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Oscar em vertigem

O documentário que retorce a realidade para dizer que a democracia está em risco no Brasil pode enganar Hollywood, mas é só o desabafo narcisista de uma garota inconformada
07.02.20

Um senhor de expressão cansada diz que Lula colocou comida na mesa do pobre. Uma mulher de cocar comemora a entrada das filhas na faculdade. Uma jovem uniformizada – ao que tudo indica, policial – declara que ama Lula “de coração”. Os três depoimentos, muito breves, estão entre as poucas vozes de populares nas duas horas do filme brasileiro que concorre ao Oscar de melhor documentário. Em Democracia em Vertigem, os pobres quase não falam. A única cena em uma favela é um clichê do marketing eleitoral: mostra um político pegando crianças no colo e abraçando os moradores. O político, claro, é Luiz Inácio Lula da Silva, o herói da diretora Petra Costa. Manifestações de rua – contra e a favor do PT – pontuam a narrativa do documentário, mas a ação que realmente interessa se dá nos gabinetes de Brasília. Ainda que professe a aspiração de um país mais justo e inclusivo, Democracia em Vertigem é uma crônica palaciana, que pouco ou nada diz sobre os efeitos que as maquinações políticas têm sobre o cidadão comum. Ao lado de Lula e Dilma Rousseff, cujo impeachment teria lançado a democracia brasileira na tal vertigem, há só mais uma terceira figura forte no filme: Marília Andrade, mãe da diretora, militante de esquerda que foi presa (mas logo liberada) em 1968 e filha do fundador da empreiteira Andrade Gutierrez. Em meio a esses medalhões do poder e do empresariado, o povo não tem voz nem vez.

Há um vivo contraste entre a fan-fic progressista de Petra e seus principais concorrentes no Oscar, cujos vencedores serão anunciados neste domingo, 9. For Sama e The Cave tratam da cruenta guerra civil na Síria – um drama humano imediato e palpável. American Factory (disponível na Netflix, tal como o filme de Petra) retrata a esperança e depois a frustração que uma fábrica chinesa traz a uma estagnada cidade do chamado “cinturão da ferrugem” americano – e se aqui os protagonistas são operários (vale dizer, exercem uma profissão que Lula abandonou há 40 anos), no filme brasileiro a única trabalhadora ouvida no exercício de seu ofício é uma faxineira do Palácio da Alvorada. Democracia em Vertigem quer falar do Brasil, mas não sai de Brasília. Nem por isso lança nova luz sobre o que acontece nos bastidores do poder: centrado sobre o processo de impeachment de Dilma e sobre a prisão de Lula, o filme repisa fatos amplamente noticiados pela “mídia” que a diretora considera cúmplice da derrubada da democracia.

DivulgaçãoDivulgaçãoPetra Costa, para quem Lula é “um escultor cujo material é argila humana”
A voz chorosa de Petra narra os fatos com razoável clareza, mas insuportável alarmismo, reiterando, a cada passo, a morte trágica da democracia. As metáforas são abundantes – e todas canhestras. Lula é definido como “um escultor cujo material é argila humana”, frase que se pretende lisonjeira mas serviria bem para caracterizar um demagogo de pendores totalitários. A ideia de “vertigem” é tanto mais imprecisa: o documentário apresenta a eleição de Jair Bolsonaro como o ponto final da democracia brasileira, mas vertigem não é fim – ao contrário, implica movimento. Talvez vertigem tenha sido o que Petra sentiu na cena em que rodopia feito um pião pela avenida Paulista, celebrando a vitória eleitoral de Dilma, em 2010.

A adesão de Petra ao PT vai bem além da dança na Paulista. Seu documentário sugere que só existe democracia quando o partido está no poder. No sumário que faz da história brasileira desde o fim da ditadura, o filme não informa o nome dos presidentes anteriores à era petista: importa apenas dizer que Lula perdeu as eleições de 1989, 1994 e 1998. Petra não chama o impeachment de golpe, mas referenda a tese inconsistente de que Dilma só caiu porque não quis interferir na Lava Jato e de que a Lava Jato perseguiu o PT porque o partido contrariava grandes interesses econômicos. A seleção de imagens de arquivo constrói para Lula a figura de um estadista altivo. O presidente aparece ao lado de Nelson Mandela e da rainha Elizabeth II, mas não abraçado a Hugo Chávez ou Muammar Kadafi; quando discursa, é para exaltar a democracia, não para conclamar o “exército de Stédile”. Como a disposição macambúzia do filme é impenetrável ao humor, não aparecem na tela os memoráveis discursos improvisados – Mulher sapiens, figura oculta que é um cachorro – que foram a maior alegria dada por Dilma Rousseff ao país. A narração de Petra alude à devastadora crise econômica do governo Dilma só duas vezes, de passagem.

DivulgaçãoDivulgaçãoDocumentário quer falar do Brasil, mas não sai de Brasília
O filme subscreve o surrado lugar-comum da “crítica pela esquerda” segundo o qual Lula e seu partido, originalmente puros, perderam-se ao fazer alianças com o establishment corrupto. Não há nada de novo, portanto, na única linha interpretativa do documentário que se afasta um pouco do discurso petista. A tênue originalidade de Petra está no seu drama familiar. Seus pais, militantes clandestinos do PCdoB nos anos 60 e 70, sonharam com uma revolução que não se realizou, mas renovaram as esperanças com o ex-operário que chegou ao poder. A desilusão da mãe de Petra com os rumos do país é o centro emocional do documentário, e mesmo nesse relato doméstico há capciosas omissões. O jornalista e escritor Astier Basílio, em um artigo minucioso no portal Estado da Arte, documentou as “deformações líricas” na história familiar narrada por Petra. A clandestinidade de seus pais era relativa: eles militavam no Paraná, mas ainda viajavam todo ano para passar férias com familiares em Minas Gerais. E o afastamento que Petra afirma existir entre os pais esquerdistas e o lado burguês da família é ilusório: sua mãe ainda é acionista da Andrade Gutierrez.

A fidelidade ao mito da família revolucionária leva Petra a manipular a História. O nome da diretora homenageia o mentor de seus pais no PCdoB, Pedro Pomar, morto pela polícia em 1976 no episódio conhecido como Chacina da Lapa. O documentário exibe a foto de dois companheiros de Pomar assassinados no mesmo dia, mas Petra removeu digitalmente o revólver e a carabina que estavam junto aos cadáveres. Sim, há evidências fortes de que essas armas foram colocadas ali pela polícia. Mas as armas plantadas já se incorporaram ao registro histórico. Apagar o que provavelmente foi uma impostura constitui uma nova impostura.

A história do documentário e do jornalismo registra casos de profissionais consagrados que distorceram os fatos na intenção de realçar o que julgavam ser a verdade maior da história. A foto que Robert Capa tirou, em 1936, de um soldado republicano abatido por um tiro na Guerra Civil Espanhola é considerada uma das melhores já feitas em situação de combate – mas análises recentes sugerem que a cena pode ter sido montada. Na II Guerra Mundial, o cineasta John Huston chegou a San Pietro, na Itália, dias depois de as tropas americanas terem derrotado os nazistas que ocupavam o lugarejo – e então reencenou a batalha para produzir um documentário que chocou os espectadores pelo realismo. Capra e Huston, pelo menos, faziam parte de um esforço de guerra real. Petra Costa é só uma combatente da infeliz guerra cultural, em que esquerda e direita lutam para impor suas respectivas “narrativas” ideológicas. Nem a eventual consagração do Oscar mudará o fato de que Democracia em Vertigem não oferece sequer material para debate ou discordância: é só o desabafo narcisista de uma garota inconformada porque o Brasil não é o país que sua mãe queria.

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