E as cubanas?

31.01.20

Quem participa do debate público nas redes sociais sabe que parte do tempo é gasto lidando com gente que, muitas vezes escondida pelo anonimato de perfis falsos, xinga, grita e dá chilique achando que com isso vai intimidar. No meu caso, é muito raro passar um dia sem ler “e as cubanas?”, como se lembrar daquela semifinal em 1996 que abriu caminho para a histórica medalha de bronze olímpica em Atlanta fosse motivo de constrangimento e não de orgulho para qualquer atleta daquela geração.

Claro que competi para vencer e adoraria ter conquistado o ouro naquele ano, como entre outras tantas realizações que superaram os sonhos mais inimagináveis quando saí de Lavras, em Minas, para ganhar o mundo pelo esporte. Tenho uma vida hoje repleta dessas realizações, planos e expectativas de trabalho entre Brasil e EUA, e tenho muito a agradecer. Uma das sortes que tive, com certeza, foi não ter nascido refém da ditadura cubana.

Todos esses pensamentos e lembranças vieram à tona nesta semana quando conheci aqui nos EUA, na famosa e emocionante Marcha pela Vida (March for Life) em Washington, um casal de médicos cubanos que conseguiu asilo na capital americana. Com meu perfeito portunhol, conversamos sobre Brasil, Cuba, vôlei, governos, Fidel, Trump e o “Mais Médicos”. Contei que nosso presidente condicionou a continuação do programa a um teste de validação que os agentes de saúde cubanos teriam que passar, o mesmo que brasileiros formados no exterior precisam para exercer a profissão, e que pudessem trazer suas famílias e ficar com seus salários, mas que Cuba não aceitou. Eles, obviamente, não ficaram surpresos. Contei da narrativa que parte da imprensa e artistas abobalhados empurram dia sim e outro também de que o Brasil está caminhando para virar uma “ditadura”, mesmo com o atual governo não querendo ser sócio e patrocinador de uma ditadura de verdade.

Ouvi então do casal cubano exilado em Washington o que todos os que estão no debate político com o mínimo de honestidade intelectual sabem sobre o que realmente acontece em Cuba, e não o que os desmiolados socialistas do Leblon com camisas do Che Guevara pregam: de que o socialismo devora física e mentalmente os cidadãos em sua sanha totalitária. Mas eu não precisaria ouvir a história de mais um casal que fugiu da ilha dos Castros para validar o que sabemos, posso dar meu testemunho pessoal de quem conviveu com as atletas cubanas. Sei o que ouvi delas sobre Fidel Castro se apropriar de suas premiações, da falta dos itens mais básicos para consumo, de como várias vezes compramos pasta de dente, sabonete e remédios para elas, produtos que depois eram levados para Cuba escondidos para não serem confiscados. Por mais competitivo que fosse o clima, não tive como não me emocionar quando ouvi de uma bicampeã olímpica que ela trocaria tudo, todos os seus títulos e medalhas, pela oportunidade de poder viver fora de Cuba com sua família, longe daquela ditadura horrorosa, daquela miséria absoluta num país que já foi um dos mais ricos do continente.

Sei que é óbvio, mas não custa lembrar: os elogios das atletas cubanas aos ditadores e ao regime, feitos para a imprensa durante as competições, não eram espontâneos, evidentemente. Todas viviam sob a mais alta pressão e sabiam das consequências para elas e seus familiares se ousassem fazer qualquer crítica pública. Eram declarações tão verdadeiras quanto o sorriso da torcida norte-coreana nas coreografias robóticas exibidas nos Jogos Olímpicos de Inverno em Pyeongchang em 2018, na Coreia do Norte. Tenho calafrios só de pensar na vida daquelas pessoas “tão sorridentes”.

Não há dúvida de que há regiões no Brasil desassistidas em tudo – basta ver a atual calamidade com o abastecimento de água numa grande cidade como o Rio de Janeiro – e a presença de agentes de saúde poderia, caso não prescrevessem tratamentos equivocados, ser melhor que nada, mas um erro não justifica o outro. A incompetência do país de prover condições básicas de saneamento e atendimento médico para a população mais necessitada não pode servir de pretexto para o envio de bilhões de reais para uma ditadura sanguinária e genocida, usando seres humanos como mulas. É preciso que tenhamos uma grande discussão nacional sobre como levar atendimento médico e saneamento básico de qualidade a todos.

A histeria atual que cerca tudo em relação ao nome de Jair Bolsonaro, assim como o de Donald Trump (não, não estou comparando os dois, mas a histeria é a mesma), e a infantilidade de muitos não conseguirem discutir erros pontuais e que precisam de correções mostram apenas a mesquinhez de quem critica tudo e todos pelo único objetivo de vencer o debate, de qualquer jeito, mesmo que seja no grito. O governo enfrenta grandes e complexas questões que envolvem a saúde pública e que foram herdadas dos anos de total desgoverno petista. Até quando as picuinhas falarão mais alto e deixaremos de abordar com o devido respeito e seriedade o que é urgente e real, sem o sequestro das agendas políticas inconfessáveis e sem o fascismo imaginário? Até quando ouviremos as mais absurdas falácias de uma oposição perdida, que ainda prega em 2020 a demonização do capitalismo e do mercado livre, em função de uma ideologia que não deu certo em absolutamente lugar nenhum? (Não, os países escandinavos não são socialistas. Google).

Regla Bell, Mireya Luis e Magaly Carbajal, entre outras, foram ícones do vôlei da minha geração, ganharam tudo, mas nunca tiveram nada. Duvido que qualquer um criado numa democracia tenha inveja das dificuldades que  enfrentaram na vida. Elas são exemplos de superação, talento e força, representaram Cuba brilhantemente e todas as nossas eventuais desavenças daquela época foram mais que superadas. Tive o prazer de encontrar Mireya nas Olimpíadas de Atenas, em 2004, e no Rio, em 2016. Almoçamos e relembramos a eterna rivalidade que fez parte de nossas vidas e de tantos fãs do vôlei brasileiro e mundial. Entre uma risada e outra (e algumas lágrimas de ambas) ouvi, mais uma vez, o testemunho de que muito pouco havia mudado para os atletas na ilha da família Castro, e que muitos que foram jogar na Europa pediram asilo político e simplesmente não voltaram.

O encontro com o casal cubano na manifestação em Washington me fez lembrar não apenas das dezenas de vídeos na internet de cubanos relatando o que o socialismo fez com a população do país e como programas, entre os quais o Mais Médicos, eram injustos para eles — mas também da abstenção da honestidade nesse e em outros debates sérios para o Brasil, apenas porque o candidato de alguns não levou a eleição. Eleição que desbancou o partido mais corrupto que o país já viu e desnudou não apenas a hipocrisia de muitos que se diziam a favor da liberdade (mas que agora mostram seus verdadeiros esqueletos no armário) e que expôs a oposição ampla e agora óbvia: a que vem do PT, das viúvas do PSDB e MDB, mas também das castas e dos privilegiados que não querem deixar de mamar no estado brasileiro, seja na área da saúde, da educação, do saneamento básico ou da segurança.

Dra. Mercedez, a médica cubana que conheci em Washington, e seu marido, vítimas da ditadura e do socialismo em toda a sua vil essência, agora estão felizes na capital do país que oferece a maior liberdade econômica do mundo e, obviamente, as melhores oportunidades sociais e financeiras para seus habitantes. Já quem via as atletas cubanas pela TV não tinha como conhecer as histórias de cada uma, do que tiveram que passar e como elas e suas famílias sofreram e sofrem. Portanto, quando me perguntam, em desnecessário, agressivo e mesquinho tom de deboche, “e as cubanas?”, eu sinceramente, de coração, só espero que elas estejam bem.

Ana Paula Henkel é analista de política e esportes. Jogadora de vôlei profissional, disputou quatro Olimpíadas pelo Brasil. Estuda Ciência Política na Universidade da Califórnia.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO