Adriano Machado/CrusoéO bunker das excelências: reuniões secretas de dia, festas animadas à noite

A casa secreta

Em um endereço nobre de Brasília, altas autoridades da República participam de festas em plena pandemia. Mas não é só isso: o lugar serve para encontros fora de agenda – e longe dos holofotes – até mesmo para ministros conspirarem contra ministros
17.07.20

Já faz algum tempo que, em plena pandemia, festas de arromba em uma portentosa casa do Lago Sul, uma das áreas mais exclusivas de Brasília, tiram o sossego dos vizinhos. As festas ocorrem, quase sempre, às quartas-feiras e costumam varar a noite. O burburinho e a música alta, por vezes ao vivo e entoada por barulhentos cantores sertanejos, já foram até motivo de queixa na polícia. Seria só mais um caso entre tantos nesta quarentena, não fosse por um detalhe: as baladas contam com a participação de algumas das mais altas autoridades da República, como será possível ler a seguir.

Não é só isso. Se serve para animadas festas, a casa também é usada por servidores do mais alto escalão do governo como uma espécie de bunker para reuniões fora de agenda e longe dos holofotes da Esplanada dos Ministérios. O novo ministro das Comunicações, Fábio Faria, é um assíduo frequentador do local. Desde que assumiu a cadeira, há um mês, ele vem usando o endereço para reuniões que, por diferentes motivos, não aparecem no seu rol de eventos oficiais, cuja publicidade é obrigatória.

A casa, embora grandiosa (são quase 700 metros quadrados de área construída), é discreta. O muro alto com detalhes em madeira e a fachada sisuda, decorada por meia dúzia de palmeiras, não destoam muito da vizinhança. Foi a frequência estrelada, porém, que passou a chamar a atenção. Nesta quarta-feira, 15, Fábio Faria chegou ao local na hora do almoço, a bordo do carro oficial de ministro, com placa verde-amarela. Um serviço de buffet havia sido contratado para fornecer a comida. O movimento de seguranças, observado à distância por Crusoé, indicava que algo importante aconteceria por ali.

Faria tinha marcado uma reunião às escondidas com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Queria aproximá-los. A relação de Guedes com Maia andava estremecida havia tempos. A ideia do ministro das Comunicações, amigo de ambos, era que eles aproveitassem a oportunidade para aparar as arestas. Pouquíssimas pessoas em Brasília tinham conhecimento do encontro, que só vazaria para jornalistas no dia seguinte.

Muito provavelmente, nem Guedes nem Rodrigo Maia sabiam ao certo onde estavam pisando. Mas deveriam saber. O lugar que Fábio Faria tem usado regularmente para os encontros que não quer fazer em gabinetes da Esplanada exprime uma indesejada mistura de interesses públicos e privados, aquela combinação que está desde sempre na origem de muitos dos escândalos do poder.

Adriano Machado/CrusoéO ministro Fábio Faria em frente à casa: reuniões fora de agenda
O primeiro sinal dessa mistura está logo na garagem da casa, onde repousa uma SUV registrada em nome da Indústria Brasileira de Artigos Refratários. A companhia pertence a um ex-diretor da Fiesp, a Federação das Indústrias de São Paulo, Carlos Henrique da Silva Ferreira. Funcionários da residência, escalados para servir Faria durante as reuniões que ele promove no local, são contratados por Ferreira.

A quarta-feira foi exemplar da maneira como o ministro tem usado e abusado do bunker. Já era quase meio da tarde quando Fábio Faria deixou a casa. À noite, ele voltaria, em mais uma indicação de que o imóvel no Lago Sul se transformara em uma espécie de gabinete paralelo.

Por volta das 21 horas, o ministro chegou, de novo em seu carro oficial. Ele já era aguardado no local por pelo menos duas pessoas e emendaria conversas até perto da meia-noite. Um garçom contratado pelo industrial e ex-dirigente da Fiesp estava escalado para servi-lo. Crusoé, mais uma vez, acompanhou o entra-e-sai do ministro.

Naquela noite, uma das interlocutoras de Faria foi Martha Seillier, secretária especial do PPI, o Programa de Parcerias de Investimentos, por meio do qual o governo federal pretende firmar parcerias público-privadas. Também passou por lá Daniella Marques, assessora especial e estrategista do ministro Paulo Guedes.

Um carro executivo, registrado em nome de uma locadora de Curitiba, aguardava do lado de fora, com o motorista de prontidão. Não se sabe exatamente quem ele estava aguardando, mas certamente era alguém que não queria dar as caras em público – já no fim da noite, depois de funcionários da casa perceberem a presença do repórter e do fotógrafo, o portão se abriu e o carro entrou na garagem. Saiu em seguida, levando o interlocutor misterioso.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMartha Seillier: Faria quer escantear Salim Mattar e procura ajuda
A agenda secreta daquela noite de quarta dá ares de conspirata às conversas que Faria faz questão de manter em local discreto e distante dos supervigiados gabinetes da região central de Brasília, onde ficam os ministérios.

A conversa com Daniella Marques, a super assessora de Paulo Guedes, ilustra bem isso: Faria participa, nos bastidores, de uma costura para torná-la ministra da Secretaria de Governo, no lugar do general Luiz Eduardo Ramos. Em conversas reservadas nos últimos dias, o próprio Paulo Guedes não se opôs à ideia. Rodrigo Maia, de quem Daniella é próxima, avaliza. O passo seguinte parece ser o mais difícil: convencer o presidente Jair Bolsonaro.

Ex-sócia de Guedes, Daniella Marques é amiga pessoal de Maia e tem laços estreitos com várias correntes de parlamentares. Na leitura de Fábio Faria e dos demais apoiadores do plano, como ministra ela facilitaria a articulação do governo com o Congresso e poderia ajudar a aprovar mais facilmente propostas de interesse do Planalto e, em particular, da equipe econômica. Ramos, o atual responsável pela interface com o Parlamento, enfrenta dificuldades de diálogo tanto com Rodrigo Maia quanto com Davi Alcolumbre, presidente do Senado.

As reuniões de quarta-feira de Fábio Faria na casa do Lago Sul amarram três das principais pontas da ousada articulação, cujo alvo, em última instância, é ninguém menos que um dos ministros-generais mais próximos do presidente da República: Paulo Guedes e Maia, pela manhã, e a própria Daniella Marques, a virtual candidata à sucessão de Ramos, à noite. Não é algo trivial. O general sabe que Faria trabalha contra ele – isso, aliás, virou motivo de desconforto no palácio nas últimas semanas.

O assunto tratado com Martha Seillier, a chefe do PPI, também guarda relação com as guerras internas do governo: Fábio Faria, cacifado por Rodrigo Maia, quer tirar de Salim Mattar, secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia, o poder de decisão sobre a privatização de empresas ligadas à pasta das Comunicações – é o caso da EBC, da Telebrás e dos Correios. Ele quer tomar as rédeas do tema, e entende que Mattar, por não ter boa interlocução no Congresso, atrapalha os planos. Seillier é vista pelo ministro como uma possível aliada na estratégia.

DivulgaçãoDivulgaçãoO deputado Mussi: Fábio Faria diz que é ele quem empresta a casa
A Crusoé, Fábio Faria não quis dar declarações sobre os dois assuntos. Acerca de sua frequência na casa, o ministro admitiu que usa o imóvel frequentemente para reuniões mais reservadas. Disse que o espaço costuma ser cedido a ele por um amigo, o também deputado federal Guilherme Mussi, filho do industrial Carlos Henrique Ferreira, o ex-diretor da Fiesp que, segundo a apuração de Crusoé, banca a estrutura. Mussi é ex-concunhado de Fábio Faria. Ele foi casado com Rebeca Abravanel, filha do apresentador Silvio Santos e irmã de Patrícia Abravanel, mulher do ministro.

Não são apenas encontros políticos que ocorrem na casa do Lago Sul. Há outros tipos de reuniões, inclusive com personagens do mundo corporativo que representam empresas com interesses no governo. No papel, o imóvel está em nome de uma empresa do consultor Mário Rosa, investigado pela Polícia Federal na operação que mirou o ex-ministro petista Fernando Pimentel e amigo do peito de vários figurões do Congresso. A Crusoé, Rosa disse que aluga a casa para a família do deputado Guilherme Mussi e que não tem conhecimento dos eventos que são realizados no local.

Fábio Faria diz que não tem qualquer relação com as badaladas festas realizadas na casa em meio à pandemia — a outra face das atividades do imóvel, que segundo os vizinhos é utilizado apenas para eventos e reuniões. Uma dessas festas, porém, foi organizada justamente para comemorar a posse dele como ministro do governo Bolsonaro. Entre os convivas estava outro ministro, Ricardo Salles, do Meio Ambiente. Salles teve direito até a uma homenagem especial no show particular contratado para a ocasião. “Um abraço aí para o meu amigo ministro Ricardo Salles, que estava com a gente no final de semana passado, comendo um porquinho”, disse o cantor ao microfone. Salles admitiu ter participado da festa, mas garantiu que não voltou para outras. “Não fui mais nenhuma vez nem tenho conhecimento de outras festas”, disse.

O ministro pode não saber, mas, a exemplo das reuniões secretas do colega Fábio Faria, as baladas por ali são frequentes. Em uma das ocasiões, a polícia chegou a ser acionada pelos vizinhos, em razão do barulho noite adentro, e ordenou que a banda parasse de tocar. Sempre há excelências entre os convivas, quando não são elas próprias as homenageadas ou as anfitriãs. Em um convescote noturno recente, a estrela da noite era o senador Ciro Nogueira, um dos chefes do Centrão e presidente do Progressistas, o partido do deputado paulista Guilherme Mussi. A folia adentrou a madrugada. Moradores das cercanias registraram o carro oficial de Ciro, com placas de bronze do Senado, estacionado em frente ao imóvel nas primeiras horas da manhã seguinte. O senador não respondeu às tentativas de contato da reportagem.

Crusoé também não conseguiu localizar nem o industrial Carlos Henrique Ferreira nem seu filho, o deputado Mussi, responsáveis pela casa do Lago Sul. Recentemente, o programa Fantástico, da Rede Globo, exibiu uma reportagem sobre festas promovidas por Mussi durante a pandemia em um condomínio de luxo de São Paulo. Imagens gravadas por câmeras de segurança mostravam convidados circulando sem máscaras e som bem acima do normal em pelo menos três eventos. Em Brasília, a história se repete. Só que o problema não está apenas nas ruidosas festas em plena quarentena.

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