A guerra brasileira
Desde que passou a ter chances reais de alcançar o Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro sempre se moveu de acordo com as circunstâncias. Parlamentar de perfil nacional-desenvolvimentista, assumiu a ortodoxia liberal depois de entender que esse era o único receituário possível diante do cenário de terra arrasada deixado pelo PT. Sob as bênçãos de pesos pesados do PIB – como costuma ser chamado o grupo que reúne os grandes empresários, banqueiros e agroexportadores do país – o então candidato encarnou o anti-Lula e o resto já é história. Agora, diante da mais grave crise já enfrentada pelo seu governo, e que engolfou economias mundiais muito mais imunizadas do que a nossa, o presidente mais uma vez teve de agir premido pelas circunstâncias. Foi, de novo, não por convicção, mas preocupado com a sobrevivência do próprio governo, que o presidente se movimentou nos últimos dias. Desde a eclosão da pandemia do coronavírus, Bolsonaro nunca esteve convencido de seu potencial explosivo, tanto para a saúde pública quanto para a economia. A aliados, sempre repetiu o que manifestou publicamente: que tudo não passava de histeria. Sobreviveríamos à doença que já aterrorizava o mundo, senão incólumes, com poucas avarias, entendia o presidente.
A perda de popularidade, identificada em monitoramento de redes sociais e o rufar das panelas e gritos em redutos que sempre lhe franquearam apoio, somada ao temor de ficar carimbado com a pecha de irresponsável depois de aparecer cumprimentando manifestantes na rampa do Planalto, quando ainda estava com resultado de exame de coronavírus pendente, e à preocupação com as consequências políticas do derretimento das contas públicas, fizeram o presidente dar um cavalo de pau. Mesmo que se discuta a eficiência da mensagem transmitida durante entrevista coletiva concedida na tarde de quarta-feira, 18, ao lado de ministros e com todos paramentados com máscaras, a verdade é que o Planalto reagiu e, somando-se ao Ministério da Saúde, que já vinha fazendo um bom trabalho, partiu para a guerra contra o novo coronavírus.
A reação veio também na forma de um pacote de 169,6 bilhões de reais para tentar conter os danos da epidemia à economia. Além do auxílio financeiro a trabalhadores informais e desempregados, que receberão 200 reais mensais para as despesas básicas (a ajuda foi logo apelidada de “coronavoucher”), haverá simplificação de normas para o teletrabalho e antecipação de férias e feriados. O governo vai liberar também a redução proporcional de salários e de jornadas de trabalho. O corte, entretanto, não poderá resultar em remunerações inferiores a um salário mínimo. Outra medida destinada a desafogar trabalhadores e empresários é a suspensão de cobranças e a facilitação para renegociar dívidas com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Dentro de casa, o caixa do Ministério da Saúde foi reforçado em alguns bilhões.
Empresários do turismo, afetados pelo cancelamento em massa de viagens, também pedem socorro. “O setor, responsável por mais de 1 milhão de empregos diretos e indiretos, não vai suportar o impacto financeiro, caso não haja uma intervenção do governo federal”, alegaram, em nota, oito grandes entidades representativas de hotéis e atrações turísticas. Com queda de 90% no faturamento, bares e restaurantes querem que o governo pague o salário dos funcionários enquanto durar a quarentena social. O ministro Paulo Guedes anunciou que, se for preciso, novas medidas para enfrentar a crise serão anunciadas a cada 48 horas. Assim como aconteceu na semana passada, o real seguiu se desvalorizando ante o dólar e a Bolsa de Valores despencou. No front do Judiciário, já prevendo um turbilhão de processos de todo tipo em razão da crise, as autoridades se movem para abrir caminhos legais que permitam dar vazão à demanda, sem que as decisões impliquem mais riscos para a estabilidade do país.
Para além do impacto na economia, o presidente também age, claro, de olho na ressaca política que emergirá no rastro da pandemia. Até a noite de quinta-feira, 19, o novo coronavírus já havia matado sete pessoas e infectado pelo menos 621 no Brasil. Hoje, é impossível dimensionar a extensão do estrago na saúde e na vida das pessoas. O que se sabe é que ele virá – e ainda com mais força.
Os temores da elite econômica, um dos pilares de sustentação de Jair Bolsonaro, ainda não são fortes o suficiente para abalar politicamente o governo. O sentimento geral no Congresso – que é quem pode complicar a vida de Bolsonaro – é de que, por ora, é melhor deixar tudo como está para que não fique ainda pior. Por “deixar tudo como está”, leia-se não criar embaraços na Câmara e Senado capazes de colocar o governo em xeque. Embora tenha se surpreendido com a contundência dos panelaços, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já deixou claro a interlocutores que não pretende dar vazão aos pedidos de impeachment que surgirem contra o presidente, como, por exemplo, o apresentado pelo deputado Alexandre Frota, do PSDB, no fim da tarde desta quinta-feira, 19. Crusoé apurou que Maia pediu expressamente a aliados que evitem defender a saída de Bolsonaro. Ele avalia que a crise do novo coronavírus é de proporções gravíssimas e não seria razoável escalar a guerra política neste momento. Ao mesmo tempo, o deputado e seu entourage calculam que encurralar o governo agora seria “jogar o jogo” de Bolsonaro, que aproveitaria o gesto para reforçar o discurso de que sofre perseguição de integrantes da política tradicional.
Em conversas reservadas, Maia tem dito que não quer ser comparado ao ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. Após romper com a então presidente Dilma Rousseff, o ex-deputado patrocinou a aprovação de várias pautas bombas para o governo e foi o responsável por detonar o processo de afastamento da petista. Cunha acabou cassado pelos próprios colegas e preso pela Lava Jato. O atual presidente da Câmara repete que não pautará projetos que signifiquem despesas para o governo, a não ser que estejam dentro do pacote de combate ao coronavírus.
Do outro lado da Praça dos Três Poderes, Bolsonaro ganha fôlego para focar no essencial, qual seja, o combate à crise. Depois de ser bombardeado de críticas por sua estratégia de não dar importância à pandemia, o presidente mobilizou ministros, chamou chefes de outros poderes para conversar, concedeu entrevistas e tentou deixar de lado a imagem de inação. Agora, terá pela frente o desafio de conduzir o Brasil durante uma guerra branca de proporções gigantescas, com reflexos na saúde pública, na economia e na política. Ninguém sabe por quanto tempo famílias ficarão isoladas e fábricas e lojas permanecerão com as portas fechadas. De casa, uma sociedade apreensiva acompanha o desenlace da crise. Ao menos na luta pela sobrevivência do país e contra o novo coronavírus, todos parecem estar do mesmo lado.
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