Dida Sampaio/Estadão ConteúdoRoberta Rangel com Dias Toffoli: atuação quase "fantasma", mas bem-sucedida

Milagre sem santo

Sem apresentar sequer uma petição por escrito, mulher de Dias Toffoli faz ministro do STJ mudar de ideia e consegue libertar cliente horas depois de entrar no caso
07.02.20

No começo, é uma história típica do Brasil profundo. Um homem é preso em um rincão do Mato Grosso sob suspeita de usar documentos falsos e portar armas sem registro. Esse mesmo homem, que segundo a polícia usa uma identidade falsa para esconder supostos crimes praticados no interior do Paraná, é capataz de um fazendeiro multimilionário que se aventurou na política e um dia conseguiu se eleger deputado estadual.

A prisão do capataz virou uma novela. Advogados foram contratados para livrá-lo da cadeia. Sem sucesso. Ainda na Justiça mato-grossense, todos os pedidos da defesa foram negados. Foi preciso recorrer ao Superior Tribunal de Justiça, o STJ, em Brasília. No primeiro recurso, nada. No segundo, nada também. Ambos foram redondamente negados pelo ministro que recebeu o caso, Reynaldo Soares da Fonseca.

Até que, de repente, surgiu uma solução alternativa e o ministro mudou de ideia. Contrariando o que havia decidido antes, por duas vezes, ele soltou o suspeito de ofício, sem que aos autos fosse anexado qualquer novo pedido. O curso da história mudou horas depois de uma nova advogada entrar no processo. O nome dela: Roberta Maria Rangel. Para quem não conhece, é a mulher do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli.

A novela começa em dezembro de 2018, na delegacia do município de Confresa, cidade de 30 mil habitantes localizada a mil quilômetros de Cuiabá, já nas proximidades da divisa com o Pará. Um funcionário da Fazenda Paraíso, uma das maiores da região, procurou a polícia para relatar que fora ameaçado com uma arma de fogo pelo capataz da propriedade, após dizer que não iria trabalhar no domingo.

A fazenda pertence ao ex-deputado estadual Zeca Viana, do Podemos, grande produtor rural do estado. A polícia foi até o local e encontrou o alvo da queixa. O homem, que se identificou como Pedro Antônio de Oliveira Rodrigues, carregava na cintura dois revólveres e munições calibre .38 no bolso. Ao avistar os policiais, ele tentou fugir, mas foi alcançado e preso.

Na ocorrência, ficou registrado que o homem era “braço direito” do dono da fazenda. Como — ao menos conforme a identidade que apresentara aos agentes — ele era réu primário, foi solto no dia seguinte. Sete meses depois, já em julho de 2019, uma outra equipe da polícia foi à fazenda, desta vez acompanhando um oficial de Justiça que precisava entregar aos donos da propriedade uma intimação que nada tinha a ver com a primeira história.

Assustado, talvez achando que ele era o alvo, o homem tentou fugir de novo. A cena chamou atenção dos agentes e ele acabou detido mais uma vez.

 

O ministro Fonseca: mudança de decisão após conversa com Roberta Rangel
Não era o propósito daquela diligência, mas a atitude do homem o colocou, de novo, sob checagem. Àquela altura, a polícia local tinha recebido uma série de denúncias anônimas segundo as quais ele seria, na verdade, um foragido da Justiça paranaense acusado de assassinatos. Foi então que os investigadores, averiguando os documentos apresentados pelo suspeito, perceberam que as denúncias faziam sentido.

O número do RG dele correspondia ao documento de uma mulher. No cartório da cidade onde o homem dizia ter nascido, Medianeira, não havia qualquer registro de alguém com aquele nome. Ao responder às perguntas dos policiais, ele contribuiu para reforçar a desconfiança: disse que não se lembrava da própria data de nascimento e ainda contou que recebera aqueles documentos de um amigo, quinze anos antes, quando trabalhava em um garimpo.

Até hoje a verdadeira identidade do homem é um mistério. Mas o processo andou, e ele foi preso por uso de documentos falsos. Embora tenha declarado que recebia apenas 1 mil reais para trabalhar na fazenda do ex-deputado, o personagem misterioso passou a contar com os préstimos de diferentes bancas de advogados em sua defesa. E, ante as negativas do tribunal local, os recursos chegaram a Brasília.

Inicialmente, coube a um advogado de Mato Grosso fazer o pedido. O habeas corpus foi distribuído para o gabinete de Felix Fischer. Como ele estava de licença médica, foi feita a redistribuição e os autos foram para o gabinete de outro ministro, Reynaldo Soares da Fonseca.

Em setembro, Soares da Fonseca negou o pedido para que o homem fosse solto. Na ocasião, entendeu que não havia “ilegalidade evidente” na prisão e observou: “existem fundadas dúvidas acerca da identidade civil do acusado, tendo em vista a apresentação de documento de identidade falsificado às autoridades, com registro em nome de outra pessoa, o que igualmente justifica, a princípio, a imprescindibilidade da prisão para assegurar a aplicação da lei penal”.

O ministro também escreveu no despacho que o caso cumpria os requisitos para a manutenção da prisão preventiva.

Após a primeira negativa de Fonseca, o advogado mato-grossense transferiu a defesa para uma banca de Brasília. O caso passou a ser tocado por Luis Gustavo Severo, advogado que na eleição de 2014 atuou em favor da ex-presidente Dilma Rousseff no Tribunal Superior Eleitoral. Mas ainda não foi dessa vez, porém, que o homem preso conseguiu a liberdade.

A carteira de identidade apresentada pelo personagem misterioso
Severo apresentou um pedido de reconsideração ao ministro Soares da Fonseca, mas ele manteve a prisão. “Em que pese o esforço da zelosa defesa, não há qualquer fato novo a justificar o deferimento da medida de urgência”, escreveu o magistrado.Era 25 de setembro de 2019. O homem seguiu preso, até que quase um mês depois, às 9h52 da manhã de 23 de outubro, uma das integrantes do time de Severo protocolou no STJ um documento informando que a partir dali a advogada Roberta Maria Rangel também estava entrando no processo como defensora do réu.

Nenhum novo pedido de soltura foi apresentado, mas o curso da história mudou a partir de então. Exatamente às 11h56 do dia seguinte, 24 de outubro, o ministro Fonseca assinou sua terceira decisão no caso, desta vez de ofício – no jargão jurídico, é quando o magistrado decide por conta própria –, determinando a soltura do réu misterioso.

Folheando os autos até o início desta semana, não era possível observar qualquer registro formal do que Roberta Rangel fez efetivamente. O nome dela aparecia apenas no documento que oficializou sua entrada no processo. Por curiosidade, Crusoé perguntou ao gabinete do ministro Soares da Fonseca se ele havia se encontrado com Roberta Rangel.

A resposta foi surpreendente. Sim, os dois se reuniram justamente no dia em que ela passou a atuar na ação. E foi na manhã seguinte ao encontro que o ministro voltou atrás de suas duas decisões anteriores e determinou a libertação do preso. Ou seja: tudo mudou depois que Roberta entrou no caso. Bastou uma conversa para que o magistrado voltasse atrás.

Os argumentos de Soares da Fonseca ao mudar de ideia chamam atenção. Se antes ele registrou que não havia encontrado “ilegalidade evidente” na prisão, no novo despacho, assinado horas depois da conversa com Roberta, ele escreveu que, “em homenagem ao princípio da ampla defesa”, era preciso verificar a “existência de eventual constrangimento ilegal passível de ser sanado pela concessão da ordem, de ofício”. Soares da Fonseca ainda considerou que a prisão preventiva “foi decretada sem a indicação de fundamentação suficiente”.

Há outras discrepâncias. Antes da conversa com Roberta, ele entendia haver “fundadas dúvidas” sobre a identidade do acusado. Na decisão que expediu depois, anotou que, embora o homem “tenha sido preso com documento falso, segundo as informações registradas no auto de prisão, ele foi identificado pela autoridade policial por meio de outros documentos”. Afirmou também que a entrega de documento falso não é um crime de “gravidade excepcional”.

A ordem de soltura foi expedida sem que o Ministério Público fosse ouvido. Por essa razão, a Procuradoria-Geral da República chegou a se manifestar nos autos afirmando que a ordem assinada pelo ministro desrespeitou um artigo do regimento interno do STJ que prevê a manifestação do MP em todas as fases dos processos criminais. Não deu em nada, evidentemente.

Por meio de nota enviada por sua assessoria, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca defendeu sua terceira decisão. Ele atribui a diferença de entendimento ao fato de os despachos terem ocorrido em momentos processuais diferentes. “Havendo precedentes da corte, é plenamente viável. Foi o que ocorreu no caso”, afirmou. Sobre o contato com Roberta Rangel e o fato de ela não ter ajuizado nenhum pedido formal, o ministro respondeu que advogada foi até ele para fazer um relato do caso e argumentar em favor do réu.

Já o escritório da mulher de Dias Toffoli, também em nota, disse que a atuação da advogada se deu dentro das normas. “O escritório atuou, como sempre atua, formalmente. A corte negou o HC (habeas corpus) e concedeu de ofício decisão para revogar a prisão preventiva, dentre outras razões, pelo fato de o paciente ter mais de 70 anos”, diz o texto. Roberta Rangel afirma que atuou no caso pro bono, ou seja, sem cobrar nada pelo serviço.

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