Presidente refém
Em março do ano passado, enquanto o governo recém-empossado ainda engatinhava, os fisiológicos do Congresso já nadavam de braçada ao praticar o seu esporte predileto. Em meio à clássica disputa por poder, tentavam emparedar o Palácio do Planalto a fim de abocanhar o máximo possível de verbas e cargos estratégicos na administração federal. Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro já emitia sinais de que poderia se render — fato destacado em reportagem de capa de Crusoé –, embora ainda estivesse embalado pelo escrutínio favorável das urnas, o que lhe conferia duas vantagens essenciais a um governante em início de mandato: lastro político e apoio popular. De lá para cá, porém, o governo se mostrou pródigo em se enroscar nas próprias pernas, e entregar de bandeja narrativas das mais diversas para a oposição. Pululam situações que poderiam ser evitadas, mas que os arroubos presidenciais ou de sua prole fizeram o desfavor de potencializar. O resultado, 14 meses depois da posse, é que, ao empilhar crises e empreender manobras políticas equivocadas, o presidente torna-se cada vez mais refém do fisiologismo e de vícios os quais sempre jurou condenar.
O rumoroso episódio do compartilhamento, por Bolsonaro, de um vídeo com a convocação para um protesto contra o Congresso, marcado para 15 de março, uma manifestação que anima as hostes bolsonaristas nas redes sociais e fora delas, é emblemático. Até então, como relatou Crusoé na edição da semana passada, a “guerra do foda-se” — alusão ao palavrão usado pelo general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, ao acusar os congressistas de chantagear o governo — estava completamente em aberto. Enquanto os militares e reformistas do governo falavam grosso de um lado, e acusavam a chantagem explícita dos parlamentares na disputa pelo controle de 30 bilhões de reais em emendas do Orçamento deste ano (o tal Orçamento impositivo), o Congresso se articulava de outro para ficar com um naco mais robusto dessa dinheirama, a fim de atender às conveniências político-eleitorais. Depois do WhatsApp presidencial, o preço do fisiologismo parece ter ficado mais elevado. A tendência agora é que, na próxima semana, ao se debruçar sobre o tema, os parlamentares usem o caso como pretexto para derrubar o veto de Bolsonaro à proposta que confere ao relator do Orçamento todo o poder sobre a destinação da verba bilionária. Outras duas pautas, até então consideradas pelo governo como pule de dez para aprovação, foram ao telhado: o projeto de autonomia do Banco Central e o Plano Mais Brasil, proposto pelo Ministério da Economia para reduzir os gastos públicos.
Também é provável que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, dê vazão a projetos com potencial de causarem impacto nas despesas públicas. A mais preocupante é a que reformula a política do salário mínimo — emenda já apresentada à medida provisória que fixa o valor em 1.045 reais, com consequências sobre o Orçamento já deste ano. Conforme apurou Crusoé, Maia tomou conhecimento do vídeo compartilhado por Bolsonaro quando estava prestes a deixar Paris rumo a Madri. O presidente da Câmara está, desde a segunda-feira de Carnaval, em viagem oficial à Europa, de onde só deve retornar nos primeiros dias de março. De imediato, Maia passou a ser procurado por deputados que lhe cobravam uma reação enérgica. Aliados próximos, porém, sugeriram ao presidente da casa reagir de maneira diferente dessa vez. O conselho foi para que adotasse “cautela, frieza e objetividade”. “A tensão no ambiente político é o ‘novo normal’ desde que Bolsonaro é presidente da República. Tudo que ele precisa é manter a disjuntiva velha política versus nova política”, argumentou um aliado de primeira hora de Maia. Seguindo os conselhos dos que atuaram como bombeiros da crise, o deputado usou suas redes sociais para esfriar a temperatura ambiente. “Somos nós, autoridades, que temos de dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional. O Brasil precisa de paz e responsabilidade para progredir”, escreveu na quarta-feira de Cinzas, sem mencionar Bolsonaro e o ato de 15 de março. Na sequência, coube ao próprio presidente da República puxar o freio de mão, também nas redes. “Tenho 35M de seguidores em minhas mídias sociais, com notícias não divulgadas por parte da imprensa tradicional. No WhatsApp, algumas dezenas de amigos, onde trocamos mensagens de cunho pessoal. Qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República”, dizia o tuíte.
Bolsonaro, aos poucos, descobre que, apesar da popularidade, a caneta do presidente tem limite – e que ele pode muito, mas não pode tudo. Por isso, adota um comportamento ambivalente. Maquiavel dizia que é necessário distinguir o que o “príncipe” fala do que ele faz. Assim o pensador florentino realçava a importância de se tirar o peso daquilo que é declarado pelo governante, dando mais ênfase e importância a como ele de fato se comporta no dia a dia. O problema é quando os atos do mandatário deixam a desejar em relação às suas declarações. No caso da relação de Bolsonaro com o Congresso, há um abismo entre o que ele alardeia e pratica. Ao mesmo tempo que, publicamente, se escora nas ruas e faz que exibe as garras para o Congresso — principalmente quando se vê enfraquecido –, nos bastidores ele se rende às negociações de sempre. Ou seja, aos piores métodos. É aí que ele expõe sua fraqueza. O exercício do poder já deveria ter ensinado ao presidente que, entre os velhos hábitos aos quais diz se opor, e a rendição aos fisiológicos do Congresso, existe uma avenida de possibilidades a ser trilhada. A principal delas é a que coaduna com a boa política, baseada na transparência, nas práticas republicanas e no interesse público. Emendas, por exemplo, são em geral recursos aplicados em obras que deveriam ser de interesse da população. O busílis nunca foi pagá-las, mas os critérios que as norteiam.
Os soldados do governo no Congresso, a quem caberia o papel de adequar as costuras políticas aos moldes republicanos, contribuem para atear mais fogo ao ambiente já inflamado. Proeminente integrante da tropa bolsonarista, a deputada federal Bia Kicis, do PSL, é uma das grandes incentivadoras do ato do dia 15, o qual divulga fervorosamente em suas redes sociais. É um sintoma explícito de que, em vez de discutir os métodos e operar no Congresso para fazer a coisa da maneira certa, as fileiras mais próximas do presidente estão empenhadas em apostar no acirramento dos ânimos. Na falta de capacidade de articulação, resta apelar para as ruas. O principal organizador da próxima manifestação contra o Congresso é o Movimento Avança Brasil, que, juntamente com o Nas Ruas, o Movimento Conservador, o Movimento Brasil Conservador, o Movimento Monarquista, a Direita São Paulo e a República de Curitiba, pretende realizar marchas contra “os chantagistas do Congresso” em ao menos 130 municípios. Também integram a campanha empresários, investidores e blogueiros bolsonaristas. Alinhado ao credo bolsonarista, o empresário Otavio Fakhoury é um dos que prometeram, publicamente, financiar os atos. Os organizadores também pedem o apoio financeiro de Luciano Hang, dono da Havan, e de Winston Ling, padrinho da união entre Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes.
A história ensina que é um perigo para um presidente ficar completamente a reboque do Congresso. Depois da redemocratização, dois presidentes foram apeados do poder quando perderam as rédeas da governabilidade. Detalhe: ambos — Fernando Collor e Dilma Rousseff — tinham partido e linhas auxiliares, ao contrário de Jair Bolsonaro. Ao fim e ao cabo, ele rompeu com a agremiação que lhe deu abrigo na disputa presidencial, o PSL, por não ter tido força suficiente para impor a sua vontade. É o caso esdrúxulo de um inquilino do Palácio do Planalto que, além de não ter partido, encontra dificuldade para criar um próprio — o Aliança pelo Brasil ainda está muito longe de obter o número de assinaturas necessário para pedir o registro na Justiça Eleitoral e, assim, é altamente improvável que seja capaz de ter candidatos próprios nas próximas eleições municipais. A manifestação do dia 15, aliás, também servirá para angariar assinaturas, nas diferentes cidades onde ocorrerá.
Um presidente sem partido, sem costuras firmes em torno de um programa e que se recusa a fazer política é um presidente à mercê do Congresso e dos seus chantagistas, para usar a expressão do General Heleno. Chantagistas que, diante dos arroubos presidenciais e da tentativa de Bolsonaro de governar com as ruas, posam de vestais da democracia. É preciso tomar cuidado. Apesar de não haver hoje condições políticas para o impeachment, ao presidente, quem quer que seja ele, não é permitido brincar com a sorte. Muito menos em um momento delicado como o de agora, em que especialistas apontam hora após hora os riscos de uma tempestade perfeita, com a instabilidade na economia global ante a ameaça de uma pandemia do novo coronavírus. “O cenário é bastante preocupante. Parece que o governo se deu por satisfeito com a reforma da Previdência. Mas ela só serviu para o Brasil não virar uma Argentina. O ajuste fiscal não está completo. A reforma administrativa, por exemplo, não anda desde setembro”, diz a economista Solange Srour. O quadro requer, no mínimo, alguma cautela e visão do jogo que se desenrola em Brasília. E isso nada tem a ver com chancelar as vontades da velha política.
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