Carlos Fernandodos santos lima

A estupidez polarizada

06.03.20

Vivemos num tempo de estupidez polarizada. Nada mais revelador dessa atual pobreza de espírito que um político fanfarrão sendo alvejado por amotinados enquanto tentava romper ao volante de uma retroescavadeira um bloqueio ilegal de acesso a um quartel. Errados dos dois lados, tomando decisões equivocadas e aplaudidos por uma rede de apoiadores maniqueístas. Esse é o atual retrato do Brasil. E por ser contra esse estado de coisas que aceitei escrever quinzenalmente uma pequena coluna aqui na Crusoé.

A minha proposta para esta coluna é falar do Brasil de uma forma vibrante e apaixonada, mas apoiada em fatos e no interesse da sociedade brasileira, e não em interesses particulares, mesmo que legítimos. É uma promessa bastante difícil, com certeza, quando o que vemos no dia a dia é uma luta por espaço, poder ou dinheiro travestido da busca do interesse público. Mas esse é o compromisso que assumo perante os leitores desta revista.

Enfim, a proposta é escapar da estupidez, do maniqueísmo, da manipulação e da obviedade, tentando ajudar a recuperar um espaço livre de discussão, onde haja o respeito aos diversos pontos de vista sem que se deixe de criticar o que entender como errado, pois, mesmo não existindo verdades absolutas, nem todas as colocações são igualmente válidas. Não se pode substituir o maniqueísmo absolutista das ideologias por um relativismo inconsequente. Seja como for, é preciso se posicionar.

Talvez muitas pessoas questionem se todo esse discurso não está em contradição com minha história como procurador da República. Muitos querem acreditar que a Operação Lava Jato, investigação da qual participei com brilhantes colegas, foi dirigida contra um determinado partido político. Entretanto, o que posso afirmar sem medo é que essa operação foi uma investigação republicana. Se há algo que essa operação demonstrou foi que os esquemas de corrupção transcendem partidos específicos, espraiando-se por todo o espectro ideológico, da esquerda à direita. Trata-se de uma forma aceita – por eles – de financiamento de campanhas eleitorais milionárias e de manutenção e controle de estruturas partidárias. Ou seja, a Lava Jato revelou que nós pagamos um imposto chamado corrupção, seja na Petrobras, seja na rachadinha dos gabinetes parlamentares, para que eles nos governem.

As investigações, portanto, descobriram crimes do colarinho branco, especialmente corrupção, nos principais partidos brasileiros, em governos federal, estaduais e municipais, sejam da situação ou da oposição, e em grandes empresas. Das obras dos estádios para a Copa do Mundo, da compra de vaga para Olimpíadas, de obras viárias e investimentos de empresas públicas, de tudo, até medidas provisórias, lideranças partidárias, membros dos diversos governos e empresários comercializavam nos corredores de palácios e quartos de hotéis de luxo. Aquilo que intuíamos há muito revelou-se ainda mais grotesco e nefasto. A corrupção, se não estava matando o Brasil, estava tornando nosso país aquela figura triste do Jeca Tatu, um pobre emaciado, acocorado e sem forças devido aos males que o afligiam.

Mesmo que ainda sofrendo dessa maleita, não há mais possibilidade de se acobertar a doença revelada pela Lava Jato. Mesmo com todos os ataques que as investigações vêm sofrendo, inclusive com o uso abusivo de ilícitas interceptações de dados, nada foi descaracterizado. O brasileiro sabe o que aconteceu. Sabe que houve roubo, sabe que houve propina, sabe que houve crime, digam o que quiserem os supremos togados da nação, mesmo que neguem as almas mais honestas da nação. Mesmo com todas as tentativas de constranger membros do Ministério Público com inúmeros procedimentos para que não continuem informando a população, ninguém sensato duvida do imenso saque que os brasileiros sofreram.

Infelizmente, não bastasse matar pessoas em filas dos hospitais ou por falta de saneamento ou segurança pública, esse poder econômico que a corrupção confere a alguns vem destruindo nossa democracia. Elege-se em sua maioria aqueles que têm acesso à máquina de corrupção. Pessoas sensatas, que buscam o interesse público, mas que não têm acesso a esses recursos, são alijadas do processo. A democracia transforma-se em demagogia pela mão dos caciques partidários. Esse processo de decadência das nossas instituições democráticas é menos percebido, mas é mais pernicioso que os efeitos econômicos da corrupção pública.

Felizmente o espaço democrático da liberdade de manifestação e de imprensa, e especialmente o desta revista, não foi ainda tomado, apesar das tentativas de censura de alguns ministros do STF contra ela. Foi o espaço das redes sociais, mesmo com todos os seus problemas, e da imprensa, mesmo com todos os seus interesses, que permitiu que a história não fosse encoberta, como o foram tantas investigações do passado. E é este espaço que continuará a servir de veículo para se buscar o bom senso, o respeito e a ponderação, mas também de não se conformar com o malfeito, o errado e o criminoso. Pretendo, pois, participar desse processo e falar dos fatos que diariamente atentam contra o interesse dos brasileiros, revelando os sofismas pelos quais são vendidas inverdades para a população, são disfarçados interesses escusos e são criados falsos mitos.

Assim, meu compromisso é com a ética e com a busca de um país republicano e democrático. A caneta é mais poderosa que a espada. Usarei da palavra para ferir interesses escusos. Usarei daquilo que acredito para descerrar máscaras. Prefiro errar pelo excesso que pelo silêncio, pois “pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens em covardes” (Abraham Lincoln).

Carlos Fernando dos Santos Lima é advogado e foi um dos procuradores da República da força-tarefa da Operação Lava Jato.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO