Divulgação/ABAPA Comissão de Anistia pretende debater a revisão de uma leva grande de indenizações questionáveis: a conta é absurda

O custo anistia

As indenizações a vítimas do regime militar já passam dos R$ 20 bilhões — e até hoje chegam ao governo faturas absurdas, algumas delas classificadas como "tentativa de estelionato"
28.02.20

Os números são eloquentes. O pagamento de reparações morais e financeiras a vítimas da ditadura já custou 10 bilhões de reais desde 2002, quando o governo regulamentou as regras para indenizações a perseguidos políticos. Há ainda 14 bilhões de reais pendentes de pagamento. Para se ter a dimensão do tamanho da conta da anistia, o cálculo supera o valor previsto para investimentos do governo federal no Orçamento deste ano. Desde que assumiu o cargo, em janeiro de 2019, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, começou a rever benefícios. Em meio a casos de vítimas torturadas, exiladas ou que tiveram suas vidas devassadas pelo regime militar, há uma infinidade de outras situações injustificáveis — escandalosas até. A Comissão de Anistia vai debater a revisão de uma leva grande de indenizações questionáveis, como pagamentos indiscriminados a grevistas e anistias concedidas a cabos da Aeronáutica, classificadas como “estelionato” pelo Ministério Público Federal. Foram identificados, inclusive, indícios de direcionamento para aquinhoar pessoas alinhadas aos governos do PT. É evidente que existem circunstâncias em que a reparação se justifica. Chama a atenção, no entanto, o fato de não haver um petista estrelado que militou na ditadura que não tenha recebido indenização. Ex-presidente do partido, o atual deputado Rui Falcão, por exemplo, recebe 11,7 mil reais mensais de pensão. Paulo Vannuchi, ex-ministro dos Direitos Humanos de Lula, ganhou uma indenização em parcela única de 54 mil reais. José Genoino, com 100 mil reais, e José Dirceu, com 66 mil, também foram beneficiados numa tacada só.

Até o governo Michel Temer, havia uma orientação tácita na Comissão de Anistia no sentido de facilitar as indenizações. Desde 2002, o governo recebeu 78,5 mil pedidos de anistia, dos quais 68,4 mil foram analisados e 10,1 mil estão pendentes de debate no colegiado. Quase 57% das indenizações solicitadas foram aprovadas. O auge ocorreu em 2003 e 2004, os dois primeiros anos de Lula no poder, com o deferimento de 22.747 mil pagamentos. A partir de 2018, houve uma forte inversão nessa tendência e o número de indenizações negadas passou a ser bem maior que o das deferidas. No ano passado, por exemplo, a Comissão de Anistia rejeitou 1,9 mil pedidos e aprovou 341. Houve ainda uma mudança de entendimento quanto a consensos em vigor desde 2002. Um deles diz respeito à concessão de indenização a quem participou de greves até 1988. Toda paralisação ocorrida até aquele ano, mesmo que fosse de cunho trabalhista, era considerada política só pelo fato de ter ocorrido no período pré-redemocratização. Era uma das “brechas” para que as indenizações fossem liberadas quase que automaticamente. O entendimento deu azo a pagamentos indiscriminados – uma verdadeira farra com dinheiro público.

Em reunião da Comissão de Anistia realizada na semana passada, o conselheiro José Augusto da Rosa Valle Machado, representante dos anistiados no colegiado, reconheceu a necessidade de uma análise individualizada e pormenorizada dos pedidos de indenização feitos por grevistas da ditadura. Ele defendeu que a Comissão de Anistia realize uma audiência pública sobre o assunto. “Temos que saber quais greves tiveram interesse político e quais foram realizadas com cunho meramente trabalhista. Não podemos afirmar que medidas contra qualquer tipo de manifestação de greve possam ser consideradas ato de exceção”, argumentou. Outro conselheiro, Diógenes Camargo Soares, manifestou opinião semelhante. Ele usou uma metáfora para explicar seu entendimento: o temporal que atingiu a região metropolitana de São Paulo, no último dia 10. “Muitos prejuízos podem ter sido causados por leniência do estado. Mas todos os 17 milhões de moradores afetados pelo dilúvio têm direito a indenizações? A verificação tem que ser feita caso a caso. E, no das greves, é preciso comprovar a motivação política”, defendeu.

Sob Damares, a Comissão da Anistia já rejeitou 1,9 mil pedidos
A situação que mais mobiliza integrantes do governo hoje é a de um grupo de ex-cabos da Aeronáutica. Em outubro de 1964, poucos meses depois de os militares apearem João Goulart do poder, a Força Aérea baixou uma portaria que limitou o tempo de serviço dos cabos da corporação a oito anos de atividade. As reais intenções desse ato administrativo suscitam controvérsias há mais de cinco décadas e, segundo estimativas do Ministério da Defesa, o desfecho da polêmica pode causar um rombo de mais de 13 bilhões de reais aos cofres públicos. Desde 2002, quando foi editada a lei que regulamentou o pagamento de anistias, mais de 2,5 mil cabos afastados na época da ditadura receberam o status de perseguidos políticos, com direito a vultosas indenizações. Agora, a Advocacia-Geral da União e o ministério de Damares criaram uma força-tarefa para tentar demonstrar que a limitação do tempo de serviço dos cabos durante a ditadura foi um ato administrativo sem nenhuma conotação política, editado com o simples objetivo de reduzir o efetivo da Aeronáutica.

Desde janeiro, o governo notifica ex-militares anistiados ou seus familiares beneficiados sobre a abertura de um processo de revisão do pagamento das anistias, autorizado pelo Supremo Tribunal Federal em outubro do ano passado. Um estrelado time de advogados, que inclui ministros aposentados do STF como Carlos Ayres Britto e Eros Grau, entrou em campo para tentar demonstrar que os cabos sofreram perseguição política e, por isso, fazem jus aos repasses.

Nos últimos 18 anos, o governo já gastou impressionantes 3,9 bilhões de reais por causa da decisão da Comissão de Anistia que, em 2002, declarou os antigos cabos como anistiados políticos. A União tem conseguido segurar a cobrança de valores retroativos, que, segundo o Ministério da Defesa, podem alcançar 13 bilhões de reais. O Ministério Público Federal está do lado do governo. O subprocurador-geral da República Brasilino Pereira dos Santos classificou as indenizações aos antigos militares como uma “fraude evidente”. Na ação que discutiu as indenizações no Supremo, ele lembrou que o processo de revisão das mais de 2,5 mil anistias, “todas suspeitas de haverem sido obtidas de forma criminosa, mediante estelionato”, começou por recomendação do Tribunal de Contas da União, que desde 2006 questiona a concessão generalizada de benefícios, sem uma avaliação caso a caso.

O advogado Marcelo Torreão, que representa os cabos anistiados, nega que haja má-fé na demanda. “Documentos sigilosos que vieram à tona depois da redemocratização comprovam o caráter político do ato que limitou o tempo de serviço a oito anos. Esses ofícios secretos relatavam que os cabos da Aeronáutica estavam se reunindo em associações civis, que eram agitadores e queriam a derrubada do poder”, argumenta. Em 2019, as anistias de militares custaram 513 milhões de reais aos cofres do Ministério da Defesa e quase 75% desse valor foi destinado aos benefícios dos antigos cabos. Quase 35 anos depois da redemocratização, a fatura das indenizações parece não ter fim.

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