Mexeu com uma, mas não com todas

14.02.20

Há 45 anos, precisamente em 11 de fevereiro de 1975, Margaret Thatcher conquistou a liderança do Partido Conservador no Reino Unido. Em uma época onde a política era dominada por homens, a trajetória da eterna Dama de Ferro não foi fácil. Thatcher assumiu o cargo de Primeira-Ministra inglesa em 1979, em plena Guerra Fria, e deixou o poder político britânico em 1990, logo após a queda do muro de Berlim. Uma das aliadas do ex-presidente americano Ronald Regan no combate ao comunismo, Thatcher alcançou marcas políticas e econômicas históricas quando assumiu o poder na Grã-Bretanha, promovendo mudanças significativas, desde a intervenção em uma sociedade dominada por sindicatos e corporações, até a reconquista do caminho de prosperidade ao travar ferrenhas batalhas para implementar medidas liberais.

Thatcher promoveu transformações profundas e deixou um legado que serve até hoje para o mundo. O programa de privatizações sob seu comando foi intenso e sua administração privatizou quase todas as empresas estatais, aliviando o estado para os problemas mais sérios da época: “O governo não sabe administrar empresas e quase sempre o faz de modo inepto”, disse em uma polêmica entrevista (hum, parece familiar?). Sob sua batuta, o governo também reduziu impostos e realizou reformas institucionais com foco na diminuição do estado e seus tentáculos. Apesar da herança recebida do Partido Trabalhista, como a recessão econômica, altos índices de desemprego e elevadas taxas de inflação, foi durante seu comando que o programa “capitalismo popular” foi instituído e milhões de ingleses se tornaram donos de suas próprias casas.

O legado de Thatcher é vasto e poderíamos dedicar esse e mais tantos outros artigos às ações e feitos dessa magnífica mulher, que não apenas esteve à frente de seu tempo no campo político, mas que inspira até hoje outras tantas mulheres a trilhar seu caminho de coragem e resiliência. O fato que me intriga, no entanto, mesmo diante de seu espólio inspirador, é ela não ser tão celebrada, e muitas vezes até demonizada, por algumas mulheres. Não deveríamos celebrar sempre os feitos de uma mulher que desmontou barreiras contra seu gênero e mostrou absoluta competência e força feminina? E é aí que nos deparamos com a hipocrisia do universo feminino e toda a sua apreciação ou indignação seletiva.

Nesta semana, durante a CPMI das Fake News (ou CPMI da Censura, como queiram), o PT armou um circo (“o PT armou um circo” seria pleonasmo ou redundância?) e saiu como verdadeiro palhaço da história. O partido mais corrupto do país convidou o depoente Hans River para que ele confirmasse ter trabalhado para a campanha de Jair Bolsonaro em 2018 na venda de mensagens em massa para aplicativos. Na teoria, o PT esperava que o depoimento pudesse corroborar com uma matéria da Folha de São Paulo de 2018 que acusava empresários ligados ao atual presidente de comprar esses disparos. O depoente, no entanto, para desespero de Rui Falcão, não confirmou ter trabalhado para a campanha de Jair Bolsonaro e ainda afirmou ter atuado na campanha petista. Hans River, a fonte da jornalista Patrícia Campos Mello que publicou a matéria em 2018, foi além e fez abjetas acusações à jornalista da Folha, sobre favores e assédio sexual. Bem, apertem os cintos, como dizem por aí, “estou no meu lugar de fala”.

Antes de mais nada, as acusações do depoente Hans River foram baixíssimas e atentaram contra a honra de uma mulher. Ponto. Dito isso, não me assusta a comoção por grande parte da imprensa, de instituições como a OAB e até do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em favor da jornalista. O que me assusta é o silêncio dessas mesmas pessoas, principalmente as mulheres, quando na semana passada vimos um ator de quinta categoria profanar palavras horríveis à atual Secretária de Cultura, Regina Duarte. Vamos colocar as aspas do senhor José de Abreu? “Fascista a gente trata no cuspe, vagina não transforma mulher em ser humano”. Por curiosidade, corri o perfil de várias jornalistas que saíram em ferrenha defesa, e com razão, de Patrícia Campos Mello e curiosamente não encontrei uma declaração ou frase sequer sobre Regina Duarte, nenhuma palavra em defesa de sua honra como ser humano e, principalmente, como mulher. Nada. Niente.

A semana também me fez lembrar sobre o episódio envolvendo a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, quando ela relatou publicamente sua experiência na infância com pensamentos suicidas, depois de ter sido abusada sexualmente aos 6 anos. A ministra contou que chegou a subir em um pé de goiaba para beber veneno, mas que teve um “encontro” com Jesus e que isso a teria feito desistir de tirar a própria vida. Damares imediatamente virou chacota nacional entre muitos jornalistas e, para a surpresa de ninguém, também mulheres. Houve até jornalista de rádio rindo da história no ar e pedindo “um sambinha, O Bicho da Goiabeira” para encerrar o programa, enquanto dividia gargalhadas com o seu companheiro de bancada. Onde estavam os zelosos jornalistas da honra alheia feminina, estes e todos os que assinaram um manifesto essa semana a favor da jornalista da Folha, quando uma ministra, mas antes de tudo uma mulher, foi debochada depois de contar que foi abusada sexualmente aos 6 anos de idade e que pensou em tirar a própria vida?

Eu gostaria de ver um décimo da indignação que muitas dessas jornalistas demonstraram no caso da colega atacada na CPMI em situações muito similares que passam como praticamente inexistentes aos olhos dessa “comunidade feminina”. Não preciso ir muito longe, eu mesma já fui agredida publicamente por muitos perfis famosos, inclusive de jornalistas, pares das protetoras da honra feminina, por defender o esporte feminino – e as mulheres – dessa política absurda de permitir transexuais, homens biológicos, de competir com meninas e mulheres. Nenhuma delas apareceu em minha defesa quando fui chamada de nomes impublicáveis por muitos de seus conhecidos. Por que não criaram um abaixo assinado de repúdio quando o ator José de Abreu foi extremamente ofensivo com Regina Duarte? Por que ela é do governo que as jornalistas não gostam? Por que fizeram chacota de Damares Alves e silenciaram com tantas outras mulheres que têm a honra agredida publicamente? Porque elas não são defensoras das mulheres e muito menos de jornalistas. São defensoras de jornalistas mulheres que pertencem ao mesmo espectro político que elas. Se você não tem esse combo, querida, boa sorte.

O interessante, talvez diria até revelador, é que muitas mulheres que fazem questão de varrer Thatcher para fora do hall de heroínas “Girl Power”, o fazem apenas pela simples razão de que ela não pertence ao grupo ideológico do “Beautiful People”. Mas Hillary, a progressista do espectro político limpinho e ex-primeira-dama Americana que permanece casada com um predador sexual cujos rastros ajudou a esconder, é curiosamente vista como um exemplo para essas mulheres, um ícone, digna de aplausos e homenagens.

Há uma série no Netflix, uma joia perdida, chamada “She-Wolves: England’s Early Queens” (2012), criada e estrelada pela historiadora PhD de Cambridge e escritora Helen Castor. É uma viagem com a autora pela fascinante trajetória de algumas das mulheres mais extraordinárias da monarquia britânica, daquelas que realmente desafiaram o poder, as convenções e fizeram história. Feminismo raiz e não de boutique. Logo no primeiro episódio somos apresentados a mais antiga das “lobas”, chamadas assim até por Shakespeare: Matilde de Flandres (1031-1083), primeira mulher a exercer o cargo de rainha britânica com autoridade e não apenas como esposa decorativa do rei. A série ainda relembra Leonor de Aquitânia (1122-1204), Isabel da França (1295-1358), Margarida de Anjou (1430-1482), Joana Grey (1536-1554), Maria I (1516-1558) e Elizabeth I (1533-1603). Vale a pena dar uma olhada na história de mil anos que mostra mulheres que, para muitos deslumbrados e desavisados de hoje, aparentemente nunca existiram porque, provavelmente, assim como Thatcher, não pagariam o pedágio ideológico necessário da esquerda para merecer proteção.

Hillary e outras tantas adoradas e abrigadas pelo pedágio do progressismo e da social democracia passarão para a posterioridade como ícones para as mulheres? Veremos. O tíquete para a relevância nos livros de história não se compra nos guichês de partidos políticos nem nos despachantes engajados de parte da imprensa. Já as lobas de Helen Castor, junto com Margaret Thatcher, estão a salvo de modismos passageiros e fúteis, da hipocrisia e das ideologias revolucionárias de boutique, e seus nomes serão lembrados muito tempo depois que a geração da indignação seletiva tiver desaparecido. God save the real queens.

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