Presidência da RepúblicaBolsonaro com Trump: imitar o ídolo pode não ser um bom negócio

Espelho, espelho meu

Da negação da importância da pandemia ao acirramento do discurso radical: o que a derrota de Trump deixa de lição para o projeto reeleitoral de Bolsonaro, que mimetiza o presidente americano
07.11.20

A idolatria quase adolescente do presidente Jair Bolsonaro pelo presidente dos EUA, Donald Trump, e pelos Estados Unidos rendeu pouquíssimos dividendos políticos, econômicos e diplomáticos ao Brasil nos últimos dois anos. Mas o que esteve em jogo nunca foi só isso. Ao ser eleito em 2016, Trump não apenas apresentou uma estratégia singular para triunfar nas urnas como ofereceu inspiração para governar. Inspiração baseada, principalmente, na utilização de uma narrativa nacional patriótica de oposição ao “globalismo”, no léxico populista e politicamente incorreto, nos petardos dirigidos à imprensa a partir da popularização do uso da expressão “fake news e na transformação de adversários em inimigos. Sem contar, claro, com a agenda assentada em uma pauta conservadora nos costumes com fortes tintas religiosas.

Portanto, se a vitória de Trump representaria para governantes que o emularam uma espécie de confirmação psicológica da eficiência do modelo adotado por ele, e daí a sua importância para além das relações comerciais, a derrota produz a sensação de fragilidade da estratégia política. O êxito do democrata Joe Biden traz importantes lições para Jair Bolsonaro, que cada vez mais se move de olho da recondução ao cargo em 2022. Resta saber de que maneira ele irá assimilar o fracasso do republicano. A principal dúvida é: o “Trump dos trópicos”, como Bolsonaro foi apelidado pela imprensa internacional, vai continuar a reproduzir o trumpismo em solo nacional, sob o risco de repetir o fracasso eleitoral do seu ídolo americano, ou irá se adaptar a um novo “espírito do tempo”?

Aprendizados da eleição americana não faltam. Um dos fatores que contribuíram de forma determinante para a derrota de Trump foi o descaso com a pandemia de Covid-19, que já matou mais de 234 mil americanos. Desde o início da maior crise sanitária do século, a aprovação do presidente dos Estados Unidos despencou nas pesquisas. E, segundo analistas, a constante negação de Trump em relação ao coronavírus foi decisiva para o desempenho eleitoral. Em determinado momento da campanha, os estrategistas republicanos até captaram essa tendência e o presidente passou a dosar o tom. Não o suficiente. Em julho, por exemplo, só quatro meses após a chegada do vírus ao território americano, é que o chefe da Casa Branca apareceu em público de máscara pela primeira vez – lá, como aqui, o uso da proteção contra a Covid-19 se transformou no símbolo de uma guerra política.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisBolsonaro exibe caixas de cloroquina: discurso sobre a pandemia em linha com o colega americano
Enquanto o número de mortes subia exponencialmente, Donald Trump constantemente insistia na tese de que a pandemia estava “sob controle”. Bolsonaro adota a mesma linha, ao repetir que a Covid-19 não passa de “uma gripezinha”. Outra similaridade é a propaganda ilimitada da hidroxicloroquina, uma substância que não tem efeito sobre a doença. Como consequência de todo esse quadro, entidades científicas e publicações como a revista Nature declararam apoio a Biden na corrida eleitoral. “O desprezo do governo Trump pelas regras, ciência, instituições democráticas e pelos fatos ficou claro na resposta desastrosa à pandemia da Covid-19″, escreveu a publicação científica.

O negacionismo adotado por Trump e macaqueado por aqui guarda relação com a retórica de perseguição engendrada, segundo essa teoria conspiratória, por organismos internacionais “globalistas”, ligados à ONU. “Muitas mortes foram causadas pelos erros deles”, disse Trump em abril, ao anunciar a suspensão de contribuições anuais de 500 milhões de dólares dos Estados Unidos à OMS. Na campanha, Biden adotou postura diametralmente oposta – ele anunciou que, se eleito, reverteria a retirada formal do país dos quadros da entidade. E foi bem-sucedido. Diante do exemplo americano, Bolsonaro, que já disse que a OMS trabalha para “quebrar países”, insistirá na retórica cáustica em relação aos organismos internacionais?

No que depender do chanceler Ernesto Araújo, alinhado ideologicamente com o trumpismo, sim. Mas já surgem especulações no governo de que, numa provável reforma ministerial programada para o início do próximo ano, Araújo seja limado do posto. O mesmo valeria para Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente. Uma hipótese já discutida no seio do governo seria a de acomodar Salles em outro cargo, numa sinalização ao novo governo americano. Biden é um crítico da política ambiental do Brasil. O democrata usou um debate com Trump para mandar recado sobre as queimadas no país. Disse no primeiro debate com Trump que, eleito presidente dos EUA, ofereceria 20 bilhões de dólares para a preservação da Amazônia. Salles pode ser transferido, por exemplo, para um ministério como o do Turismo, hoje comandado por Marcelo Álvaro Antônio, que, se for destronado do posto, não ficará exposto ao sereno, pois voltaria a cumprir o mandato de deputado na Câmara.

Paola de Orde/Agência BrasilPaola de Orde/Agência BrasilEduardo, o filho 03 de Bolsonaro, e seu boné trumpista: campanha aberta, e até antecipada, em favor do republicano
Do ponto de vista político-eleitoral, Joe Biden cresceu entre a opinião pública dos EUA por se portar e ser percebido pela população como um político centrista e moderado, menos afeito a “guerras culturais” — ou seja, o oposto de Bolsonaro –, o que deu confiança ao eleitor médio. No geral, campanhas eleitorais seguem suas próprias dinâmicas e são regidas pelo zeitgeist, a expressão alemã utilizada para designar o “espírito do tempo”. Quem sabe compreendê-lo melhor, vence. Por exemplo, a eleição de 1989, como a que elegeu Bolsonaro em 2018, foi marcada pela rejeição da velha política. Fernando Collor era o outsider, “caçador de marajás” e personificava o novo, como Bolsonaro. Nas eleições de 1994 e 1996 prevaleceu o sentimento de continuidade – algo parecido com 2010, quando a economia ia de vento em popa. Em 1998, diante de uma iminente crise econômica, o eleitorado preferiu manter tudo como estava. Num quadro parecido, em 2014, uma eleição acirradíssima, venceu quem melhor ludibriou o eleitor sobre quem seria mais capaz de lidar com a crise que se avizinhava – e deu no que deu. Nos Estados Unidos, Biden captou o sentimento do eleitorado americano e transformou a eleição quase que num plebiscito sobre o comportamento pessoal de Trump.

A possibilidade de a mesma história se repetir aqui em 2022 é o grande risco para Bolsonaro. Apesar de a popularidade do presidente estar em alta – hoje, em torno de 40% –, impulsionada sobretudo pelo pagamento do auxílio emergencial nos últimos meses, a sociedade tem dado uma série de sinais de esgotamento do modelo baseado no radicalismo e no confronto permanente com as instituições, adotado no passado pelo PT depois de ter sido flagrado em desvios e práticas de corrupção, e que o bolsonarismo aplica no extremo ideológico oposto. Isso explicaria a rejeição aos candidatos apoiados publicamente por Bolsonaro nas principais capitais do país durante as eleições municipais. E, apesar de o presidente ter se refestelado nos braços do Centrão e se rendido ao establishment que sempre criticou, nada indica que essa postura mais beligerante, cuja arena predileta são as redes sociais, como fazia e ainda faz Trump, irá mudar.

Nos EUA, o presidente americano se notabilizou por deixar de lado qualquer resquício de civilidade para espezinhar rivais, o que o levou a perder pontos entre o eleitorado mais moderado. No ano passado, atacou deputadas democratas de ascendência estrangeira. “Voltem para o seu país”, afirmou, em uma declaração inegavelmente xenofóbica. A líder democrata na Câmara, Nancy Pelosi, foi um dos alvos prioritários de Trump, que já a tachou de “louca”. Bolsonaro, seus aliados e filhos também são experts em abdicar da urbanidade nas disputas políticas. “Com uma derrota do Trump, o Bolsonaro terá dificuldades em manter esse discurso mais radical. Mas imaginar um Bolsonaro ponderado, multilateralista, é quase impossível. Seria outra pessoa”, diz o cientista político Carlos Melo, professor do Insper. Pelo contrário, a promessa de Trump de levar o pleito americano para o tapetão já tem servido para Bolsonaro e família realimentarem paranoias por aqui. Em março, o presidente disse que revelaria provas de que teria havido fraude eleitoral na eleição vencida por ele em 2018, mas até agora nada foi apresentado. Na forma, ele se enxerga como um Trump no espelho. A dúvida é se o resultado das urnas americanas o fará enxergar algo diferente.

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