Adriano Machado/CrusoéO posto da Lava Jato agora tem uma lavanderia (agora, de roupas) no lugar da antiga casa de câmbio

Festa no marco zero

Além de ponto turístico, o posto de gasolina de Brasília que há seis anos foi ponto de partida para a Lava Jato continua a ser palco para delitos
06.03.20

Brasília, manhã de 17 de março de 2014. Policiais federais cumprem uma ordem de busca e apreensão no Posto da Torre, no centro da capital. Vão atrás de provas contra uma organização criminosa especializada em lavagem de dinheiro. A operação é batizada de Lava Jato, muito embora no local não funcionasse, àquela altura, um serviço de lavagem de carros. A lavagem que havia ali era de outra ordem. Os investigadores já tinham ideia que o posto funcionava como uma espécie de central de distribuição de propinas a políticos. Eles estavam prestes a puxar o novelo que desaguaria na maior ação anticorrupção da história do país. Passados seis anos, a operação continua ativa, assim como o posto, hoje administrado por parentes de seu fundador, o doleiro Carlos Habib Chater. Primeiro preso da Lava Jato, Chater foi condenado três vezes e suas penas somam mais de 21 anos. Ele ganhou a liberdade após ficar um ano e sete meses na cadeia pela primeira sentença. As outras duas ainda não transitaram em julgado. Não se sabe se continua a delinquir, mas, agora com o lava jato que não tinha antes, o negócio cresceu e, depois de tudo, o marco zero da Operação Lava Jato continua a ser uma central de delitos de todo tipo, em especial durante as madrugadas, quando traficantes vendem drogas no complexo comercial que, além de vender combustíveis, também é bar, lanchonete, lavanderia e minimercado.

A menos de três quilômetros da Praça dos Três Poderes, o Posto da Torre é cercado por hotéis de todos os níveis e vizinho de uma das mais caras churrascarias de Brasília, onde no início dos anos 2000 funcionou um dos negócios da família Chater — uma casa de apostas que tinha como atrativo máquinas caça-níqueis. Os mais luxuosos hotéis da região costumam receber políticos, empresários e outros personagens do poder nacional. Participantes de eventos corporativos realizados na capital estão entre os principais frequentadores do posto. Eles e moradores da cidade enchem as mesas do bar do estabelecimento, geralmente a partir das 20 horas das quartas e quintas-feiras, quando Brasília ferve. É tanta gente que faltam cadeiras. Muitos ficam em pé, com garrafa de cerveja à mão, em rodas de conversas animadas, próximos à loja de conveniência que, além dos itens comuns a qualquer estabelecimento do tipo, oferece bebidas alcoólicas em dose. Como num típico botequim, as opções vão das mais baratas pingas a uísques medianos. De um lado, uma também muito concorrida lanchonete de comida árabe vende salgados, sanduíches e tira-gostos. Do outro, um armazém exibe na vitrine bebidas e outros produtos árabes, como acessórios e ingredientes para o narguilé.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO complexo, no coração de Brasília, é administrado por uma irmã do doleiro Habib Chater
O armazém não tem nada de inocente. Além de alimentar vícios, ele serve como ponto de contato entre os clientes e as prostitutas que fazem dali um ponto de encontro. Mulheres e travestis circulam pelas ruas ao redor dos hotéis oferecendo seus serviços. Sentados em poltronas, em um recinto iluminado apenas com luzes coloridas como as de uma boate, homens e mulheres combinam preços e até fazem as preliminares de um programa sexual ali mesmo. Programas que variam de 50 a 150 reais, a depender do que o cliente quer e onde será realizado. Se não tiver um quarto de hotel, não há problema. As mulheres aceitam manter relações em carros e até mesmo ao relento. Em uma das três noites em que Crusoé esteve no posto, três mulheres ofereceram seus serviços. Uma delas, que dizia ser de Goiás e ter 27 anos, cobrava 50 reais, desde que não fosse nada demorado. Ela diz atender clientes ali do lado, sobre cadeiras e mesas de um ponto de táxi vazio nas madrugadas. Após ouvir a negativa do repórter, ela entrou no armazém, de onde saiu meia hora depois, de mãos dadas com um homem bem mais velho. Os dois deixaram o local em um Audi novo.

Prostitutas não vão ao posto atrás apenas de clientes. Elas também buscam drogas, que compram, sem dificuldades, de traficantes que agem livremente, como os dois homens que, de tênis, camiseta e calça jeans, abordaram, separadamente, em noites distintas, o jornalista enquanto ele ocupava uma das mesas sobre a calçada em frente às lojas. Sem rodeios, ofereceram entorpecentes. Qualquer um. Basta o interessado pedir. Cocaína, eles tinham à mão. As demais drogas, diziam, trariam “rapidinho”. Logo após ouvirem um “não”, os dois abordaram outros clientes. Ao menos dois deixaram suas mesas na companhia dos traficantes e voltaram minutos depois. Identificar os criminosos é fácil. Basta qualquer investigador pedir as imagens das 16 câmeras de monitoramento das lojas, que ainda conta com vigilantes que, aparentemente, têm como única missão afastar pedintes das mesas dos clientes. Por ali, assim como os grandes delitos de antes, os pequenos de agora correm soltos.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéQuando a operação começou, não havia um lava jato, mas agora tem
Nem só de diversão vive o posto. Há, claro, aqueles que vão até lá aproveitar as constantes promoções em suas 16 bombas de combustíveis. Elas costumam ter etanol, gasolina e diesel a preços mais baixos que os da maioria dos postos de Brasília. Com isso, atraem uma média de 3.500 veículos por dia, que consomem 50 mil litros de combustíveis, segundo números da ANP, a Agência Nacional do Petróleo. Quem paga em cash paga menos. A regra vale também para os serviços do centro automotivo, que, além de lavagem expressa de carros, tem borracharia, troca de óleo, alinhamento e balanceamento. O barato, porém, pode sair caro — assim como ensinou a Lava Jato lá atrás. O posto teve a autorização cassada em 2002 e 2006 por falhas no equipamento e adulteração de combustíveis. Dez anos depois, o estabelecimento foi acusado de operar bombas com vazão menor do que o permitido. Em março de 2019, foi multado três vezes por usar equipamentos defeituoso e por não manter atualizados os documentos necessários para exercer a atividade.

Carlos Habib Chater, parceiro de negócios do doleiro paranaense Alberto Youssef, que tinha no estabelecimento do colega uma espécie de sucursal em Brasília, chegou a retomar formalmente a administração do Posto da Torre no fim de 2016, após deixar a cadeia. Em 2019, depois da terceira condenação, ao menos no papel passou o comando da empresa para uma das duas irmãs. Com a operação da PF e do Ministério Público Federal, o posto que deu origem à Lava Jato perdeu a sua casa de câmbio, que fez de Chater o maior doleiro da região Centro-Oeste, segundo o próprio declarou em depoimento ao então juiz Sergio Moro. Sem confessar seus crimes, ele nunca delatou ninguém. No lugar da loja onde eram vendidas e compradas moedas estrangeiras agora há uma lavanderia — de roupas. Dólares e euros, como Crusoé mostrou semanas atrás, agora é possível comprar em estabelecimentos vizinhos. Na denúncia apresentada à Justiça após as investigações da Lava Jato, o Ministério Público destacou que todos os empreendimentos abertos no Posto da Torre sempre foram administrados por laranjas de Chater, funcionários e parentes, muitos deles já condenados por lavagem de dinheiro, falsificação de documentos públicos e evasão de divisas. As lojas preferiam dinheiro vivo como pagamento para ter o cash necessário na hora de fazer as transações sujas. No próximo 17 de março, a Lava Jato completa seis anos sem saber ao certo quanto tempo durará seu legado – especialmente pelo esforço da política para freá-la. No posto onde tudo começou, porém, a festa do crime é permanente.

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