MarioSabino

A boca grande de Paulo Guedes

14.02.20

Charles-Maurice de Talleyrand Périgord. Descarte o segundo sobrenome que parece rótulo de champanhe e fique com o primeiro. Talleyrand foi um prodígio da política francesa entre o final do século XVIII e o início do século XIX. Nobre de origem, foi ordenado padre quando era papista, mesmo depois de ter sido expulso do seminário. Não resistia a mulheres cisgêneras maiores de idade, uma esparsa preferência eclesiástica. Consagrado bispo, Talleyrand agiu contra os interesses do papa, abandonou a Igreja e se viu excomungado. Conspirou contra um ministro de Luís XVI antes da Revolução Francesa. Ao lado dos revolucionários, exilou-se nos Estados Unidos depois da execução do rei que ajudara a depor — e voltou de lá ministro. Demitido por corrupção, aliou-se a Napoleão Bonaparte e o traiu. Ajudou a restaurar o Império, foi ministro de Luís XVIII e tramou para derrubar o irmão dele, Carlos X, e colocar no seu lugar Luís Filipe I, o “rei burguês”. O homem era mais adaptável do que Renan Calheiros. Um perigo.

Na França, Talleyrand é sinônimo de cinismo e oportunismo. Tanto que, no seu Dicionário das Ideias Feitas, Gustave Flaubert dedica-lhe o seguinte verbete: Talleyrand (Príncipe de): indignar-se contra. Em Paris, há uma rua minúscula chamada Talleyrand, que começa na Esplanada dos Inválidos, onde está a tumba de Napoleão. Durante anos, enxerguei na rua a metáfora de um quisto na grandeza napoleônica. Até que um amigo local me disse que o Talleyrand que dá nome à rua é o de um sobrinho-neto de Charles-Maurice. A minha metáfora foi para o brejo.

Talleyrand pode não ter sido um exemplo de homem público, mas tem algo a ensinar ao ministro da Economia, Paulo Guedes, a outros próceres do governo de Jair Bolsonaro e ao próprio presidente da República. Credita-se a Talleyrand a seguinte frase:

A palavra foi dada ao homem para disfarçar o seu pensamento.

O primeiro atributo de um político, qualquer que seja ele (e não adianta Paulo Guedes achar que existe ministro não político), é mentir. O segundo é mentir. O terceiro é mentir, e assim por diante, até chegar ao décimo. O décimo atributo é ser demagógico. Falar sempre o que realmente pensa é um enorme defeito para um político, não importa se o que ele pensa é verdadeiro ou não, justo ou não. Aristóteles acreditava que a demagogia estava para a democracia, assim como a tirania estava para a monarquia. Era corrupção moral. Séculos mais tarde, a realidade mostra que, não raro, a sinceridade na política é que é imoral.

No espaço de menos de uma semana, Paulo Guedes fez duas afirmações desastrosas. A primeira foi a seguinte:

O governo está quebrado. Gasta 90% da receita toda com salário e é obrigado a dar aumento de salário. O funcionalismo teve aumento de 50% acima da inflação, tem estabilidade de emprego, tem aposentadoria generosa, tem tudo, o hospedeiro está morrendo, o cara virou um parasita, o dinheiro não chega no povo e ele quer aumento automático, não dá mais. A população não quer isso, 88% da população brasileira são a favor inclusive de demissão de funcionalismo público, de reforma, de tudo para valer. Nos Estados Unidos o cara fica quatro, cinco anos sem dar um reajuste. De repente, quando ele dá um reajuste,todo mundo: ‘Oh, muito obrigado, prazer.’ Aqui o cara é obrigado a dar, porque o dinheiro está carimbado, e ainda leva xingamento, ovo, não pode andar de avião.

Diante da repercussão extremamente negativa, o ministro se retratou dizendo que a frase sobre parasitismo foi retirada do contexto e ele havia se referido especificamente a servidores privilegiados de governos estaduais e municipais. Não tenho dúvida de que Paulo Guedes queria exatamente dizer isso e se expressou mal. E de que existe mesmo uma casta no funcionalismo que só quer saber de parasitar a máquina pública. Ocorreu o mesmo tipo de mal-entendido — ou má intenção alheia — quando Paulo Guedes fez referência ao AI-5 numa entrevista em Washington. Quis defender a democracia, mas foi interpretado como se houvesse feito o contrário. Ele tem de aprender a contextualizar melhor, inclusive porque tirar frase do contexto é uma especialidade da oposição e contexto não cabe no espaço de uma manchete jornalística.

Vamos à segunda afirmação do ministro, agora sobre as contínuas altas do dólar:

O câmbio não está nervoso, (o câmbio) mudou. Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Pera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeiro do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu, vai passear no Brasil, vai conhecer o Brasil. Está cheio de coisa bonita para ver.

E ele continuou, tentando emendar o soneto:

 Antes que falem: Ministro diz que empregada doméstica estava indo para Disneylândia.” Não, o ministro está dizendo que o câmbio estava tão barato que todo mundo está indo para a Disneylândia, até as classes sociais mais…Todo mundo tem que ir para a Disneylândia conhecer um dia, mas não três, quatro vezes por ano. Porque com dólar a R$ 1,80 tinha gente indo quatro vezes por ano. Vai três vezes para Foz do Iguaçu, Chapada Diamantina, conhece um pouquinho do Brasil, vai ver a selva amazônica. E, na quarta vez, você vai para a Disneylândia, em vez de ir quatro vezes ao ano.

Como era previsível, Lula disse que a frase do ministro era prova do que ele, Lula, vive repetindo — que os ricos brasileiros não gostam de ver pobre andando de avião. Dilma Rousseff aproveitou para chamar o ministro da Economia de “escravocrata”. Na esteira dos petistas, um bando de vigaristas vai criar ainda mais entraves às reformas que ainda precisam ser feitas e fazer um carnaval nas campanhas eleitorais com as palavras de Paulo Guedes, na linha “o governo que odeia pobre”.

A incontinência verbal do ministro foi um desastre de qualquer ponto de vista, não adianta passar paninho. Ele disse o que pensa e, pior, o que pensa não condiz com a realidade. Empregadas domésticas, talvez com a exceção das que Paulo Guedes tem na sua casa ou daquelas que viajam como babás para gente do nível econômico do ministro, não vão à Disney. A esmagadora maioria trabalha em casas de classe média versão IBGE, que não pode pagar salários mais altos e ainda tem de se virar com os encargos criados pelo PT — encargos que causaram mais desemprego entre os que não têm outro caminho a não ser o do serviço doméstico. Empregadas domésticas, além disso, não são o único sinônimo “das classes sociais mais…”, ao contrário do que acredita o ministro. “As classes sociais mais…” incluem brasileiros com boa instrução superior e capacitação técnica invisíveis do alto dos prédios da Faria Lima. Alguém também precisa informar Paulo Guedes de que cidadãos comuns não têm três, quatro férias por ano. Informo eu, tudo bem: são trinta dias por ano, mas em geral eles vendem dez dias à empresa e tiram vinte.

O que o ministro sabe, mas não disse, é que o problema não é o dólar turismo, inclusive porque, em geral, boa parte dos turistas brasileiros adota como lema “quem converte não se diverte”. Felizmente, contrair dívida para viajar é opção, não é como contrair coronavírus ou dengue. Ir à Disney, aliás, costuma sair mais barato do que viajar pelo Brasil, como sugeriu Paulo Guedes — e o dólar mais alto também puxa para cima os preços dos pacotes para Foz do Iguaçu, Chapada Diamantina e selva amazônica, destinos sugeridos por Paulo Guedes. Sem querer bancar o economista, o fato relevante é que o câmbio salgado ajuda as exportações, mas encarece importações necessárias a diversos setores econômicos brasileiros. Pode ser inevitável que o dólar se mantenha alto por causa dos juros básicos mais baixos (do alto da minha ignorância, acho que há populismo nas taxas atuais) e fatores internacionais, mas a fala desastrada do ministro abriu caminho para que especuladores inflassem ainda mais o preço da moeda americana no dia seguinte. O mandachuva da economia pode fazer festa de especulador, mesmo involuntariamente? Não, não pode. É o que ocorre quando o titular da pasta se mete a tecer consideraçōes sobre câmbio flutuante. Não deixa de ser curioso que ele ignore a sua capacidade de influir no dia a dia das cotaçōes.

A minha recomendação é que Paulo Guedes — que o jornal Extra chamou comicamente de “Sua Excelência o ministro Caco Antibes” — faça como Talleyrand preconizou: use a palavra para disfarçar pensamentos. Sejam  expressões da verdade ou não, sejam justos ou não. Ou simplesmente mantenha a boca grande fechada, como fazia Pedro Malan. Desse modo, ajudará a si próprio, o presidente da República e o Brasil das domésticas, da classe média versão IBGE e até dos ricos que geram empregos, veja só.

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