Divulgação"O papa tem um histórico de aproximação com os líderes populistas de esquerda da América Latina"

O papa e os populistas

Estudioso da relação da Igreja com a política, o liberal chileno Axel Kaiser diz que Francisco comunga das ideias dos convidados esquerdistas que recebe no Vaticano e tem aversão ao capitalismo
28.02.20

Professor visitante da Hoover Institution, um think tank da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, o chileno Axel Kaiser, de 38 anos, foi surpreendido nos últimos dias com pichações em muros do Chile. Frases com os dizeres “Mais Axel Kaiser, menos Marx” começaram a aparecer em cidades do sul do país e fotos foram compartilhadas na internet.

Para ele, os autores das frases provavelmente são jovens que foram influenciados por seus livros e pelos cursos que tem dado em escolas e via redes sociais. “Nós criamos um movimento de pessoas que abraçam a liberdade e não querem o autoritarismo nem a demagogia populista de esquerda ou de direita”, diz Kaiser, que é formado em direito no Chile, tem mestrado em estudos americanos e concluiu doutorado em filosofia na Alemanha.

Coautor do livro O Embuste Populista, que escreveu com a guatemalteca Gloria Álvarez, ele dedicou um capítulo ao papa Francisco nessa obra. O pontífice também foi tema de outro livro de Kaiser, lançado em 2017, chamado O papa e o capitalismo: um diálogo necessário. Segundo ele, Francisco escolhe seus convidados, incluindo Lula, pela ideologia. “O papa tem um histórico de aproximação com os líderes populistas de esquerda da América Latina. Eles têm as mesmas ideias”, diz.

Nesta entrevista a Crusoé, além de falar sobre o papa, Kaiser comentou as manifestações em seu país, que já duram quatro meses. Para ele, a origem dos protestos está nas reformas da ex-presidente Michelle Bachelet, que elevaram os impostos e reduziram o crescimento econômico. Uma nova Constituição, cuja convocação será levada a um plebiscito em abril, só pioraria as coisas. “Estou extraordinariamente pessimista.”

O papa Francisco recebeu Lula no Vaticano. Isso o surpreende?
Não. O papa tem um histórico de aproximação com os líderes populistas de esquerda da América Latina. Eles têm as mesmas ideias. Francisco não se importa se o convidado foi acusado de corrupção, tanto que a argentina Cristina Kirchner também se encontrou com ele. Em 2015, ele recebeu até o cubano Raúl Castro. O ditador comunista saiu do encontro dizendo que, se o papa continuasse falando do mesmo jeito, ele voltaria a rezar e regressaria à Igreja. Francisco esteve ainda na Bolívia, para ver Evo Morales. Vários ativistas radicais da Argentina também já conversaram com ele no Vaticano.

Mas ele também recebeu o ex-presidente argentino Mauricio Macri, de direita.
Francisco, que também é argentino, nem sequer ligou para Macri, para parabenizá-lo por sua eleição em 2015. Ele esteve com o ex-presidente apenas 22 minutos na biblioteca do Vaticano. No encontro com Cristina, ele a convidou para uma refeição, e ela permaneceu em sua residência por várias horas. O papa não tem a mesma relação com as pessoas de direita. Isso é evidente.

Qual é o impacto que essas atitudes do papa têm nos países da América Latina?
O papa é uma figura influente, poderosa. Muitos fiéis católicos acham suas ideias relevantes. Francisco tem disseminado um discurso ideológico de ressentimento, de luta de classes e contra o capitalismo, que tem causado muito dano para a América Latina.

A Igreja Católica sempre foi contra o capitalismo?
Não. A Igreja tem uma tradição intelectual a favor do mercado. Foram padres espanhóis que lançaram as bases do liberalismo econômico moderno. O jesuíta Juan de Mariana (1536-1624) foi uma das figuras mais relevantes nesse sentido. Ele dizia que os funcionários do estado buscavam melhorar seu patrimônio à custa dos demais. Para tanto, eles se esforçavam em aumentar o poder do rei, ou seja, do próprio estado. A recomendação de Mariana era a de que se buscasse um príncipe que, tendo eliminado todas as despesas supérfluas, diminuísse os impostos. Além de Juan de Mariana, vários sacerdotes intelectuais desenvolveram muitas ideias da economia moderna. Eles acreditavam que o mercado funcionando com liberdade gerava mais bem-estar social para a população.

Como isso se perdeu?
A tradição libertária lamentavelmente foi sendo esquecida. O papa Leão XII (1810-1903) e, especialmente, o papa Pio XI (1857-1939) inauguraram uma tradição de desconfiança frente ao mercado e ao liberalismo, embora defendessem a propriedade privada e condenassem o socialismo marxista. Os papas João Paulo II e Bento XVI seguiram uma linha mais tolerante com o capitalismo. Eles não deixaram de fazer críticas, mas tinham uma visão mais favorável. Foi o capitalismo, afinal, que mais tirou pessoas da pobreza e mais ajudou a preservar o meio ambiente. Francisco rompeu totalmente com isso. Ele assumiu uma postura muito radical e pouco fundamentada. É o papa mais agressivo com o capitalismo.

DivulgaçãoDivulgação“Francisco tem disseminado um discurso ideológico de ressentimento, de luta de classes e contra o capitalismo”
A crítica do papa ao capitalismo perpassa a sua defesa do meio ambiente?
Francisco está legitimamente preocupado com a natureza, assim como muita gente. Mas ele não estudou o assunto a fundo e diz coisas exageradas, histéricas. Ele fala muito da cultura do descarte. Diz que as pessoas são descartadas assim como os bens de consumo no sistema industrial de produção, que é o capitalismo. É claro que ele se refere à economia de mercado e ao liberalismo econômico.

O papa já condenou o socialismo, o ditador Nicolás Maduro ou a ditadura cubana?
Nunca vi Francisco condenando o socialismo ou as ditaduras latino-americanas. Desconheço qualquer declaração desse tipo. Em 2016, ele chegou a dizer que são os comunistas os que pensam como os verdadeiros cristãos. Ele disse isso literalmente. Seria uma surpresa para mim se ele, sendo tão condescendente e favorável com pessoas de esquerda, emitisse uma declaração censurando regimes autoritários da região.

O Vaticano atuou como mediador nas negociações entre a ditadura de Maduro e a oposição. Ele teve algum sucesso?
Nenhum. A participação do Vaticano só serviu para que a ditadura de Maduro ganhasse legitimidade e tempo em momentos cruciais. A mediação do Vaticano tem sido um fator muito negativo na crise venezuelana. Muito negativo. Não consigo ver o Vaticano exigindo concessões reais desses líderes de esquerda, para restabelecer a democracia e os direitos individuais. Não vejo como a Igreja possa dar qualquer contribuição positiva para a cidadania.

O papa é populista?
Ele tem ideias clássicas do populismo latino-americano. É peronista. Foi muito influenciado por essa doutrina. E o peronismo é o populismo mais emblemático na região. Além disso, ele foi um seguidor da Teologia do Povo, a versão argentina da Teologia da Libertação que nasceu logo depois do Concílio Vaticano II, na década de 1960.

Qual é a relação entre essas duas correntes?
A Teologia do Povo é mais suave nos métodos que propõe para mudar a sociedade. Não defende a revolução e a luta armada como a Teologia da Libertação, mas tende a idealizar a pobreza. Os seus seguidores atribuem toda sorte de virtudes aos pobres, que eles chamam de povo. Enquanto isso, os poderosos e os ricos não têm nenhuma qualidade boa. São o que eles chamam de antipovo. A sociedade fica assim dividida em dois campos homogêneos e antagônicos: o povo puro e a elite corrupta. A Teologia do Povo acredita que existe um sistema social e estruturalmente injusto que precisa ser mudado.

“Ele (Francisco) foi um seguidor da Teologia do Povo, a versão argentina da Teologia da Libertação que nasceu logo depois do Concílio Vaticano II”
A Teologia do Povo distorce a doutrina católica?
A Teologia da Libertação, a Teologia do Povo e a ordem dos jesuítas nutrem a visão de que não é o comportamento individual que define se uma pessoa está ou não no caminho de Jesus Cristo. Para seus adeptos, não é o indivíduo que, exercendo o livre-arbítrio, escolhe entre o bem e o mal. Eles entendem que há uma dimensão anterior, que é a social. De alguma maneira, as estruturas sociais que eles consideram injustas impedem as pessoas de tomarem decisões livres. É essa a visão de Francisco e de muitos outros. Para eles, os verdadeiros pecadores são aqueles que mantêm essas estruturas. Os culpados são sempre os ricos e poderosos. Os demais, que podem cometer crimes ou delitos, são vistos até certo ponto como vítimas dessa estrutura social, da desigualdade, do mercado. Isso me parece muito subversivo. Até onde entendo a doutrina cristã, o livre-arbítrio é um patrimônio de todos os seres humanos, independente das nossas circunstâncias específicas. Para além da sua condição social, uma pessoa sempre tem a liberdade de escolher entre o bem ou mal. E isso está muito em sintonia com a filosofia liberal clássica.

Os protestos no Chile, que completaram quatro meses, são uma resposta à desigualdade, ao liberalismo ou aos planos de aposentadoria privados?
Tudo isso é falso. A desigualdade vem diminuindo desde os anos 1990 de maneira contundente. O Índice Gini (que mede o grau de desigualdade) caiu de 0,57 para 0,46. O Chile é menos desigual que Brasil, México, Paraguai, Costa Rica e Colômbia. Além disso, o Chile é o país com maior mobilidade social de todos os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE. É mais fácil um chileno que está entre os 25% mais pobres chegar ao estrato dos 25% mais ricos que um francês, um alemão, um austríaco ou um americano. A pobreza no Chile caiu de quase 50% nos anos 1990 para menos de 8% da população. É um recorde que nenhum país da América Latina exibe. E temos o melhor índice de desenvolvimento humano da região.

Qual é a razão dos protestos, então?
Ideologia. Há cerca de 20 anos, instalou-se uma narrativa segundo o qual o Chile era um inferno de desigualdade, de abuso, de injustiça social. Michelle Bachelet chegou ao governo para um segundo mandato e, em 2014, fez reformas que prejudicaram a economia e frustraram as pessoas. Ela subiu os impostos das empresas de 21% para 27%. As companhias chilenas hoje pagam mais taxas que as suecas. Bachelet também passou a impedir que os empresários descontassem do imposto pessoal o que eles já tinham pagado como acionistas ou donos de empresas. Com essa mudança, a taxa real efetiva que um empresário paga de imposto passou para quase 45%, o que é uma loucura. Para piorar, ela deixou tudo muito mais complexo, com normas difíceis de serem interpretadas. Foi uma reforma muito ideológica, que gerou caos. A economia, que antes crescia 5% ao ano, passou a crescer menos de 2% a partir de 2014. O investimento teve quatro anos seguidos de queda com Bachelet, o que não ocorria desde os anos 1960.

Qual foi o impacto disso na sociedade chilena?
Os salários pararam de aumentar, os empregos diminuíram e muitas pessoas começaram a trabalhar por conta própria. Sebastián Piñera, o atual presidente, prometeu tempos melhores. Mas ele não usou seu capital político para fazer as reformas necessárias e melhorar a situação da classe média.

Por que Piñera não o fez?
Um presidente liberal ou de direita naturalmente reduziria o tamanho do estado, baixaria os impostos, abriria os mercados, flexibilizaria o mercado de trabalho. Piñera não fez nada disso e fala muito em desigualdade. Ele diz que o estado precisa dar proteção social para a classe média. Nenhum presidente liberal falaria isso. Piñera, na verdade, é um social-democrata.

Piñera convocou um plebiscito para o dia 26 de abril, para decidir sobre uma nova Constituição. O que se pode esperar disso?
Nada de bom pode sair dessa Constituição. A América Latina é a região do mundo com a maior quantidade de constituições. Sempre que se mudam as leis, o resultado é um desastre. O Chile estava indo bem, só precisava de reformas pontuais. Mas o diagnóstico feito pelas pessoas foi muito equivocado. Uma nova Constituição deverá incluir ideias de esquerda, mais socialistas, que acabarão causando um enorme dano. Estou extraordinariamente pessimista.

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