Carros esportivos sem placa em restaurante no bairro de Las Mercedes: as benesses do socialismo

Os burgueses de Maduro

Bolichicos, cadiveros e enchufados: conheça a elite bolivariana, que anda em Ferraris e Lamborghinis sem placa, mas não pode passear em Miami
07.02.20

Caracas é uma capital escura e com pouco movimento nas ruas. Como não há óleo de motor, pneus ou peças de reposição, a maioria dos automóveis está abandonada nas garagens. Mas em algumas quadras muito exclusivas da cidade há lampejos de luz. No bairro de Lomas de Lagunita, fachadas de casas inteiramente reformadas, com pisos de mármore, são iluminadas por luzes néon que mudam de cor: verde, púrpura e azul. Na região de Las Mercedes, onde tradicionalmente se concentrava a vida noturna da cidade venezuelana, carros das marcas Ferrari e Lamborghini, todos sem placas, estacionam lado a lado na porta dos restaurantes. Desde o final do ano passado, jovens abastados se divertem com música eletrônica no Hotel Humboldt, que fica no topo do monte El Ávila e só pode ser acessado por teleférico. Nas noites de festa, canhões de luz projetam feixes verdes sobre a cidade silenciosa. Uma mesa para oito pessoas, com direito a três garrafas de bebidas (champanhe Veuve Clicquot Rich, rum Santa Teresa 1769 e vodca Grey Goose), custa 900 dólares.

Casa no bairro Lomas de Lagunita, em Caracas: luzes numa cidade escura
A casta de privilegiados que pode se dar ao luxo de reservar uma mesa no Hotel Humboldt é uma cria do socialismo. No governo de Hugo Chávez, seus membros eram conhecidos como “boliburguesia”, neologismo que mescla bolivarianismo e burguesia. O principal destino de viagens dos boliburgueses era Miami. Como andavam com malas cheias de bolívares, as agências de viagem eram obrigadas a ter máquinas para contar notas. A elite que hoje faz a festa na ditadura de Nicolás Maduro só anda com dólares, uma vez que as notas de bolívares não valem mais nada. Outra diferença é que, com as sanções americanas, eles já não podem viajar para Miami. Agora viajam para a Europa, para o Caribe e para praias da própria Venezuela.

Canhões de luz do Hotel Humboldt: 900 dólares por uma reserva de mesa
Para classificar essa burguesia, os venezuelanos criaram denominações que levam em conta a origem das fortunas. O maior subgrupo é o dos cadiveros. Trata-se dos que enriqueceram com a Comissão Nacional de Administração de Divisas, a Cadivi. A maior parte dos seus integrantes era dona de firmas fantasmas que nem sequer tinham sede. É o que os venezuelanos chamam de “empresas de maletín”. Eles pediam dólares à Cadivi para importar alimentos. Com o setor produtivo da Venezuela totalmente falido, a importação estatal de produtos tornou-se fundamental para manter o padrão de vida da população. Os cadiveros, porém, superfaturavam as mercadorias ou simplesmente não compravam nada no exterior. Os dólares que receberam do governo foram desviados para contas bancárias em paraísos fiscais. “São essas contas que financiam grande parte da gastança da elite de Maduro. Tais fortunas não surgiram agora. Elas foram acumuladas durante os anos de chavismo”, diz o cientista político venezuelano Manuel Malaver. Um detalhe que não pode faltar: entre 2006 e 2013, quem chefiou a Cadivi foi o coronel Manuel Barroso, escolhido por Maduro para ser o adido militar na embaixada da Venezuela em Brasília, como Crusoé mostrou em novembro. Ele é acusado de ter participado do desvio de nada menos que 20 bilhões de dólares.

Máquina usada para autenticar notas: economia dolarizada
Outro termo recorrente é bolichicos. Foi criado em 2010, ainda durante o governo de Hugo Chávez, para denominar um grupo de jovens que amealhou muito dinheiro assinando contratos com o governo para construir hidrelétricas e termoelétricas. Os projetos não saíram do papel, mas eles embolsaram os recursos estatais. Mais tarde, o termo bolichico foi ampliado para abarcar todos os jovens na faixa de trinta anos que desfilam pela cidade com carros esportivos Ferrari, Alfa Romeo, Bugatti, Lamborghini e Mercedes. Eles são mais estilosos que os funcionários antigos do governo, que preferem o Toyota 4runner (os jipes americanos Hummer H2, que ganharam fama na guerra do Iraque, em 2003, e tornaram-se moda entre os boliburgueses de Hugo Chávez, praticamente não existem mais).

O Bodegón Actual fica dentro do hotel Eurobuilding
Uma terceira expressão usada para denominar a elite de Maduro é enchufados. São os venezuelanos que não seguem a ideologia socialista — alguns até são opositores ou críticos da ditadura —, mas que conseguem negócios lucrativos graças a bons contatos na nomenklatura. São os enchufados que comandam o ramo mais promissor dos negócios: o de vender todo tipo de produto, em dólares, para a burguesia chavista. Diversos estabelecimentos, chamados de bodegones, surgiram em lugares onde havia padarias e pequenos comércios. Outros estão dentro de hotéis e shopping centers. No Bodegón Actual, que fica no hotel Eurobuilding, um xampu que custa 10 dólares nos Estados Unidos sai por 25 dólares. Os charutos são todos cubanos. Um uísque Glenfiddich 21 anos Gran Reserva custa entre 300 e 500 dólares. Vendem-se ainda sorvetes, pães e vegetais frescos aos clientes que contam com serviço de valet para estacionar o carro. O pagamento das compras é feito com notas de dólares ou com cartões de crédito internacionais.

Para acompanhar cadiveros, bolichicos e enchufados, o Socialismo do Século XXI criou um novo tipo de mulher: as “bendecidas y afortunadas” (abençoadas e sortudas, em espanhol). Entre elas, há muitas prostitutas. Como somente os chavistas têm dinheiro para gastar, elas não atraem outros clientes. Em Morrocoy, uma praia venezuelana que se tornou febre entre a nova elite, pode-se alugar uma lancha por 450 dólares por um dia. Um iate custa 1000 dólares. Para cada “bendecida y afortunada” que acompanha o passeio, o valor a ser pago é de 600 dólares.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisA ex-miss Sthefany Gutiérrez ganhou uma coroa de joias do noivo chavista
O termo também engloba ex-misses, modelos e apresentadoras de televisão que se relacionam com chavistas. Em um país onde mais de 80% da população é pobre, elas não abrem mão de ostentar riqueza nas redes sociais. No último Natal, a ex-Miss Venezuela Sthefany Gutiérrez posou para várias fotos com uma árvore lotada de presentes. Em um vídeo publicado no Instagram, ela aparece abrindo um presente dado por seu noivo, Jorge Alfredo Silva Cardona. De dentro da caixa, sai uma coroa de joias — cópia da que ela ganhou em 2017. Como a internet foi tomada por críticas dizendo que ela era uma enchufada ou uma “bendecida y afortunada”, Sthefany publicou um comunicado nas redes: “Sou sortuda por ter uma família sólida e pais exemplares. Venho de um lar simples, baseado em princípios morais e sociais.”

Em meados de 2013, Jorge Silva, o marido da ex-miss, tinha um cargo de baixo escalão como técnico administrativo na receita venezuelana, o Seniat. No governo de Maduro, ele assumiu a presidência do grupo JHS, cujo principal negócio é a importação de alimentos básicos. Como a falência do setor petrolífero deixou o governo da Venezuela sem dólares, as importações estatais caíram para zero. Só quem segue comprando no exterior é a nova elite chavista, com os dólares que ganharam ou roubaram.

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