Agência Brasil

Entre a milícia e o gabinete

Uma nova etapa da investigação sobre o Escritório do Crime revela personagem que doou dinheiro para uma campanha de Marcelo Crivella e presta serviços para a prefeitura do Rio
06.03.20

Uma nova fase da investigação sobre o Escritório do Crime — como é conhecida a mais antiga milícia em atividade no Rio de Janeiro — levanta suspeitas de que integrantes da quadrilha tenham negócios com órgãos públicos. Segundo os promotores de Justiça, a milícia era chefiada pelo ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega, morto pela polícia na Bahia, no começo de fevereiro. A nova denúncia do Ministério Público — até aqui mantida em sigilo e obtida por Crusoé — revela que dois empresários suspeitos de financiar o Escritório do Crime têm contratos milionários com a Prefeitura do Rio. Eles prestam serviço de locação de carros, incluindo os veículos blindados usados pelo prefeito Marcelo Crivella, sua família e assessores mais próximos.

Desgastado no cargo pelos problemas na área de saúde, na conservação da cidade e pela falta investimentos, Marcelo Crivella (Republicanos) se aproximou recentemente de Bolsonaro na tentativa de ampliar suas parcas chances de reeleição. Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, o prefeito é sobrinho de Edir Macedo, dono da TV Record. Na segunda-feira, dia 2, em busca de melhorar sua imagem, Crivella visitou um bairro castigado pelas chuvas. Culpou a população local por jogar lixo nas ruas e ignorou as suspeitas de que milicianos afetaram o escoamento de água com a construção ilegal de prédios. Enquanto fazia as declarações, o prefeito foi atingido nas costas por um punhado de barro lançado por um morador.

Crivella e seus familiares circulam pela cidade em veículos blindados. Neles, o prefeito fica longe da lama dos bairros, mas nem por isso distante dos tentáculos das milícias. A empresa CWM Rent a Car Locadora que fornece veículos com o combustível à prefeitura pertence ao empresário Murad Mohamad, preso na segunda fase da operação contra o Escritório do Crime, no final de janeiro, e denunciado sob acusação de fazer parte do grupo criminoso.

O site de transparência da Prefeitura do Rio informa que a CWM tem contratos ativos de 25,4 milhões de reais, dos quais 17,1 milhões se referem ao fornecimento de carros usados pelo prefeito, a mulher, os dois filhos e seu staff mais próximo. Crivella alega que os filhos também têm direito à proteção paga com dinheiro público. O contrato, que teve início ainda na gestão do ex-prefeito Eduardo Paes, do Democratas, foi prorrogado na administração de Crivella. Terminaria em maio de 2019, mas se estenderá pelo menos até maio de 2020.

Em documento enviado à Câmara de Vereadores, a Casa Civil de Crivella informou que a CWM cobra 19 mil reais por mês por um blindado de nível 2 (mais resistente a armas de fogo), 12 mil pelo blindado nível 1 e 4,8 mil pelos veículos executivos. Ao todo, são 31 carros locados. Durante 2019, a Casa Civil pagou 3,3 milhões à empresa de Mohamad.

MP do Rio: acusação liga empresários a esquema do Escritório do Crime
Além dos contratos de locação prorrogados pela prefeitura, há outro elo entre o empresário e o prefeito. Em 2014, ele fez um depósito em espécie de 38 mil reais para a campanha de Crivella, então candidato a governador — ele acabou não se elegendo. Foi a única colaboração de Mohamad naquele ano, segundo registros da Justiça Eleitoral.

Filho de Murad Mohamad, o empresário Omar Mohamad, também preso na operação contra o Escritório do Crime, é sócio da empresa Global Rent a Car, dona de contratos ativos de 5 milhões de reais iniciados na gestão de Crivella. Além do ramo de locação de automóveis, pai e filho atuam na área de imobiliária e nesse ramo estaria o principal envolvimento deles com as milícias.

Ao realizarem a prisão de Mohamad e do filho, os investigadores se surpreenderam com a mansão onde a família mora no alto de um morro com a floresta da Tijuca ao fundo. Uma sala de cinema, carros de luxo e a enorme piscina chamaram a atenção dos policiais, além da grande quantidade de cômodos. Mohamad e o filho mantiveram-se calmos. O pai perguntou se, antes de ir preso, poderia deixar uma quantia para a família se manter. Entregou então um maço de dinheiro para a filha e lhe passou orientações durante uma conversa em árabe.

O Ministério Público do Rio acusa Mohamad e o filho de financiarem o Escritório do Crime com pagamentos da “taxa de segurança” aos milicianos, em troca de aval para negócios imobiliários na região de Rio das Pedras, onde a milícia atua, na Zona Oeste da cidade. Os promotores obtiveram mensagens de celulares com fotos de ao menos quatro cheques, no valor de 50 mil reais cada um, emitidos pela empresa Irmãos Murad Empreendimentos Imobiliários, que pertence a Mohamad. O dinheiro ia para a conta de laranjas da quadrilha. Há também mensagens sobre pagamentos entre o empresário e suspeitos de integrarem a milícia.

Baseados em escutas telefônicas, os promotores afirmam que Mohamad também vendia carros para o Escritório do Crime e fazia adulterações de peças, como o hodômetro, que mede a distância percorrida por veículo. O empresário ainda é suspeito de pagar propina a um funcionário da prefeitura para tramitação de um processo de seu interesse na Fundação Parques e Jardins, que cuida do paisagismo da cidade.

Além de Mohamad e seu filho, o Ministério Público denunciou outras 43 pessoas na segunda fase da operação contra o Escritório do Crime, entre elas um capitão aposentado da PM, ex-policiais militares e dois agentes da 16ª Delegacia da Polícia Civil, localizada na Barra da Tijuca, área de interesse dos negócios da quadrilha, principalmente por abrigar cassinos clandestinos. Um dos agentes recebia 2 mil reais para não incomodar os criminosos. As tratativas aconteciam por áudios de WhatsApp, aos quais Crusoé teve acesso. A propina, segundo o MP, era chamada de “galão”. O agente conversava com um acusado que está foragido da Justiça, o que mostra a ousadia dos criminosos.

Reprodução/Redes sociaisReprodução/Redes sociaisAdriano da Nóbrega, morto no mês passado, era apontado como o chefe do grupo criminoso
Os celulares e material apreendido nas casas dos suspeitos vão alimentar novas investigações sobre o Escritório, que, mesmo após as prisões, continua em funcionamento. A milícia tem esse nome devido aos diferentes delitos que pratica: do comércio de gás de cozinha, transporte alternativo, TV a cabo pirata ao ramo imobiliário, com a construção ilegal de imóveis para venda e aluguel. Os milicianos também tinham uma agência de pistolagem responsável por vários homicídios, segundo o Ministério Público.

Ainda falta esclarecer que relações o ex-capitão Adriano da Nóbrega — apontado como chefe do bando – mantinha com o poder público e políticos. Em 2005, mesmo preso por homicídio, ele recebeu a medalha Tiradentes do então deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro. Recentemente, o presidente Bolsonaro afirmou que a iniciativa da homenagem partiu dele. Flávio também empregou a ex-mulher e a mãe de Adriano em seu gabinete na Assembleia até o final de 2018. As duas são investigadas no inquérito que apura o “rachid”  e no qual Flávio é suspeito de embolsar parte salários dos servidores, em um esquema de lavagem de dinheiro que ele nega.

O MP está periciando onze celulares apreendidos com Adriano no sítio em Esplanada, no interior da Bahia, onde ele foi morto por policiais após supostamente reagir à prisão. Bolsonaro chegou a levantar a hipótese de crime de queima de arquivo, versão que esfriou após realização de nova necropsia no corpo do ex-capitão.

As milícias serão um dos principais assuntos das eleições municipais deste ano no Rio de Janeiro, onde mantêm currais eleitorais. Crivella iniciou seu mandato com um afrouxamento na fiscalização do transporte alternativo de vans, um dos ramos de atuação dos milicianos. Numa escuta telefônica da investigação sobre a milícia de Muzema, na região de Rio das Pedra, um dos criminosos sob investigação afirma, em conversa de dezembro de 2018, que se encontrou com o filho do prefeito para tentar evitar a demolição de prédios ilegais na favela. Marcelo Hodge, filho do prefeito, negou.

A prefeitura do Rio afirma que CWM Rent a Car lhe presta serviços há cinco anos, dentro do prazo previsto em lei, e que em janeiro abriu licitação para contratar duas novas locadoras. O resultado foi publicado no Diário Oficial de quinta-feira, 5. Uma das vencedoras, a Haddad Rent a Car, funciona numa sala ao lado da CWM e seus donos são familiares do sócio de Murad Mohamad. A CWM continuará atendendo o prefeito até maio. A assessoria não respondeu se Crivella conhece Omar e Murad Mohamad e nem explicou se a Global Rent a Car, que também pertence aos empresários, seguirá contratada. O advogado Heraldo Assed Iunes, que representa os empresários, diz que eles não têm qualquer ligação com milícias e apenas mantinham uma área em Rio das Pedras para guardar os veículos de suas locadoras.

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