contrário.

Da mesma forma que o Congresso Nacional vive das barganhas políticas e do desinteresse público, Bolsonaro vive de suas convicções preconceituosas e de uma premeditada ignorância. Mesmo alertado dos riscos de que a pandemia cause o colapso do sistema de saúde, da insuficiência de leitos de UTI e respiradores artificiais para dar conta de um exponencial avanço da Covid-19 em nosso país, o presidente mostrou-se novamente irresponsável, mostrou-se novamente o pior representante de seu próprio governo.

Tudo isso somente demonstra que a maior crise brasileira é a das suas instituições, ou melhor, do processo de escolha da elite política brasileira. Por diversos motivos fomos deixando a política nas mãos de pessoas não qualificadas e de uma elite nefasta. Fomos nós, brasileiros comuns, nos afastando das diversas instâncias que servem de filtro para a ascensão política. Ficamos todos nós como titulares não mais do poder, mas do voto apenas. Por isso somos lembrados apenas a cada quatro anos e não no dia a dia das decisões públicas.

A democracia exige um sistema de filtros de lideranças. Um sistema de filtros positivo, nos quais não se escolha alguém, como hoje, pela engenhosidade de fazer dinheiro ilícito, pela capacidade de ocultar os malfeitos ou eficiência em constranger ou cooptar autoridades, mas sim pelo desejo de cooperar e promover o melhor para nosso país, de buscar meios para tornar cada brasileiro autônomo e independente e, enfim, de assumir a responsabilidade por tão difícil tarefa.

Diante disso, o que resta é acreditar no brasileiro e na sua capacidade de sobrevivência e de solidariedade. Estamos caminhando por tempos difíceis. Todos nós, venhamos ou não a ser infectados pelo coronavírus, vamos sofrer as consequências desta crise. Vidas vão ser perdidas e empregos vão desaparecer. Temos que trabalhar, mesmo que em casa, educar nossos filhos, mesmo que sem escolas, temos que agir de modo responsável, apesar de nossos dirigentes, para que a crise vá embora o mais rápido possível e possamos reconstruir a economia.

Na mesma peça, há um momento em que se conclui: “a Dinamarca é o leito da luxúria e do incesto abominável”. Parafraseando Shakespeare, o Brasil é o leito do abuso e da irresponsabilidade abomináveis. É preciso lutar contra a crise, é preciso retomar os empregos, é preciso lutar por um futuro melhor. A solução é o povo exigir responsabilidade e mudanças.

Carlos Fernando dos Santos Lima é advogado e foi um dos procuradores da República da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.

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