As ruínas das torres de marfim

20.12.19

Durante a Revolução Francesa, os termos “direita” e “esquerda” entraram definitivamente para o vocabulário político. O posicionamento físico em que parlamentares de determinadas correntes políticas escolhiam ficar na Assembleia Nacional Constituinte Francesa e, posteriormente, na Assembleia Nacional Legislativa Francesa praticamente definiu o vocabulário que é usado até hoje na delineação de posições político-partidárias. Os que se sentavam à esquerda, grupo majoritariamente composto por revolucionários iluministas, vislumbravam a construção de uma nova França a partir da destruição da velha árvore monárquica. Os que se sentavam à direita, reformistas com ideais monárquicos, visavam a estruturação de uma nova França baseada na conservação dos bons frutos da velha. Depois da sangrenta jornada de 1793, a reestruturação dos grupos ideológicos ficou mais evidente e a definição de “esquerda” com os jacobinos e “direita” com os girondinos se estabeleceu.

Ao longo da história, algumas expressões tiveram seus significados contorcidos pela esquerda — que, com maior domínio da imprensa e da indústria do entretenimento, vendeu a demonização de palavras como “conservador e liberalismo”, “propriedade e privado”, “capitalismo e lucro”. Já para o espectro ideológico de Karl Marx, expressões e palavras como “bem social”, “igualdade e modernidade”, “revolução e proletário” foram adesivadas à política de que mais estado na vida das pessoas significa mais progresso. Na guerra midiática de perfis, o foco da esquerda ainda parece ser a pintura de direitistas como elitistas, racistas, egoístas, machistas e mais uma série de “istas” que não caberiam neste artigo.

Divisões ideológicas fazem parte do mundo há séculos, mas talvez a atual sociedade esteja testemunhando um dos períodos de maior animosidade no campo político. Em um palco cada dia mais polarizado, a dicotomia parece estabelecida fortemente no cenário político de várias democracias pelo globo. Posições individuais estão a cada dia mais expostas, embora ainda falte no Brasil uma atitude honestamente aberta — e por que não dizer madura — de parte da imprensa que se traveste de “isenta”, mas que doura pílulas diárias de militância progressista.

Quando saímos do noticiário mainstream, como dizem os ianques, não é difícil entender os motivos que levaram vários segmentos e veículos da velha imprensa a perder, vertiginosamente, terreno e credibilidade aos olhos de leitores e espectadores. Teorias vendidas pela mídia como eleições vencidas por causa das “tias do WhatApp” ou por “interferência russa” só não são piores quando os ex-donos dos portões e do monopólio da informação ofendem milhões de eleitores pelo mundo afirmando que eles não sabem votar. É a intelligentsia dizendo para você que você não sabe escolher e que você não sabe o que é melhor para você.

Em um momento político global de quebras de paradigmas e narrativas, fica mais evidente que muitos analistas não estão conseguindo entender o que está acontecendo. O descolamento das chamadas “classes falantes” e elites progressistas do senso comum mostra, não apenas análises erradas e completamente desconectadas da realidade, mas um desprezo pela verdadeira ideia de democracia que anda teimando em não seguir suas ordens. Parte dessa elite atual, formada em sua grande maioria por esquerdistas, impregnados com a autodenominação de justiceiros sociais, perdeu completamente o elo com o povo. O movimento, hoje percebido por qualquer pessoa que tenha acesso à internet, foi muito bem descrito no necessário livro A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia (The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy), do crítico social e historiador americano Christopher Lasch.

No último livro de Lasch, publicado um ano depois de sua morte em 1994, o sociólogo descreve um princípio da filosofia política que foi exposto visceralmente em 2016, com a eleição de Donald Trump nos EUA, com a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018 e com o Brexit no Reino Unido. A Rebelião das Elites… é um ensaio impiedoso contra a atuação de alguns segmentos elitistas da sociedade e vem carregado com observações e dados esclarecedores, tão necessários em tempos de análises jornalísticas embasadas em pura “achologia”. Lasch mostra um movimento populista, sem dar à palavra o tom pejorativo, que consiste em resgatar a responsabilidade direta dos políticos perante a sociedade.

O princípio político de Lasch é o de que as elites, que deveriam ter o papel de dar o exemplo moral e intelectual à sociedade, enclausuram-se em suas bolhas ao ver suas vontades políticas não se concretizando, e se revoltam contra a própria sociedade civil, exibindo um comportamento similar à rebelião das massas que Jose Ortega y Gasset descreve no clássico livro da década de 30 (o título do livro de Lasch, inclusive, é uma referência cruzada ao também necessário Rebelião das Massas do espanhol). O sociólogo descreve como essas elites foram se trancando em suas respectivas torres de marfim, manipulando e manobrando a informação e o conhecimento ao longo de anos. A brilhante provocação de Lasch é exatamente sobre o fato de que as elites que deveriam nutrir e proteger as artérias democráticas acabam por trair a democracia (subtítulo do livro), não conseguindo esconder seus discursos tirânicos e autoritários travestidos de libertários.

Esta semana, todas as nuances do magnífico ensaio de Lasch estamparam mais uma vez as páginas dos jornais pelo mundo, com a vitória esmagadora dos conservadores sobre os trabalhistas na eleição realizada no Reino Unido. Em mais um capítulo de um movimento político que vem surpreendendo a maior parte de analistas e jornalistas pelo mundo, os tories (conservadores) conquistaram 364 cadeiras no Parlamento, contra 203 assentos conquistados pelos labours (trabalhistas). Com acachapante maioria, Boris Johnson manteve o cargo de primeiro-ministro para levar adiante o Brexit. Desde 1987, liderados por Margaret Thatcher, os conservadores não obtinham um resultado tão expressivo. Para os trabalhistas, foi o pior resultado desde 1935 — perderam, inclusive, em distritos que não elegiam conservadores desde a primeira metade do século passado, como Blyth Valley, distrito em que os trabalhistas predominavam desde 1950.

O que pensa a intelligentsia, segundo Lasch, composta por partidos políticos, grandes veículos de comunicação, universidades e intelectuais, engloba uma série de opiniões unicamente enquadradas no que eles acreditam ser melhor para todos. Lasch é enfático ao descrever o comportamento como uma espécie de tirania que sufoca o cidadão comum. O nojo e o desprezo dessas elites aos milhões de fazendeiros que votaram em Trump, às tias do WhatsApp que votaram em Bolsonaro, e agora a milhares de britânicos da classe trabalhadora que votaram nos conservadores, fica mais latente e impossível de serem mascarados com o forte movimento à direita em muitos países.

Bruno Tolentino, poeta e escritor brasileiro falecido em 2007, dizia que a troca do mundo tal como ele é pelo mundo como ideia simplesmente não existe. Achar que o mundo é uma ideia que pode ser colocada numa gaveta e ser manipulada como e quando bem entenderem, conforme certas vontades, não é a realidade. E, no fundo, o que eles não conseguem esconder mais é o ódio à realidade. A realidade não presta para a intelligentsia, se não for a realidade utópica e pedante em que acreditam. É por isso que precisam deslegitimar opiniões e aspirações de quem não pensa — e não vota — como eles. A intelligentsia em seu pedestal pode ser barulhenta, mas a maioria, apesar de silenciosa, ainda é maioria.

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