Amanda Perobelli/Estadão Conteúdo

As fábricas de dinheiro

De onde saem os milhões de reais em espécie que abastecem os grandes esquemas de corrupção
21.02.20

Na Rua 25 de Março, quem paga em cash ganha desconto. A máxima é um dos atrativos que levam diariamente milhares de consumidores ao mais famoso comércio popular do país, no centro histórico de São Paulo. Lá, eles encontram uma variada gama de produtos baratos, como brinquedos, roupas e eletrônicos, a maioria importada da China. O movimento só retrai quando ocorrem operações esporádicas de combate à pirataria, que enchem viaturas com itens contrabandeados ou de origem duvidosa. O sucesso das blitze, contudo, dura tanto quanto uma notícia sensacionalista no jornal. No dia seguinte, o vaivém de lojistas e compradores evidencia o efeito “enxugar gelo” das fiscalizações. Afinal, as ações midiáticas nunca ameaçaram o mais valoroso “subproduto” da economia local: o comércio de dinheiro vivo.

Delações de doleiros, depoimentos de operadores e registros de transportes de valores obtidos por Crusoé mostram, em detalhes, como a 25 de Março funcionou como uma espécie de Casa da Moeda do mercado paralelo que abasteceu grandes esquemas de corrupção, como o da Odebrecht e o das empresas de coleta de lixo da capital paulista, como a Estre Ambiental. A mais recente operação da Polícia Federal em São Paulo, deflagrada com o nome de Chorume, descobriu uma nova organização que arrecadava com comerciantes da praça malotes recheados de dinheiro. No desenrolar do propinoduto, as mesmas notas iam parar nos bolsos de políticos e agentes públicos corruptos. Segundo as investigações, o núcleo desse organograma era composto por doleiros com forte atuação na região, entre eles o chinês Lung Tien The, mais conhecido como Jack.

Um empresário que confessou comandar uma rede de empresas de fachada que produziam notas frias para o consórcio de limpeza de rua de São Paulo contou em delação premiada que Jack gerou cerca de 10 milhões de reais em espécie no comércio popular em apenas oito meses. O chinês indicava as contas das importadoras de produtos da China para realizar as transferências de dinheiro. Depois, revendia a mercadoria importada para os lojistas da 25 de Março e entregava o dinheiro em espécie que recebia como pagamento dos comerciantes no escritório de advocacia do pai do delator, cobrando uma comissão de até 2,5% pela operação. Era lá que os intermediários das empresas de lixo buscavam as quantias destinadas ao suborno. Em uma ponta, dinheiro desviado de contratos públicos pagava os fornecedores dos lojistas do centro e, na outra, as notas de reais entregues pelos consumidores interessados nos descontos financiavam políticos mancomunados com os desvios.

As empresas de Jack ficam nos fundos de uma galeria com 90 lojas que vendem produtos chineses. Em dezembro de 2012, o local foi alvo de uma megaoperação contra a pirataria que apreendeu 103 mil itens sem nota em metade dos boxes. Embora estivesse sem alvará, o shopping popular não foi lacrado e o comércio prosseguiu. Naquele mesmo período, segundo documentos entregues por Gabriel Claro, o delator do esquema, foram feitos depósitos de 4,9 milhões de reais na conta de uma empresa fornecedora de malas e mochilas indicada pelo doleiro chinês para o esquema de desvio de dinheiro das empresas de lixo. As transações foram cobertas com notas frias emitidas pelo cipoal de empresas controladas por Claro. A PF estima que todo o esquema tenha resultado em 400 milhões de reais em espécie, entre 2012 e 2017. O auge das operações foi em 2014, ano marcado pela farra do caixa 2 eleitoral. Os investigadores ainda mapeiam quem foram os destinatários finais dos recursos.

Eduardo Anizelli/FolhapressEduardo Anizelli/FolhapressOperadores da Odebrecht, por exemplo, usavam dinheiro em espécie obtido no comércio popular nos pagamentos a políticos
A exatos 110 metros de distância da galeria de Jack, no coração da 25 de Março, uma tradicional rede de comércio varejista serviu como ponto de coleta de milhões de reais em espécie operados por um outro grupo de doleiros. Era em frente à loja matriz do Armarinhos Fernando, aberta na década de 1970 por um empresário português e que vende praticamente de tudo, que os agentes da Transnacional encostavam com o carro-forte para buscar malotes de dinheiro. A transportadora de valores foi usada pelos operadores contratados pela Odebrecht para efetuar os pagamentos ilícitos do propinoduto da empreiteira em São Paulo. Entre eles, havia um outro chinês chamado Wu Yu Sheng, ou Molleja, que está foragido até hoje. Sheng era frequentemente acionado pela rede de doleiros por causa da facilidade que tinha em levantar grandes quantias de reais em espécie com comerciantes do centro.

Mensagens trocadas por Skype entre os funcionários da Transnacional mostram mais de 50 retiradas de dinheiro programadas na famosa loja da 25 de Março, entre 2013 e 2015. Quase todas as viagens eram agendadas para o fim da tarde, quando o caixa já estava cheio e o movimento de rua já tinha diminuído. As conversas vinculam os valores coletados no armarinho a outras duas empresas de importação que fornecem produtos para a rede varejista – ou seja, um esquema semelhante ao que foi feito no caso das empresas de lixo. “No recolhimento da 25 de Março hoje além dos 300 da Etilux vai ter mais 200.000 (…) Vai ser mais ou menos 500.000”’, diz uma mensagem enviada no dia 26 de fevereiro de 2014 pela central da transportadora, no Rio de Janeiro, para um dos agentes em São Paulo.

Uma das empresas fornecedoras de dinheiro em espécie, nesse caso, pertence a uma família de libaneses naturalizados brasileiros e atua na importação e distribuição de diversos produtos, como artigos de papelaria, brinquedos e roupas. A outra, a Etilux, que vende itens de cutelaria, foi criada por um empresário sírio e tem na sociedade uma offshore aberta nas Ilhas Virgens Britânicas, conhecido paraíso fiscal do Caribe — a empresa diz que todas as suas transações foram realizadas de forma regular, com emissão de nota fiscal. Em algumas das coletas aparecem menções a retiradas de dinheiro em nome da empresa Mabruk, outra importadora cujo sócio também possui negócios no Panamá, famoso destino de dinheiro desviado dos cofres públicos. O advogado do Armarinhos Fernando, José de Lima, confirmou a Crusoé que ao menos duas empresas pediam para receber os pagamentos pelas mercadorias em dinheiro, por meio da transportadora, mas negou qualquer relação da loja com doleiros. “Temos todos os pagamentos documentados. Dali pra frente, o que eles fazem com o dinheiro não nos diz respeito”, afirmou.

Os arquivos da Transnacional revelam o que foi feito com o dinheiro “dali pra frente”. Após serem coletados, os malotes ficavam armazenados na sede da transportadora, na Zona Oeste paulistana, em cofres individuais para cada cliente, incluindo os doleiros. A partir das ordens enviadas pelo famoso departamento de propina da Odebrecht em Salvador, os agentes saíam para fazer as entregas com a quantia exata e a senha que deveria ser dita pelo destinatário da propina. Os códigos eram os mesmos que apareciam nas planilhas da empreiteira com os registros de pagamentos aos políticos. Em setembro do ano passado, na edição 73, Crusoé revelou que o delivery da propina em São Paulo movimentou 248,9 milhões de reais em repasses vinculados a 90 codinomes de políticos. Para não chamar atenção, as entregas eram feitas por policiais militares à paisana em veículos menores, sem o logo da empresa.

Em depoimentos prestados no acordo de delação premiada com a Lava Jato, os doleiros Cláudio Barboza, o Tony, e Vinícius Claret, o Juca Bala, contaram aos procuradores que o doleiro Molleja também estocava o dinheiro coletado diariamente com lojistas e ambulantes da 25 de Março em um imóvel alugado na região da Avenida Paulista, onde depois a transportadora ia buscar os malotes. Depois de sofrer um assalto, o chinês passou a mandar seus funcionários entregarem os valores nas salas comerciais alugadas por Juca e Tony para servir de “bunker” da propina, uma delas na Avenida Faria Lima, principal corredor financeiro do país. A relação de endereços de coleta de dinheiro nos arquivos da Transnacional traz ainda lojas de roupas no bairro do Brás, fábricas de confecção na Barra Funda e galpões na região da Cracolândia, todos no centro de São Paulo.

Na véspera do último Natal, cerca de 600 mil pessoas foram à 25 de Março para encher sacolas com presentes. Para quem ainda não estava familiarizado com a lei local, os próprios ambulantes repetiam como mantra o bordão: “Pagando em dinheiro tem desconto”. Passados quase seis anos do início da Lava Jato, a fábrica de papel moeda no centro de São Paulo continua “imprimindo” suas cédulas.

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