Agência Brasil

Os poços dos fundos

Uma delação premiada inédita expõe as entranhas do esquema montado pelo PT e pelo MDB para roubar dinheiro dos fundos de pensão. Um dos projetos que receberam injeção milionária de recursos tinha como sócio oculto, segundo o delator, o filho de um ex-senador
17.01.20

No mercado, a letra “J” representa a curva esperada de um investimento de longo prazo feito em um negócio novo. O desempenho começa negativo e cresce exponencialmente conforme o projeto evolui. Na realpolitik brasileira, contudo, a letra “J” simboliza o cabo de um enorme guarda-chuva aberto em fundos bilionários para abrigar esquemas de corrupção que se apropriam dos investimentos. Institutos de previdência que deveriam aplicar suas fartas reservas em ativos seguros para garantir a aposentadoria de servidores públicos tornam-se fontes inesgotáveis de recursos ilícitos nas mãos de partidos políticos. Crusoé teve acesso com exclusividade à delação premiada de um experiente operador do setor que esmiúça o papel dos agentes que promoveram e se beneficiaram dos desvios de dinheiro dos maiores fundos de pensão do país por meio de aportes em empreendimentos fadados ao fracasso. Um sofisticado estratagema que envolveu doleiros, lobistas, empresários, dirigentes partidários e até um renomado banco americano — todos em torno de negócios fracassados que só ampliaram o rombo previdenciário e abasteceram o caixa de políticos e as contas de empresas suspeitas.

O delator chama-se Ricardo Siqueira Rodrigues, um empresário conhecido como “Ricardo Grande”, que intermediava investimentos de fundos de pensão em empresas privadas. Ele foi preso pela Lava Jato do Rio de Janeiro em abril de 2018, acusado de desviar dinheiro de uma aplicação. Ricardo Grande teve sua colaboração homologada em fevereiro do ano passado. Nos anexos obtidos por Crusoé, que ficaram públicos por alguns dias em novembro por decisão do juiz federal Vallisney Oliveira, do Distrito Federal, Rodrigues relata a trama engendrada por operadores como ele junto a gestores dos fundos de pensão, para beneficiar dirigentes e políticos do PT e do MDB. Um dos casos delatados envolve um fundo de investimento em participações chamado FIP Canabrava, criado pelo empresário Ludovico Giannattasio para financiar a construção de usinas de álcool e açúcar em Campos dos Goytacazes, no norte do Rio. Relatórios da CPI dos Fundos de Pensão e da Polícia Federal já apontavam que a empreitada resultou em prejuízos milionários aos fundos Petros, Postalis e Serpros, que puseram no negócio quase metade do total de 694 milhões de reais captados. Das quatro usinas previstas, só uma saiu do papel e, ainda assim, ficou no vermelho.

Edison Lobão: filho dele era “sócio oculto” de projeto, segundo o delator
O delator revela que, em 2012, durante as negociações para viabilizar o aporte do Serpros, o fundo de pensão dos funcionários do Serviço Federal de Processamento de Dados, onde ele tinha influência, ouviu do próprio empresário Ludovico que o projeto Canabrava tinha como sócio oculto Márcio Lobão, filho do ex-ministro e ex-senador Edison Lobão, do MDB do Maranhão. Lobão foi o político que deu as cartas no Postalis até abril daquele ano, quando o fundo de pensão dos funcionários dos Correios passou para os domínios do PT. O ex-presidente do instituto Alexej Predtechensky, conhecido como Russo, havia sido indicado por Lobão, que também empregou a filha do aliado no Ministério de Minas e Energia. A relação estreita do cacique emedebista com Ludovico incluiria ainda viagens anuais a Paris com as despesas pagas pelo empresário. Àquela altura, graças à influência de Lobão, o Postalis já havia injetado 190 milhões de reais no negócio das usinas em Campos dos Goytacazes, mas a meta era muito mais ambiciosa: captar 800 milhões. Para isso, era fundamental que houvesse novas adesões de “investidores”. Ou seja, era preciso atrair mais fundos de pensão dispostos a descarregar dinheiro em um investimento de alto risco, sem retorno garantido. Naquele período, 25 usinas de etanol haviam fechado no país.

Foi aí que surgiu um outro personagem relevante no enredo: o consultor Henrique Santos Barbosa, apontado por Rodrigues como operador do PT nos fundos de pensão controlados pelo partido, como o Petros, dos funcionários da Petrobras. Henrique, irmão do atual presidente da Comissão de Valores Mobiliários, Marcelo Barbosa, procurou o delator para que ele o ajudasse a destravar o aporte de dinheiro do Serpros no negócio. A demanda foi encaminhada para Luiz Egami, sindicalista ligado a José Dirceu e amigo de Delúbio Soares que tinha trânsito junto à diretoria do fundo de pensão. A partir daquele momento, a trama foi ficando mais clara, numa nítida moeda de troca. Os fundos controlados por petistas precisavam bancar o projeto ligado ao MDB como forma de compensar os aliados pela perda de ingerência sobre o Postalis. “A justificativa, confirmada por Egami, era de que a operação era uma composição para que o MDB, que havia saído do Postalis, recebesse um quinhão”, afirma Rodrigues em sua delação. O lobby surtiu efeito. No dia 12 de dezembro de 2013, o comitê de investimentos do Serpros aprovou o aporte de 70 milhões de reais no FIP Canabrava. Segundo Rodrigues, o sindicalista Egami e Carlos Alberto Pereira, ex-conselheiro do Serpros conhecido como Gandola, já haviam recebido propina de 1,5 milhão de reais para apoiarem outro fundo privado, entre 2013 e 2014.

Henrique Barbosa foi preso na mesma operação da Lava Jato que deteve Rodrigues, em 2018, e também fechou acordo de colaboração com a força-tarefa do Rio. Em sua delação, ele admitiu ter recebido 1 milhão de reais no apartamento de um doleiro na Barra da Tijuca, em julho de 2014, e entregue o dinheiro duas semanas depois nas mãos da secretária pessoal do então tesoureiro do PT, João Vaccari, em frente a um hotel em Ipanema. O dinheiro seria propina paga ao PT pelo empresário Arthur Pinheiro Machado para que os fundos de pensão controlados pelo partido investissem em seus negócios. Henrique disse ter intermediado a entrega a pedido de Adeilson Teles, chefe de gabinete do ex-presidente dos Correios Wagner Pinheiro, também ligado a Vaccari. O operador disse ter se aproximado da dupla quando eles comandavam o Petros, o fundo de pensão dos funcionários da Petrobras, ainda no governo Lula. O contato entre eles foi feito pelo petista Marcelo Sereno, ex-assessor de José Dirceu e ex-dirigente do PT, de quem ficou amigo realizando operações no Petros, pelas quais recebeu comissões.

Agência BrasilAgência BrasilO onipresente Delúbio: amigos do petista intermediavam os negócios
A colaboração de Rodrigues imputa a Henrique um papel ainda mais amplo como operador ligado ao PT nos esquemas envolvendo fundos de pensão. “Cabia a (Henrique) Barbosa efetuar, nas operações que participava e nas demais operações dos fundos sob o cuidado de Vaccari, as liquidações financeiras relativas ao Partido dos Trabalhadores”, disse Rodrigues. Em outro anexo, ele relata o envolvimento de Henrique na captação de 90 milhões de reais do Petros em ativos podres da empresa Decta Engenharia, negócio que também contou com o auxílio de Wagner Pinheiro e Vaccari, mediante propina de 6%. O modus operandi da corrupção é semelhante ao revelado por outro delator, o empresário Mario Seabra Suarez, no caso envolvendo aporte do Petros na construção da nova sede da Petrobras em Salvador, conhecida como Torre Pituba. Conforme revelou O Antagonista nesta semana, Suarez delatou propina de 9,6 milhões de reais ao PT para viabilizar o negócio, incluindo pagamentos mensais a dirigentes do fundo de pensão e da estatal e 2 milhões de reais a Vaccari na sede do diretório nacional do partido, em São Paulo. Ao todo, a Operação Sem Fundos mira supostos repasses ilícitos de 68 milhões de reais ao partido de Lula vinculados à obra do prédio da Petrobras, que foi erguido pelas construtoras Odebrecht e OAS com superfaturamento estimado em 1 bilhão de reais.

No caso do Postalis, o prejuízo causado pelo FIP Canabrava, segundo a Polícia Federal, teve participação direta do banco americano BNY Mellon, administrador da carteira do fundo de pensão. Apontado como responsável pelas operações fraudulentas, o ex-presidente do banco José Carlos Lopes Xavier de Oliveira chegou a ser preso e a instituição sofreu um bloqueio judicial de 240 milhões de reais por causa das irregularidades. Na CVM, o banco recebeu multas que somam 16,8 milhões de reais em dois processos do Postalis e foi absolvido da última acusação, de precificação imprecisa de ativos, em abril do ano passado. No mesmo processo, Alexej Predtechensky, o ex-presidente do fundo, e dois operadores foram autuados em 39 milhões de reais. As suspeitas envolvendo o FIP Canabrava, que teria Márcio Lobão como sócio oculto e rendido propina ao PT, ainda estão sob apuração. Em 2016, o Postalis passou a administração dos seus fundos do Mellon para o Banco Brasil Plural, instituição na qual Henrique Barbosa também executou operações de mercado.

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