Lula Marques/FolhapressGilmar e Lula: de inimigo figadal no passado, o ministro se tornou um aliado improvável para a estratégia lulista

Derrotados, mas…

Lula e Gilmar Mendes, cada um a seu modo, contavam que dariam um xeque-mate na Lava Jato graças ao vazamento de mensagens de Sergio Moro e procuradores. Erraram feio. Mas ainda não desistiram
28.06.19

O ódio recíproco entre o PT e o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes atingiu o ápice naquela semana de setembro de 2015, quando o Supremo Tribunal Federal derrubou a doação empresarial para campanhas eleitorais. Contrário a essa medida, ele utilizou-se do avanço da Lava Jato para atacar a legenda, que à época governava o país com Dilma Rousseff. “O partido consegue captar recurso na faixa dos bilhões continuamente tendo como base os contratos de uma estatal do tamanho da Petrobras – e só estamos falando da Petrobras – e passa a ser o defensor, defende bravamente o julgamento da inconstitucionalidade da doação de empresas privadas. Fico emocionado em saber, me toca o coração”, afirmou, com ironia. E prosseguiu: “Era bom lembrar que as empresas estatais são patrimônio público. Elas não podem ser assaltadas por grupos de pessoas. A rigor, temos que reconhecer, é um partido de vanguarda porque instaurou o financiamento público de campanha antes de sua aprovação”. As manifestações de Gilmar naquela tarde levaram o PT a divulgar uma nota ameaçando processá-lo. No texto, a sigla falava em “desvario do ministro”, dizia que ele “falta com a verdade” proferindo “impropérios” e “destemperos anti-PT”. Gilmar rebateu. “O que se instalou no país nesses últimos anos e está sendo revelado na Operação Lava Jato é um modelo de governança corrupta, algo que merece o nome claro de cleptocracia”. Também disse que “não roubam só para o partido, é o que está se revelando, roubam para comprar quadros” e que “estamos nesse caos por conta desse método de governança corrupta”.

De lá para cá, Dilma caiu, Michel Temer assumiu, saiu e foi pego pela Lava Jato, Lula foi preso, Aécio Neves enrolou-se e Gilmar Mendes, de inimigo, tornou-se o principal aliado do PT no STF.  “Presidente, o Gilmar é o cara que se a gente voltar tem que ser ouvido nas nomeações de ministros”, disse o deputado Wadih Damous a Lula na cadeia, antes do segundo turno das eleições, mostrando que o ministro suplantou até mesmo Dias Toffoli, presidente do STF e ex-funcionário do partido, na posição de queridinho da legenda na principal corte do país. O namoro de Gilmar com petistas começou quando o PT deixou o Palácio do Planalto e a Lava Jato avançava sobre outros partidos com os quais Gilmar sempre foi mais alinhado, como o PSDB, e sobre o Judiciário. Deu-se, a partir daí, uma aliança de conveniência da qual partem, hoje, as maiores ameaças à operação. De um lado, um partido buscando um rumo desde que sua principal liderança, Lula, foi presa por corrupção e lavagem de dinheiro. De outro, um juiz que, sob a justificativa da defesa de direitos individuais, tenta a todo custo enfraquecer a maior ofensiva contra a corrupção da história do país. Com um fator novo a reforçar o desejo de ambos: as mensagens atribuídas ao ex-juiz Sergio Moro e ao coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, que sugerem que o agora ministro da Justiça de Jair Bolsonaro orientava a acusação contra Lula quando era magistrado.

Foi depois da primeira divulgação das mensagens pelo site The Intercept, no dia 9 de junho, que se criaram as condições para que a liberdade de Lula voltasse a ser debatida pelo STF. Sempre, claro, com Gilmar à frente. A primeira estratégia do ministro foi devolver à pauta de julgamentos um dos recursos da defesa apresentado ainda em 2018 que pedia a anulação da condenação por considerar Moro suspeito por motivos jurídicos, como a determinação da condução coercitiva de Lula sem prévia intimação em março de 2017, até políticos, como a decisão dele de aceitar o convite para ser ministro de Bolsonaro, inimigo do PT. O pedido começou a ser julgado em dezembro pela Segunda Turma. Caminhava para a rejeição após os votos contrários dos ministros Cármen Lúcia e Edson Fachin, quando Gilmar deu aquela força para a defesa de Lula e pediu vista do processo. Só devolveu mais de seis meses depois, dois dias após as supostas conversas de Moro e Deltan virem à tona, com o anúncio de que o julgamento do recurso ocorreria na última terça-feira, 25.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressA sessão da turma, presidida por Cármen: tensão até o fim
Era a data do, digamos assim, casamento oficial entre Gilmar e o PT, com direito a um palco especial, a “Igrejinha”, como é conhecido o prédio anexo da corte na qual as duas turmas, a Primeira e a Segunda, se reúnem para analisar casos diversos que não são atribuição do plenário. Mas havia alguém para atrapalhar. A presidente da Segunda Turma, Cármen Lúcia, não deu garantias a Gilmar de que o processo devolvido seria incluído na pauta. O ministro, então, correu para bolar uma segunda estratégia. Em resposta a um pedido da defesa de Lula para soltar o petista feito logo no início da sessão, pediu que fosse concedida uma medida para que o chefão petista fosse solto provisoriamente até que a suspeição de Moro fosse julgada. Foi o suficiente para que o país entrasse em alerta. No Twitter, as hashtags #LulanaCadeia e #LulaLivreUrgente passaram a disputar as primeiras posições entre os assuntos mais comentados. Um pequeno grupo de militantes petistas com faixas em favor da libertação de Lula se aglomerou na frente do prédio principal do Supremo. Dentro da “Igrejinha”, nos fundos, era nítido o otimismo entre os correligionários do ex-presidente com mais uma manobra de Gilmar. No intervalo, advogados criminalistas, a maioria com clientes investigados pela Lava Jato (até o de Renan Calheiros estava lá), esbanjavam confiança.

O julgamento da peculiar liminar proposta por Gilmar para soltar Lula começou ao redor das 18 horas, com o voto do próprio – um voto a favor do petista, claro. O ex-senador Jorge Viana e o ex-deputado Wadih Damous sorriram ao ouvir o ministro, mas fecharam a cara logo na sequência diante da manifestação de Fachin, que votou contra. Gilmar, que estava ao lado do colega, também não gostou. Afundou-se na cadeira e levou a mão ao rosto. O voto de Fachin não era necessariamente uma surpresa, porém. A esperança petista voltaria com Ricardo Lewandowski, que não só acompanhou Gilmar em seu voto como pediu a conclusão do julgamento do mérito – ou seja, que a turma julgasse se Moro era ou não suspeito – ainda naquele dia. O voto do decano Celso de Mello era esperado com atenção redobrada. Já se esperava, desde o início, que seria o fator de desequilíbrio. Quando o ministro disse que condutas abusivas não implicam parcialidade, os semblantes dos petistas se fecharam. Era o prenúncio de que ele seria contra a soltura de Lula proposta por Gilmar. Foi o que aconteceu. Cármen Lúcia, por fim, deu o terceiro voto contra a liminar – como era esperado – e a sessão se encerrou. Lula havia perdido. Gilmar havia perdido.

A decisão esfriou, por ora, os efeitos da publicação das mensagens atribuídas a Moro e a Deltan. Para completar, nesta quinta-feira, o corregedor nacional do Ministério Público, Orlando Rochadel, arquivou um processo disciplinar que havia sido aberto contra Deltan Dallagnol por causa dos diálogos. Na decisão, ele disse haver indícios de que as mensagens foram captadas de maneira ilícita e que, mesmo que não houvesse esse problema, não há nelas indícios de infração funcional por parte do procurador. Foi mais um golpe na estratégia de Lula. O assunto, por sinal, já não vinha sendo levado em conta pelo universo político em Brasília. Até hoje, por exemplo, o PT não conseguiu reunir as assinaturas para instalar uma CPI com o objetivo de investigar a conduta dos investigadores da Lava Jato. Há receio, em especial da cúpula do Congresso, de que uma comissão inflame as ruas contra deputados e senadores e fortaleça a narrativa petista para 2022. É por isso que, para o partido, o jogo a ser jogado é via Judiciário. E tem em Gilmar Mendes peça fundamental. O ministro, que andava calado desde a vitória de Bolsonaro na eleição de 2018 e a nomeação de Moro para a Justiça, saiu da toca após os vazamentos. Todo o embasamento jurídico que pode soltar Lula nesse caso tem partido dele. Já disse, por exemplo, que provas ilícitas não necessariamente devem ser anuladas – o que surpreende, pois ele mesmo tem diversas decisões em sentido oposto. O ministro também declarou que “juiz não pode ser chefe de força-tarefa” e que Deltan Dallagnoll era “um bobinho”. Conhecido por seus canais com o mundo da política, também operou para que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, aproveitasse a oportunidade para aprovar em plenário uma lei punindo o abuso de autoridade.

Agência BrasilAgência BrasilO decano Celso de Mello definiu o placar de 3 a 2: Lula segue preso
A própria solução proposta na Segunda Turma para adiar o julgamento do mérito sobre a suspeição de Moro e conceder uma liminar para soltar Lula revela que a estratégia principal está diretamente ligada aos vazamentos. Isso porque ela embute a expectativa de que possa haver, nas próximas levas de mensagens, uma bala de prata capaz de tornar inevitável a anulação do processo do apartamento tríplex do Guarujá, pelo qual Lula cumpre pena. O desejo dos petistas é que anulação crie um efeito cascata e anule também a condenação no caso do sítio de Atibaia, cuja fase de instrução contou com ampla participação de Moro, ainda juiz à época. Nesta semana, apesar da ducha de água fria disparada pela maioria da Segunda Turma do STF, integrantes do PT espalhavam ter informações de que estariam por vir áudios que comprometeriam o processo do tríplex. A estratégia é seguir tentando tirar o ex-presidente da cadeia a cada novo lance de vazamentos. Uma das ideias, por exemplo, é apresentar um novo pedido de libertação ainda durante o recesso do STF. Neste caso, o ministro de plantão pode decidir sozinho ou encaminhar o caso ao gabinete do relator para que ele decida em agosto. No último recesso, em janeiro, o presidente da corte, Dias Toffoli, ficou de plantão nos quinze primeiros dias e o vice, Luiz Fux, nos quinze dias finais.

Ainda que os esperados novos vazamentos não sejam suficientes, a defesa de Lula avalia que todos os sinais foram dados pela Segunda Turma de que o julgamento sobre a suspeição de Moro, em agosto, tende a ser favorável ao petista. O otimismo se baseia nas declarações finais de Carmen Lúcia e Celso de Mello, dois ministros outrora considerados contrários à suspeição. Eles teriam sido ambíguos quanto ao tema, na avaliação dos que torcem pela libertação do ex-presidente. Cármen Lúcia, que já votou contra a suspeição mas pode voltar atrás, disse: “Estamos abertos. Eu pelo menos estou aberta. Porque o julgamento não acabou e o acervo que pode ser trazido ainda, como comprovações posteriores, não impede o uso de instrumentos constitucionais e processuais para garantia dos direitos do paciente”. Celso de Mello pediu que não se confundisse sua rejeição à liminar a seu futuro voto no mérito: “Que não se interprete meu voto como sendo de antecipação de minha decisão futura quando do julgamento final”. Se o caminho para soltar Lula pela suspeição não vingar, ainda há outros dois possíveis: o julgamento de um recurso pelo Superior Tribunal de Justiça, previsto também para agosto, e a análise pelo STF da ação que pretende derrubar a prisão imediata após condenação em segunda instância.

Contra Lula, porém, há muitos fatores com potencial de prolongar seu tempo na cadeia. Primeiro, independentemente dos conteúdos dos supostos diálogos, é inevitável que haja um debate sobre sua legalidade, tendo em vista que sua obtenção se deu por meio ilícito. E, nesse sentido, o STF tem inúmeras decisões contrárias à utilização de provas ilícitas em julgamentos. Além disso, é praticamente impossível comprovar a veracidade deles, já que as autoridades invadidas afirmam ter apagado o conteúdo e o Telegram, aplicativo de origem russa por meio do qual se chegou às mensagens, tem como política não fornecer nenhuma informação sobre o que se passa entre seus usuários. Além disso, há uma fila de processos em tramitação contra Lula. O mais avançado é o do sítio de Atibaia, que caminha para ser julgado pelo TRF-4 no segundo semestre. A confirmação da sentença ampliaria o tempo de prisão do petista. Nesta semana, em parecer, a Procuradoria Regional da República recomendou que a pena do de Lula nesse caso fosse aumentada. Além disso, o desembargador Leandro Paulsen, que integra a turma que julgará o caso na corte, disse ser “possível que (o julgamento) aconteça no segundo semestre”. O ex-presidente ainda é réu em mais sete processos.

Uma eventual soltura de Lula teria, obviamente, impacto significativo na cena política do país. A maior operação de combate à corrupção da história poderia perder força e teria sua imagem arranhada, mas sendo Moro ainda o ministro da Justiça e Bolsonaro eleito na esteira da Lava Jato, uma reação para demonstrar vitalidade do combate à corrupção é dada como certa nos corredores do Palácio do Planalto. E se é verdade que a oposição passaria a ter alguém em torno de quem se aglutinar, o retorno do chefão petista acirraria a polarização da qual emergiu Jair Bolsonaro, com óbvias vantagens para o presidente. Com o jogo em andamento, o certo é que a imagem de Gilmar Mendes casou-se para sempre com a de Lula. Como disse um petista a Crusoé: “Ele virou o rei do PT”.

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