ReproduçãoEm live, o presidente, de máscara branca, desmobilizou os protestos marcados para o dia 15

O vírus chega ao palácio

Com a doença que as assombra de perto e um cenário de devastação no mercado, as autoridades finalmente se deram conta do risco que a epidemia da Covid-19 representa não só para a saúde dos brasileiros, mas também para a já combalida economia do país
13.03.20

Por volta das 10 horas da manhã da quinta-feira, 12, a notícia se espalhou: o secretário de Comunicação da Presidência da República, Fabio Wajngarten, um dos auxiliares mais próximos do presidente Jair Bolsonaro – e que com ele compartilhou cafés da manhã e almoços durante viagem aos Estados Unidos no último fim de semana, testou positivo para o novo coronavírus. O vírus que alarmava o mundo e já havia deixado 4.613 mortos fora inoculado no Olimpo do poder brasileiro. Num átimo de tempo, uma mesma pergunta povoou a mente de todos, quase que por transmissão de pensamento: “será que o presidente também foi contaminado?”. O que, até aquele instante, era encarado como algo distante da realidade palaciana, passou a ser tratado com uma possibilidade mais do que concreta – uma chance provável. O próprio Bolsonaro, que havia classificado a pandemia como “fantasia propagada pela mídia”, dias antes, mudou diametralmente de postura. Antes mesmo de qualquer recomendação de auxiliares e poucas horas depois de saber do teste positivo de Wajngarten, submeteu-se a testes capazes de detectar a doença. Cancelou compromissos. Passou a ser monitorado pelos médicos do Alvorada. Recomendou que todos os integrantes da comitiva da viagem também tirassem a prova da contaminação pelo coronavírus – e assim foi feito.

Às 15 horas, Bolsonaro recebeu a visita de um preocupado Eduardo Bolsonaro, seu filho “03”, que também realizou exames para detectar o vírus causador da Covid-19. Um princípio de pânico se instalou no palácio: com sintomas de um leve resfriado, o mandatário do país passou a achar que estava realmente com a doença. Assessores foram vistos despachando com o presidente no Alvorada de máscaras. Em conversa por telefone com o dileto amigo Alberto Fraga, Bolsonaro o instruiu a não visitá-lo. “Falei com ele pelo telefone. Ele disse para eu não pisar lá, porque ele acha que pode estar doente”, disse Fraga a Crusoé. Em meio à tensão, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, que esteve nos EUA na companhia do presidente e de Wajngarten, sentiu-se indefeso. Comunicou aos colegas que, por precaução, iria trabalhar de casa. Às 18h38, a parlamentar bolsonarista, Bia Kicis, postou em seu perfil no Twitter que Eduardo havia informado “que o teste de seu pai deu negativo para coronavírus”. “Graças a Deus!”, comemorou. Minutos depois, no entanto, a deputada capitulou. “A negativa era para sintomas, que, felizmente, o presidente não tem. Peço desculpas pela informação precipitada”, escreveu.

O próprio presidente, devidamente mascarado ao lado do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em live no Youtube, se encarregaria de comunicar à população que ainda estava tomado pela angústia: o resultado final do teste para o coronavírus não estava pronto – quer dizer, a espada de Dâmocles permanecia sobre sua cabeça. O propósito do pronunciamento, no entanto, era outro. Qual seja, o de conclamar à militância a não comparecer aos protestos marcados para o dia 15. “Uma das ideias é adiar. Daqui a um mês, dois meses se faz. Já foi dado um tremendo recado ao Parlamento”, disse. Depois de efetuar disparos de vídeo por WhatsApp e de promover a manifestação durante um evento público, o presidente, enfim, levava a cabo uma medida com alguma dose de sensatez. Conforme apurou Crusoé, apesar de recorrer a evasivas desde que o tema entrou em pauta, Bolsonaro sempre esteve no comando dos atos contra o Congresso. Antes do pronunciamento oficial do presidente, quando ainda não se sabia da possibilidade de infecção de Bolsonaro, a deputada Bia Kicis já aventava a possibilidade da suspensão dos protestos. Deixava claro, no entanto, que nada seria feito sem o aval do presidente – algo de que ela própria cuidaria.

O cancelamento de uma manifestação que parecia cara ao presidente da República evidenciou que o desembarque novo coronavírus no centro do poder no Brasil, muito antes da anunciada e inevitável disseminação da doença pelo território nacional, elevou a pressão política em um cenário já de forte tensionamento, sobretudo em razão dos sobressaltos econômicos que se avizinhavam. Na verdade, a lógica do coronavírus, que ameaça mais os pacientes com saúde debilitada, aplica-se também à economia: a baixa imunidade brasileira amplia a exposição do país à tempestade perfeita. Na noite de quarta-feira, 11, em reunião de urgência, ministros do governo apelaram ao Congresso pela liberação de 5 bilhões de reais para prevenir a população brasileira da pandemia global. O recurso seria oriundo do PLN 4/20, que totaliza 17 bilhões de reais. No mesmo encontro, Mandetta alertou que a crise de contaminação deverá durar entre quatro e cinco meses no país, ou “20 semanas duras”, com impactos graves na saúde, na economia e com a necessidade de cuidados especiais aos grupos de risco da sociedade.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéEduardo Bolsonaro foi visitar o pai no Alvorada
Além de batalhar pela injeção extra de recursos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer aproveitar o cenário sombrio para emplacar as reformas, propor novas medidas e tentar reduzir o impacto da pandemia no Produto Interno Brasileiro. Diante de sucessivos conflitos com o Legislativo e de uma delicada conjuntura econômica, com dólar em alta e a Bolsa que despenca entre sucessivos “circuit breakers”, a realidade está bem longe da “fantasia” aventada por Bolsonaro na última terça-feira, 10.

A operação de guerra contra a crise, montada por Paulo Guedes, foi deflagrada às 9h30 da última segunda-feira, quando o ministro da Economia chegou à sede da pasta para cumprir expediente. Àquela altura, os mercados financeiros estavam em polvorosa com as notícias do avanço do coronavírus no mundo e da guerra do petróleo envolvendo a Rússia e a Arábia Saudita. Na portaria do ministério, Guedes concedeu entrevista à imprensa. “Nós estamos absolutamente tranquilos. É uma equipe serena, experiente. Já vivemos isso várias vezes. Conhecemos isso e sabemos lidar. Então, é hora de justamente termos uma atitude construtiva. Os três poderes, com serenidade, cada um resolvendo a sua parte”, declarou o ministro.

O cenário, no entanto, é de devastação. Para Marcel Balassiano, economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, a crise gerada pelo coronavírus e pela queda brusca do preço do petróleo deve levar a um menor crescimento do PIB em 2020. “As projeções para este ano estão sendo revistas, com viés negativo. A estimativa era que oscilasse entre 2% e 2,5%. Agora, fala-se em um crescimento do PIB entre 1,5% e 2%”. Os impactos na economia, avalia o especialista, vão depender do avanço do vírus e das medidas adotadas para combatê-lo. “Se as escolas suspenderem as aulas, se as pessoas começarem a trabalhar em esquema de home office, isso tudo vai gerar um impacto enorme no setor de serviços”, afirma Balassiano.

Para a nossa sorte, no entanto, Guedes nunca vendeu internamente o otimismo que apresentou em público. A auxiliares, deixou claro que o governo não tinha um “plano B” e que a estratégia era aproveitar a crise para avançar com projetos prioritários e pacotes de medidas emergenciais, a serem postas em marcha nos próximos dias. Preocupado com o cenário nada animador, na terça-feira, 10, ele chamou o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para uma reunião no ministério. O encontro fora da agenda oficial durou mais de duas horas. Depois, enviou à cúpula do Congresso ofícios com uma lista de 19 projetos considerados essenciais pela equipe econômica para ajudar a “resguardar a economia brasileira” da crise. Entre as iniciativas, estavam as propostas de autonomia do Banco Central, a que permite a privatização da Eletrobras, a que altera a lei de concessões e a que estabelece novos marcos legais para os setores do gás, elétrico, de saneamento básico, de ferrovias e concessões. Sobre as reformas, renovou as promessas de que serão enviadas “em breve” ao parlamento.

Infectado, Wajngarten (à dir.) esteve bem perto de Trump e do vice, Mike Pence
No dia seguinte, a nuvem de tensão que já pairava sobre a Praça dos Três Poderes ficou ainda mais carregada. O Congresso ousou derrubar o veto de Bolsonaro ao projeto que ampliava o acesso ao Benefício de Prestação Continuada, o BPC, pago a idosos carentes e deficientes. A medida gera um impacto de 20 bilhões de reais nas contas públicas por ano, de acordo com estimativas da equipe econômica. Mesmo irritado, Guedes preferiu refugiar-se no silêncio. Queria evitar que suas declarações contribuíssem para conturbar ainda mais o ambiente inflamável. O ministro, porém, não se conteve em reunião com líderes do Congresso naquela mesma noite. Desabafou que a solução para a crise era política. “Estamos monitorando e, evidentemente, vamos estar flexíveis para as emergências. E aqui passo para o terceiro ponto, que é a solução. A solução é política. Ela é dos senhores”, afirmou o ministro. “Por exemplo, se nós conturbarmos o ambiente político por um lado, o Congresso reage por outro lado, e aprova mais despesas, que não são as que nós queremos, derrubamos o teto, vamos para a Lei de Responsabilidade Fiscal, o governo trava os recursos. Aonde vamos parar?”, indagou.

Como se não tivessem nada a ver com o rombo que acabavam de abrir nas contas públicas, deputados e senadores chiaram. Da plateia, opositores gritaram que o governo precisava parar de “falar e fazer besteira”. Guedes, então, retrucou: “Eu estou rindo de vocês? Estou aqui sério”. Diferenças políticas à parte, as autoridades terão de se engajar no esforço para atenuar os impactos da crise, sob pena de fazerem o país sofrer. Na noite de quinta-feira, 12, na tentativa de reaquecer a economia, o governo anunciou mais uma medida: decidiu antecipar para abril a primeira metade do 13º de aposentados do INSS e propor a redução dos juros e a ampliação de margem e prazo para empréstimos consignados desses beneficiários. A expectativa é de que sejam injetados 23 bilhões de reais na economia. A equipe econômica também considera liberar uma nova rodada de saque imediato aos cotistas do FGTS.

A mobilização para tentar conter os estragos econômicos do coronavírus é mundial. Diante das quedas expressivas na Bolsa, o Federal Reserve, Banco Central americano, interveio e anunciou um programa de oferta de liquidez de 1,5 trilhão de dólares. A medida ajudou a segurar os índices e as perdas, mas o futuro imediato permanece incerto. A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, anunciou outros 120 bilhões de euros para aumentar a liquidez dos bancos, mas a sua intervenção foi considerada tímida. O mercado sentiu falta do antecessor Mario Draghi no comando do BCE, o “Super Mario”, que falou bem mais grosso no crash financeiro de 2008. No Brasil, Guedes e equipe tentam fazer o que podem, e os cidadãos esperam que o Legislativo faça a sua parte. De acordo com o balanço do Ministério da Saúde, até a noite de quarta-feira, 12,  já eram 77 doentes confirmados e 1.422 casos suspeitos. “É provável que o número de infectados aumente. Mas sem necessidade de pânico”, afirmou Bolsonaro, com máscara de proteção, em pronunciamento na TV na noite de quinta-feira, 12. “O momento é de união, serenidade e bom senso”, completou. Que seja.

Atualização: nesta sexta-feira, 13, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que o resultado de seu teste para coronavírus foi negativo.

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