Reprodução/redes sociaisCena do vídeo publicado por Flávio Bolsonaro: imagens fortes e história estranha

Cadáver ambulante

As polêmicas imagens do corpo de Adriano da Nóbrega abrem uma guerra de narrativas e ampliam as dúvidas sobre o que há por trás da operação que matou o miliciano
21.02.20

Quase duas semanas após a morte do ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega, baleado na Bahia no último dia 9, seu corpo ainda insepulto e à espera de novas perícias deixou de ser apenas um caso de polícia. O presidente Jair Bolsonaro e seu filho 01, o senador Flávio Bolsonaro, trouxeram a morte do homem acusado de ser miliciano para a mais alta roda política da República. Sempre intolerantes com acusados de crimes, os dois reajustaram o discurso no caso Adriano, denunciado pelo Ministério Público por chefiar o Escritório do Crime, responsável por vários homicídios no Rio de Janeiro, e expulso da PM por dar segurança a chefes do jogo do bicho. O clã Bolsonaro levanta suspeitas de que Adriano sofreu tortura e foi executado como queima de arquivo pela PM da Bahia, governada pelo PT.

A cruzada dos Bolsonaro ganhou as redes sociais. Na terça-feira dia 18, o filho 01 do presidente publicou no Twitter o vídeo de um cadáver sobre uma mesa de ferro, identificado como o corpo de Adriano da Nóbrega por uma etiqueta nas costas e examinado por duas pessoas com luvas cirúrgicas. Como se estivesse diante de provas periciais, Flávio escreveu que o ex-capitão teve sete costelas quebradas, levou coronhada na cabeça e havia marcas de tiros à queima-roupa. Os órgãos oficiais responsáveis pela necropsia negam que as filmagens tenham ocorrido nas suas instalações e, dessa forma, lançam suspeitas sobre como Flávio obteve as imagens do cadáver do ex-capitão com o qual ele diz que não tinha ligação.

Até quinta-feira, o corpo de Adriano estava no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro. A primeira necropsia, realizada logo após a morte dele pelo Departamento de Polícia Técnica da Bahia, corrobora a versão de que Adriano reagiu à prisão a tiros de pistola e morreu no fogo cruzado. Crusoé localizou as funerárias pelas quais passou o corpo do ex-capitão. Elas também negam que a filmagem publicada por Flávio — assim como fotografias do cadáver que vieram a público na semana passada, acompanhadas de versão similar à encampada pela família presidencial — tenha sido feita em suas dependências. Se estiverem falando a verdade, só há duas opções: ou o material publicado por Flávio é fajuto ou o corpo passou por instalações ainda não identificadas.

Esse é mais um mistério a ser desvendado no caso. O outro é de ordem política: por que o presidente da República e seu filho, conhecidos por entoar o discurso de que “bandido bom é bandido morto”, estão agora tão empenhados em reproduzir as queixas dos familiares e amigos de Adriano? A disputa de narrativas prossegue. Se de um lado os Bolsonaro corroboram a versão de que o ex-capitão foi torturado e executado sumariamente, de outro o governador petista Rui Costa, chefe da polícia que executou a operação, explora politicamente as ligações do clã com Adriano, que chegou a ser homenageado pelo então deputado Flávio Bolsonaro na Assembleia do Rio e teve a mãe e a ex-mulher empregadas no gabinete do filho 01 do presidente. Ao que tudo indica, a explicação para a celeuma em torno do caso guarda relação com documentos e aparelhos eletrônicos colhidos pelos policiais baianos logo após a ação em que o miliciano foi morto. Em mais um de seus pronunciamentos matinais à porta do Palácio da Alvorada, Bolsonaro levantou a hipótese de os investigadores encarregados de periciar os telefones coletados com Adriano forjarem áudios e mensagens que possam comprometê-lo.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéFoi Bolsonaro quem falou primeiro sobre a possibilidade de surgirem mensagens e áudios dos celulares de Adriano com potencial para prejudicá-lo
O ex-capitão morreu em um sítio em Esplanada, a 170 quilômetros de Salvador, onde se escondia. Seu corpo passou por perícia no IML do município vizinho de Alagoinhas. De lá seguiu, no dia 11, para a funerária Leal, localizada na mesma cidade. Irmã do ex-policial, a empresária Tatiana da Nóbrega passou uma procuração para um funcionário da funerária registrar a certidão de óbito e obter no cartório uma guia de cremação. A intenção da família era cremar o corpo no dia seguinte, no Rio de Janeiro. O empresário Vitor Leal, dono da funerária, disse que o corpo ficou menos de 24 horas no laboratório do estabelecimento, onde foi preparado para o traslado. Depois disso foi levado de carro até Salvador e depois, num voo comercial, seguiu à noite para o Rio de Janeiro. Leal negou que tenha visto ou autorizado alguma filmagem do cadáver.

Sócio da funerária Santa Casa Nilópolis, na Baixada Fluminense, o empresário Sandro Vargas diz que recebeu o corpo no Rio de Janeiro e, logo depois, precisou embalsamá-lo porque já havia os primeiros sinais de decomposição. O corpo seria cremado na sequência, mas a Justiça proibiu até que as investigações sejam concluídas. Vargas afirma que possui 36 câmeras de segurança na funerária e seus funcionários não podem entrar com celulares no laboratório onde ficam os corpos. Qualquer filmagem dependeria de autorização por escrito na família, o que não houve, afirma o empresário. Ele é taxativo ao negar que o vídeo divulgado por Flávio tenha sido gravado em seu laboratório.

É claro que pode ser só coincidência, mas a página da funerária no Facebook traz fotos do dono da funerária ao lado do presidente Jair Bolsonaro e do senador Flávio, datadas de março de 2015. O empresário diz que encontrou por acaso o então deputado, hoje presidente, na inauguração da loja da Kopenhagen de Flávio, no Shopping Via Parque, na Barra da Tijuca. Vargas afirma ser eleitor incondicional de Bolsonaro, mas que nunca “teve a felicidade” de reencontrá-lo.

A viúva de Adriano pediu à Justiça que o corpo de Adriano fosse transferido da funerária para o IML do Rio, a fim de garantir seu bom estado, numa câmera de refrigeração, até a realização de novas perícias – determinadas pela Justiça da Bahia. Um juiz baiano ordenou que o translado fosse feito no prazo de 24 horas, mas a decisão só foi cumprida no domingo, dia 16, depois de a viúva reclamar que o corpo continuava na funerária de Vargas sob risco de decomposição e de perdas de provas periciais. Nesta quinta-feira, 20, uma equipe de técnicos da Bahia e do Rio começaram finalmente a necropsia no IML.

Agência SenadoAgência SenadoO governador petista Rui Costa respondeu o presidente e negou que o miliciano tenha sido executado
Os aparelhos celulares de Adriano, que estão sendo analisados pelo Ministério Público do Rio, podem indicar quais relações o ex-policial mantinha com milicianos e também com políticos, sempre interessados nos currais eleitorais das favelas dominadas pela quadrilha. No sábado, 15, Bolsonaro afirmou em um evento que foi iniciativa dele, e não de Flávio, condecorar o então capitão, em 2005, com a medalha Tiradentes da Assembleia Legislativa do Rio. “Ele (Adriano) era um herói da PM”, afirmou o presidente. Até aqui se sabia que a homenagem partira apenas do então deputado estadual Flávio. Quando recebeu a honraria, o ex-policial estava preso acusado de matar um guardador de carros que denunciara a milícia. O então deputado o visitou na cadeia.

O presidente e o filho 01 garantem que não têm ligações com as milícias do Rio de Janeiro, mas evitam atacá-las e ignoram as acusações contra o ex-capitão aceitas pela Justiça na ação penal que corre contra o Escritório do Crime. Noutra frente, alimentam a suspeita de que Adriano foi torturado por policiais da Bahia, num complô do PT que comanda o Estado. Os torturadores estariam atrás de informações que comprometessem Bolsonaro com as milícias. Por essa teoria, o ex-capitão foi morto em seguida, como queima de arquivo.

Crusoé obteve os depoimentos de policiais que atuaram na operação que acabaria matando o ex-capitão e dão detalhes sobre o que teria acontecido. No início de fevereiro, a polícia localizara Adriano da Nóbrega numa casa de luxo alugada na Costa do Sauípe, no litoral baiano, mas ele conseguiu escapar do cerco. Um oficial da PM baiana revela que o ex-capitão fugiu para Sergipe, mas estranhamente voltou para a Bahia alguns dias depois. Ele então se hospedou na casa do pecuarista Leandro Abreu Guimarães, a quem conhecia de eventos de vaquejada. À polícia, Guimarães afirmou que buscava uma propriedade no valor de 100 mil reais para Adriano comprar e montar um haras. O ex-policial, segundo o pecuarista, circulava numa caminhonete Hilux branca com “placa policial” do Pará — esse veículo ainda não foi apreendido pela polícia.

No rastro do miliciano, os investigadores identificaram a fazenda de Guimarães como um possível esconderijo. Na noite de sábado, dia 8, por volta das 23 horas, 70 policiais que participariam do cerco à propriedade se reuniram na cidade de Esplanada. Dois delegados da Polícia Civil do Rio que haviam viajado à Bahia especialmente para participar da caçada a Adriano passaram um briefing sobre o alvo. Disseram que era um ex-policial com curso de atirador de elite, de sobrevivência na mata e treinamento em operações de montanha. A fazenda de Guimarães fica no alto de um morro cercada de ribanceiras. Os policiais se dividiram em três equipes: uma iria por terra, outra em carros e a terceira a bordo de um helicóptero. Naquela noite de sábado, enquanto os policiais preparavam a operação, Adriano recebeu uma mensagem no celular, possivelmente de sua mulher, que avisava sobre um cerco da polícia. Guimarães disse que foi obrigado por Adriano, sob ameaça de morte, a levá-lo para um sítio a 10 quilômetros de distância.

Reprodução/Redes sociaisReprodução/redes sociaisAdriano da Nóbrega em uma das ocasiões em que foi preso no Rio: homenageado na Assembleia
Por volta das 6 horas da manhã do dia seguinte, a polícia cercou a fazenda de Guimarães. Segundo depoimentos dos policiais, a PM lançou granadas de fumaça e de luz e som, que assustam pela explosão. Também fizeram disparos de advertência para o alto como forma de atordoar o alvo e evitar qualquer tipo de reação violenta. Guimarães e sua mulher deixaram a casa com as mãos para o alto, segundo o testemunho. Adriano já não estava na casa, segundo o relato. Alegando ter medo, Guimarães não quis revelar o paradeiro do homem que havia hospedado até a véspera. Um oficial que participava da missão conversou com moradores da região, mostrou as fotos de Adriano e diz ter conseguido a informação de que o miliciano costumava ser visto próximo a um sítio, a alguns quilômetros dali, sempre dirigindo uma camionete branca.

Os policiais então cercaram a propriedade. Segundo eles, ao perceber o movimento, Adriano deixou-se ver com uma pistola na mão. Dessa vez, ainda não se sabe o motivo, a PM preferiu não usar granadas de efeito moral. Optou por uma “célula tática”, unidade formada por três policiais protegidos por um escudo à prova de balas. Eles arrebentaram a porta com um aríete e, segundo relatam, entraram em confronto com o alvo em um dos cômodos da casa. Adriano teria atirado no escudo empunhado por um dos soldados, enquanto o outro respondeu com tiros de carabina. O terceiro militar fez disparos com um fuzil 762. A PM diz que Adriano ainda foi levado com vida ao hospital mais próximo, mas morreu pelo impacto das balas e em decorrência de anemia provocada pela perda de sangue. O resultado da nova perícia no cadáver deve ser conhecido em breve, mas a história, com suas variadas versões, ainda está longe de terminar.

Com reportagem de Fabio Serapião, de Esplanada (BA)

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