As obras do Comperj, que consumiram 14 bilhões de dólares: cidade fantasma

O custo da corrupção

Após seis anos e dezenas de grandes projetos parados em razão de malfeitos, a Lava Jato deixa mais uma lição: governos e empresas não sabem tocar obras sem as “facilidades” dos cartéis
13.03.20

Em meados de 2016, dois anos antes de ser preso pela primeira vez, o engenheiro Paulo Vieira de Souza confidenciou a um interlocutor, numa cantina italiana em São Paulo, que era impossível tirar qualquer grande obra pública do papel no Brasil sem formar cartel. Os executivos do G5, como ele chamava o “clube” das cinco maiores empreiteiras do país, reuniam-se em áreas privativas de restaurantes sofisticados, com apetite voraz para formatar consórcios, dividir lotes e combinar preços para fraudar licitações bilionárias. O próprio ex-diretor da Dersa, a estatal paulista de projetos viários, sentava-se à mesa com o empresariado para azeitar os acordos e garantir o seu “abadá”, eufemismo que ele mesmo criou para propina. Com pequenas variações, a receita foi aplicada país afora durante décadas. Contratos superfaturados encheram os bolsos de agentes públicos corruptos e abasteceram o caixa dois de campanhas políticas. Até que em março de 2014, a Lava Jato escancarou a corrupção sistêmica encravada em praticamente todos os canteiros. Um a um, os pilares do cartel foram ruindo. Seis anos após o início da Lava Jato, o megaesquema que saqueou o erário ainda deixa poeira por onde passou. Obras essenciais estão abandonadas por falta de recursos em vários estados e hoje simbolizam o duplo prejuízo causado à sociedade.

Epicentro da maior investigação de combate à corrupção já feita no país, a Petrobras cancelou quatro empreendimentos estratégicos em decorrência do propinoduto descoberto pela operação. De forma mais polida, a estatal justifica que “eles não se mostraram mais economicamente satisfatórios”. O caso mais emblemático é o do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, o Comperj, mastodôntico projeto paralisado em 2015 quando já havia consumido 14 bilhões de dólares. Sede da futura refinaria, Itaboraí virou uma cidade fantasma na região metropolitana do Rio, com o impacto da medida na economia local. Em apenas dois contratos, as empreiteiras Odebrecht, a mais destacada do “G5”, e UTC, esta do segundo escalão, mas comandada pelo homem que coordenava o clube, pagaram 58 milhões de reais em propinas a ex-diretores da petrolífera apadrinhados por partidos políticos, como Renato Duque, da cota petista, e Paulo Roberto Costa, da dupla PP-MDB. Até hoje a estatal ainda está estudando alternativas para retomar a construção, sem data para acontecer. Também desoladora é a situação das obras das refinarias do Ceará e do Maranhão, chamadas de Premium I e II, também paradas há quase cinco anos e com seus projetos abortados. A unidade maranhense é uma das fontes geradoras de recursos ilícitos que apareceram na planilha do doleiro Alberto Youssef, assim como a refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, que deve ser privatizada sem a conclusão do segundo conjunto de produção de petróleo.

Opositores da Lava Jato se valem do atual cenário de abandono para propagar a tese de que a operação anticorrupção arruinou a construção civil brasileira para entregar as obras a empresas estrangeiras, como se a falta de dinheiro público para financiar os projetos fosse culpa das investigações, que já recuperaram 4 bilhões de reais. Na maior parte dos casos, são obras para as quais o governo ou a estatal não concede os reajustes contratuais solicitados pelas empreiteiras, prática admitida pelos próprios executivos delatores como forma de superfaturar os serviços prestados. Orçada em 21 bilhões de reais, a usina nuclear de Angra 3, no litoral fluminense, é o melhor exemplo disso. As obras foram paralisadas em 2013, antes do início da Lava Jato, por “desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos” — ou seja, diferença entre os custos previstos na licitação e os estimados pelas construtoras contratadas. A própria Eletrobras admite que as investigações “impossibilitaram o reinício rápido das obras”. Pouco tempo depois, ela defendeu a nulidade dos contratos, firmados com gigantes como Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht, por causa das fraudes delatadas, após um investimento de aproximadamente 7 bilhões de reais. Foi dessa mega-obra, segundo o Ministério Público Federal, que Othon Silva, ex-dirigente da Eletronucler, desviou recursos para abastecer o esquema criminoso comandado pelo ex-presidente Michel Temer. A Eletrobras ainda procura um parceiro privado para concluir o projeto e colocar a usina em funcionamento até 2026.

Sergio Lima/FolhapressSergio Lima/FolhapressPara Paulo Preto: é impossível fazer grandes obras sem o cartel da empreita
Em São Paulo, onde Paulo Preto comandou o cartel entre 2007 e 2010, de acordo com a Lava Jato, um pleito semelhante ao apresentado em Angra 3 foi atendido nas obras do Rodoanel Norte, em 2016, quando a Dersa já era comandada pelos sucessores do engenheiro e operador do PSDB. Depois que o ex-secretário Laurence Casagrande foi preso por assinar aditivos contratuais que teriam resultado em um superfaturamento de 480 milhões de reais em favor das empreiteiras, entre elas a OAS, a obra parou. Os contratos dos seis lotes foram todos rescindidos e, agora, o governador João Doria, também tucano, prepara uma nova licitação para retomar a construção, com um custo ainda mais salgado. Estima-se que toda a construção, que tem 47 quilômetros de extensão, custará 12 bilhões de reais, praticamente o dobro do valor previsto inicialmente. Ou seja: a conta da corrupção acaba por gerar custos ainda maiores ao contribuinte. Parte dos gastos extras do novo orçamento está relacionada a falhas graves de estrutura que foram detectadas nos trechos paralisados por uma auditoria do próprio governo. Curiosamente, a empreiteira que apresenta o maior número de problemas em seus lotes, a Acciona, é a que vai assumir outra obra abandonada envolvida na Lava Jato, a linha 6 do metrô. O contrato por meio de parceria público-privada foi vencido por um consórcio formado por Odebrecht, Queiroz Galvão e UTC, após pagamento de propina para um ex-diretor do Metrô e repasses ilícitos de 8,3 milhões de reais para a campanha do ex-governador tucano Geraldo Alckmin, do PSDB, em 2014, segundo delação da Odebrecht. A construção está parada desde 2016 e deve ser retomada ainda este ano. Até hoje, nenhum agente público foi preso ou condenado.

Já em Goiás, a obra de mobilidade urbana que prometia melhorar a qualidade de vida dos moradores da capital Goiânia foi descartada de vez. O contrato do Veículo Leve sobre Trilhos, o VLT, foi assinado em 2013 com um consórcio liderado pela Odebrecht mesmo com indícios de irregularidades na licitação apontados pelo Tribunal de Contas do Estado. O termo “VLT Goiânia” aparece nas planilhas do departamento de propina da empreiteira baiana como origem de uma série de pagamentos ilícitos feitos ao ex-governador Marconi Perillo, também do PSDB, em 2014. Quando a delação veio a público, em 2017, Perillo suspendeu o projeto. O atual governador, Ronaldo Caiado, do DEM, disse que não irá retomá-lo e que estuda outra opção para melhorar o transporte público na cidade. No Paraná, uma obra usada por outro tucano, Beto Richa, para fazer caixa 2 de campanha com recursos públicos desviados também não foi concluída. Trata-se da duplicação da rodovia PR-323, uma das mais perigosas do estado, que liga Maringá, no norte do Paraná, à região noroeste. Segundo o MPF, a Odebrecht pagou 3,5 milhões de propina ao então chefe de gabinete de Richa para ser beneficiada na licitação. O contrato foi rescindido em 2017, sem liberação de pagamentos à Odebrecht. Sem dinheiro, o atual governo está executando o projeto em lotes e estuda incluir a rodovia no próximo pacote de concessões à iniciativa privada.

No estiloso bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, a cratera aberta para abrigar a futura estação da linha 4 do metrô foi inundada em 2018 para evitar desmoronamento, após dois anos de abandono e cerca de 1 bilhão de reais gastos. Desse contrato saíram cerca de 50 milhões de reais de propina para bancar a vida de luxo do ex-governador Sergio Cabral. A obra deveria ter sido concluída a tempo da Olimpíada de 2016, mas foi suspensa após indícios de sobrepreço da ordem de 3 bilhões de reais. Em setembro do ano passado, o governador Wilson Witzel chamou a cratera de “buraco da vergonha” e disse que iria aterrá-la por falta de dinheiro para retomar o projeto. “Para concluir a obra, seria necessário 1 bilhão de reais. O estado do Rio tem outras prioridades para uma montanha de dinheiro desse tamanho”, disse na ocasião. O contrato de concessão com o consórcio liderado pela Odebrecht segue em vigor até 2036. A despeito da crise econômica, que potencializou a corrosão das finanças públicas pela via da corrupção não apenas do Rio como em outros estados, o portifólio de obras monumentais paradas sugere que o Brasil, em alguma medida, ainda segue refém daquilo que Paulo Preto classificou como “regra do jogo”: é possível concluir uma obra pública no país sem cartel?

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