Adriano Machado/CrusoePaulo Guedes (ao centro) e os generais Heleno (à dir) e Ramos (à esq): Planalto diverge na contenda contra o Congresso

A guerra do ‘foda-se’

A disputa por bilhões do Orçamento opõe reformistas do governo à ala fisiológica do Congresso e leva os generais do Planalto a propor o enfrentamento
21.02.20

Reza o princípio consagrado pelo filósofo francês Montesquieu em sua obra “O Espírito das leis” que a harmonia entre poderes é fundamental para impedir que Executivo, Legislativo e Judiciário cometam abusos, tentem se sobrepor uns aos outros, mas, principalmente, que o governante — qualquer que seja ele — confunda sua vontade pessoal com a do povo. A questão assume contornos igualmente preocupantes quando um desmoralizado Legislativo tenta se arvorar, sozinho, no papel de porta-voz do povo. É justamente para que o poder do Congresso não seja excessivo e soberano que existe a figura do veto presidencial a leis aprovadas pelos parlamentares.

Foi desse expediente que o presidente Jair Bolsonaro lançou mão ao vetar uma proposta aprovada pelo Congresso, em dezembro, obrigando o governo a executar 30 bilhões de reais em emendas cuja destinação seria definida — imagina-se com qual critério – pelo relator do Orçamento. Ocorre que, de novo fragilizado politicamente por atitudes e declarações intempestivas que poderia muito bem ter evitado, o mandatário ensaia ceder às pressões cada vez mais escorchantes das excelências. O bom para a democracia é que o sistema de freios e contrapesos às vezes parece funcionar no seio do próprio governo. Diante de mais um claro oportunismo de setores fisiológicos do Parlamento, perante o qual o presidente aparenta demonstrar tibieza, quem se insurge — e falando grosso — é a ala reformista do Planalto. Durante a semana, coube ao general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, externar, ainda que sem querer, a vontade de fazer frente ao que entende como chantagem. “Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se”, afirmou durante a cerimônia de hasteamento da bandeira na portaria do Palácio da Alvorada, numa declaração que acabou escapulindo na transmissão ao vivo realizada por assessores presidenciais.

Interessados no controle dos gastos, nas reformas e num estado redimensionado para menor, os reformistas do Planalto travam uma queda de braço com setores do Congresso desde o início do governo. Os parlamentares querem mais e mais dinheiro para atender os seus interesses paroquiais. O governo precisa reformar o estado para disciplinar as contas públicas e cobrir o rombo de anos de irresponsabilidade fiscal praticada pelos governos do PT. Heleno, como se nota, marcha ao lado dos reformistas. Imbuído desse espírito, na entrada da reunião ministerial da última terça-feira, 18, no Palácio da Alvorada, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional passou uma descompostura no colega Luiz Eduardo Ramos em razão do acordo celebrado pelo ministro da Secretaria de Governo com lideranças do Congresso em favor da derrubada dos vetos do presidente Jair Bolsonaro ao projeto que define o controle da distribuição das emendas parlamentares — aqueles recursos a que deputados e senadores têm direito para destinar a seus redutos eleitorais. Sob os olhares atentos dos demais colegas de Esplanada que se dirigiam à sala onde aconteceria a reunião, Heleno disse a Ramos que o general havia errado ao capitular à pressão do Legislativo. Segundo ele, Ramos deveria se valer do peso institucional do governo para reverter a situação. O constrangimento foi geral.

Já durante a reunião ministerial, Heleno atacou frontalmente os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. Afirmou que o governo não deve mais aceitar as “chantagens” dos dois, aos quais o ministro se referiu pejorativamente por meio de apelidos. Acrescentou também que ambos se ressentiam de capital político e ficavam particularmente enfraquecidos em anos eleitorais. Ao fim e ao cabo, o general ainda sugeriu que Jair Bolsonaro convocasse o povo a tornar as ruas, caso necessário.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéRodrigo Maia e Alcolumbre foram os alvos principais da ira de Augusto Heleno
As declarações de Heleno expuseram a divergência dentro do próprio governo sobre como lidar com o Congresso e atearam ainda mais fogo à contenda entre Executivo e Legislativo pelo controle de parte do Orçamento da União para 2020, que totaliza 3,6 trilhões de reais. Embora considere infrutífera uma briga com o Congresso agora e trabalhe nos bastidores para evitar o esgarçamento da relação, o ministro da Economia, Paulo Guedes, situa-se na mesma trincheira de Heleno quanto ao risco do engessamento dos recursos. O ministro quer diminuir as chamadas verbas carimbadas, o pesadelo de todo e qualquer ministro da Economia. Trata-se do dinheiro previsto no Orçamento que já conta com destinação definida na largada, sem que o governo possa manejá-lo como bem entender. Em paralelo, Guedes trava uma batalha dentro e fora do Planalto para conseguir fazer as reformas deslancharem.

Nos últimos dias, o titular da Economia demonstrou insatisfação com a área política do governo. A auxiliares, Guedes reclamou que ministros e assessores palacianos não entendem que as reformas precisam ser “ousadas”, não um arremedo, e esse pessoal acaba convencendo o presidente Jair Bolsonaro a amenizar as propostas necessárias ao desenvolvimento do país. Segundo interlocutores, o titular da Economia avalia que, se as reformas não forem apresentadas logo e de forma robusta, as perspectivas de crescimento da economia poderão cair, afetando a imagem pessoal de Bolsonaro e, como consequência, do governo como um todo. O foco da insatisfação mais recente envolve a reforma administrativa. Guedes queria uma proposta mais audaciosa. Ministros palacianos, porém, atuam para convencer Bolsonaro a retirar seus pontos polêmicos justamente para adequá-la aos inconfessáveis interesses do Congresso.

Por outro lado, como Crusoé revelou ao longo da semana, ministros donos de assento no Palácio do Planalto relatam desconforto com as recentes declarações de Guedes, como a de chamar servidores públicos de parasitas e a lamentar viagens de empregadas domésticas para a Disney, num contexto de defesa da alta do dólar. Na quinta-feira, 20, Guedes desculpou-se publicamente. Durante a semana, o Planalto chegou a discutir a confecção de uma nota corrigindo o estrago das declarações de Guedes, mas o movimento acabou sendo abortado no nascedouro para evitar amplificar os decibéis da confusão. O problema é que o ministro tomou conhecimento e, por pouco, não abandonou o barco com ele em andamento. Para o país, seria uma catástrofe. Além da discussão sobre os vetos ao Orçamento impositivo, teria sido esse um dos assuntos debatidos numa reunião convocada às pressas na noite de terça-feira, 18, com a presença do trio de ferro do governo — Guedes, Ramos e Heleno.

Na tentativa de impedir o pior, Bolsonaro resolveu fazer um desagravo ao ministro durante a posse do general Braga Netto na Casa Civil, pouco antes da reunião. “Se Paulo Guedes tem alguns problemas pontuais e sofre ataques, é muito mais pela sua competência do que por possíveis deslizes, que eu também já cometi muito no passado”, afirmou o presidente. “O Paulo não pediu para sair, tenho certeza de que ele vai continuar conosco até o último dia”, disse o presidente, chamando a atenção para a ameaça de Guedes, até então só conhecida intramuros. Aparentemente, o risco de o ministro deixar a Esplanada foi contornado. A pessoas próximas, Guedes diz que “por ora” permanece no governo. A depender do desenlace da nova refrega com o Congresso, sua disposição pode ser outra.

Marcos Corrêa/PRMarcos Corrêa/PRDurante a posse de Braga Netto, Bolsonaro fez um desagravo a Paulo Guedes
No meio do caminho encontra-se o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a praticar o “bicanoísmo”, a conhecida prática de acomodar um pé em cada canoa. Ora ele se apresenta ao lado das reformas, e vende-se como o seu principal fiador, ora submete-se aos caprichos de suas bases no Congresso, compostas majoritariamente pelo ultrafisiológico Centrão, o notório agrupamento de legendas ávidas por verbas e cargos. Na quarta-feira, 19, o presidente da Câmara subiu o tom ao reagir às declarações de Heleno. “É uma pena que um ministro com tantos títulos tenha se transformado em um radical ideológico contra a democracia, contra o Parlamento”, exaltou-se Maia. Davi Alcolumbre, outro interessado na querela, também reagiu ao general. “Nenhum ataque à democracia será tolerado pelo Parlamento. O momento, mais do que nunca, é de defesa da democracia, independência e harmonia dos Poderes para trabalhar pelo país. O Congresso Nacional seguirá cumprindo com as suas obrigações”, afirmou o presidente do Senado. Heleno, porém, dobrou a aposta. “Se desejarem o parlamentarismo, mudem a Constituição”, escreveu no Twitter.

No apagar das luzes de 2019, Maia não estava nada exaltado. Pelo contrário. Deixou correr sob suas vistas uma operação que retirou do Executivo um total de 3,8 bilhões de reais em créditos suplementares enviados para o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), então comandado por Gustavo Canuto. Aprovado numa série de rápidas votações, conforme revelou O Antagonista, esse dinheiro já saiu do ministério carimbado por caciques partidários em convênios direcionados a atender conveniências regionais, como revitalização de praças, pavimentação de ruas e construção de pontes. Os recursos não são contabilizados entre as chamadas emendas impositivas e foram negociados pelo grupo de líderes partidários ligados a Alcolumbre e Maia — cujo critério é desconhecido.

O pano de fundo da reedição da briga entre Congresso e Executivo é a busca incessante do Parlamento pela reconquista do que perdeu. Com o fim dos ministérios “de porteira fechada”, os congressistas tentam encontrar novas maneiras de irrigar suas bases eleitorais com dinheiro público. O que está em jogo é de quem será o poder de decidir quando as emendas parlamentares serão executadas e para onde elas serão destinadas. Tradicionalmente usadas como moeda de troca em votações de interesse do Palácio do Planalto, as emendas ganham ainda mais relevância em anos eleitorais como 2020. Na prática, a proposta aprovada pelo Congresso obrigava o governo a executar 30,1 bilhões de reais em emendas do relator e outros 687 milhões de emendas de comissões em até 90 dias. Bolsonaro, porém, vetou trechos do projeto, sob o argumento de que a matéria amarraria ainda mais a execução do Orçamento. O Congresso reagiu de imediato e se articulou para derrubá-los ainda em dezembro. O recesso parlamentar, porém, arrefeceu os ânimos. Mas tão logo os trabalhos foram retomados, em fevereiro, os caciques do Centrão se rearticularam. Percebendo uma iminente derrota, o governo convocou os parlamentares para a mesa de negociações. No dia 11 de fevereiro, Executivo e Legislativo anunciaram um acordo. Pelo acerto, o governo decidiria o destino de 11 bilhões dos 31 bilhões de reais previstos inicialmente para as emendas. Em troca, deputados e senadores aceitavam manter os vetos a pontos considerados sensíveis pelo governo. Entre eles, o prazo de 90 dias para o Executivo empenhar as emendas do relator e o artigo que previa punição caso o governo não executasse os pagamentos. Foi contra esse acerto que Heleno se insurgiu.

O assunto não está encerrado. O Congresso enxerga “jogo duplo” nas ações do governo. A fragilidade política do presidente joga a favor da turma que não se constrange em praticar o fisiologismo em plena luz do sol. Na última semana, o destempero verbal do mandatário, demonstrado no ataque a uma repórter da Folha de S.Paulo, fez o termo “crime de responsabilidade” — dispositivo constitucional capaz de justificar um pedido de impeachment — voltar a ser sussurrado nos corredores de Brasília. Ao testar permanentemente os limites do decoro, e ficar refém de um Congresso que nunca inspirou confiança, Bolsonaro brinca com a sorte e torna o ar que se respira no Palácio do Planalto cada vez mais rarefeito. Não foi à toa que os generais voltaram a ganhar espaço e poder no palácio. Ainda que a sugestão de Heleno de partir para o enfrentamento com os congressistas fique apenas nas palavras, o fortalecimento do chamado Estado Maior do Planalto — agora com mais um general, na Casa Civil — é uma maneira de blindar o gabinete presidencial contra as maquinações em curso do outro lado da Praça dos Três Poderes. A guerra fria está apenas começando.

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