MarioSabino

A criança do ano

11.12.20

A revista Time, que há trinta anos era a publicação mais influente do planeta, agora ganha o noticiário apenas quando elege “a pessoa do ano” (que antes era “o homem do ano”). Faz isso há 92 anos. Nem sempre a personalidade era escolhida por fazer um bem imenso à humanidade, mas até pela magnitude do contrário. Em 1938, por exemplo, o eleito foi Adolf Hitler. Com o tempo, o estilo Nobel de bonzinho foi se sobrepondo ao eminentemente jornalístico. Diante da baixa geral de interesse por que fazemos nesta profissão, a Time resolveu criar também a categoria “criança do ano”. Pelo que entendi, para ser eleita, não basta tirar boas notas, obedecer aos pais, brincar saudavelmente com outras crianças, fazer alguma pequena ação social entre os seus afazeres escolares e recreativos, comer frutas e verduras e dormir pelo menos oito horas por dia. A “criança do ano” é aquela que tem preocupações de adulto e age como tal. E adulto com quociente de inteligência bem acima da média.

A “criança do ano” deste 2020 que ninguém vê a hora de terminar é a menina Gitanjali Rao, americana descendente de indianos, que mora num subúrbio de Denver, no estado do Colorado. Ela tem 15 anos e foi selecionada entre 5 mil candidatos entre 8 e 16 anos. Ao contrário do meu filho mais novo que está prestes a completar a idade de Gitanjali Rao, a menina obviamente não se contenta em passar de ano. Cientista precoce, quer ser modelo para a sua geração e as vindouras. Quem a entrevistou para a Time foi a atriz Angelina Jolie, que tem seis filhos, dos quais três adotados, e mesmo assim encontra tempo para trabalhar para o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (a revista deveria criar a categoria “mãe do ano”). 

A redatora-chefe da Time for Kids — sim, existe uma — disse que todos os concorrentes eram “crianças como as outras que decidiram mudar alguma coisa nas suas comunidades, de maneira divertida e acessível, mas muito importante”. O que posso dizer é que se Gitanjali Rao é uma criança como as outras, os nossos filhos deveriam passar por uma tomografia no cérebro. Deve ter alguma coisa muito errada com eles.

Gitanjali Rao, que cursa o segundo ano do ensino médio, participou do desenvolvimento de coletivos (odeio essa palavra) que reúnem um total de 30 mil crianças e adolescentes, não só nos Estados Unidos, empenhados em buscar soluções tecnológicas para os problemas sociais e ambientais. A menina disse a Angelina Jolie que “os estudantes com os quais trabalho não sabem por onde começar. Acho que se você lhes acende uma faísca a partir da qual eles podem construir algo, isso muda tudo: uma pessoa a mais no mundo se prepara para ter ideias para resolver nossos problemas”.

Ela é insuportavelmente inteligente: em 2018, foi escolhida a melhor jovem cientista dos Estados Unidos, num concurso patrocinado pela gigante de tecnologia 3M e já deu uma conferência TED. No programa de Jimmy Fallon, o Tonight Show, mostrou um aparelho inventado por ela que mede a quantidade de chumbo presente na água e mostra o resultado num aplicativo. Confiável e barato, o que é ótimo para países pobres. Eu já exigiria que o meu filho entrasse sem vestibular na faculdade se ele tivesse feito isso, mas Rao foi muito além. Também criou um aparelho que mede o nível de adicção em opiáceos, por meio da taxa de proteínas produzidas por um dos genes responsáveis pela dependência química. Não para por aí: leio que ela inventou ainda uma extensão do Chrome que sublinha palavras insultantes ou desrespeitosas quando alguém está digitando um texto e pede confirmação se essa é mesma a intenção. A ideia é diminuir o assédio moral nas redes.

A menina diz que todo mundo pode fazer ciência. Acho a afirmação otimista. O que pode existir é mais gente fazendo ciência, com resultados que seriam positivos para todo mundo. Mas o meu ponto não é a ciência. É a infância. Tal como a prezamos e a cercamos de cuidados, ela massificou-se quando as atividades econômicas se tornaram mais específicas e complexas — o que exigia maior quantidade de cérebros bem nutridos, mais desenvolvidos e adestrados desde cedo. Demandava tempo de maturação e formação. Foi a partir do final do século XVIII, com a primeira Revolução Industrial, que a infância começou ganhar contornos até então existentes somente nas classes abastadas, e ampliou-se o ensino universal. O objetivo era produzir gente preparada para as novas tarefas a ser executadas. Funcionou.

Naturalmente, há crianças mais e menos dotadas intelectualmente, apesar das tentativas cada vez mais frequentes de igualar todas na escola, por meio de conceitos mais subjetivos do que as impiedosamente objetivas notas matemáticas. E há as crianças-prodígio, em especial nas artes. A mais emblemática é Wolfgang Amadeus Mozart, que começou a compor quando tinha 5 anos. Não importa o campo do seu talento, elas dificilmente ultrapassam o aspecto circense e conseguem levar a genialidade pela vida toda. Mozart é uma das exceções. Crianças-prodígio são objeto de curiosidade porque exibem habilidades e talentos de adultos. Gitanjali Rao chama atenção por pensar e ter preocupações de gente grande, não pela essência da sua infância. É assimétrica como todo pequeno prodígio.

Desse ponto de vista, a categoria “criança do ano” é um despropósito, por mais inspiradora que a menina seja. Seria mais apropriado que a exaltassem como “pessoa do ano” de uma vez, tal como fizeram com Greta Thunberg. A minha observação final é que parece que estão esquecendo que crianças precisam de maturação emocional para se tornarem adultos razoavelmente saudáveis — a maturação emocional está também prevista pela massificação da infância iniciada mais de duzentos anos atrás. Trabalhar continuamente desde muito cedo em favor de causas grandes e nobres é louvável moralmente, excelente para a propaganda de certos movimentos, mas talvez seja pesado demais do ponto de vista psicológico. Ser capa da Time aos 15 anos pode criar um adulto frustrado lá adiante. Ou mais frustrado do que a média de todos nós. Espero estar errado e que Gitanjali Rao, assim como as outras “crianças do ano”, não esteja sendo sacrificada no circo midiático. Vidas infantis importam.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO