A cara da vergonha
Não é de hoje que o dinheiro dos contribuintes brasileiros tem sido usado para bancar a doce vida de dirigentes partidários e seus familiares. Os políticos esbanjam com viagens ao exterior, carros de luxo, mansões e até helicóptero. Mesmo diante da pressão popular para diminuir a farra, em dezembro o Congresso Nacional aprovou o Orçamento para 2020 com a previsão de 2 bilhões de reais para o chamado fundão eleitoral – criado em 2017 com o nome de Fundo Especial de Financiamento de Campanha, a fim de bancar as despesas eleitorais das siglas após a proibição, dois anos antes, de doações de empresas. Neste ano, a verba deverá financiar as campanhas de candidatos a prefeito e vereador. O texto seguiu para análise do presidente Jair Bolsonaro. Ao mesmo tempo em que diz ser contrário, ele sinaliza que vai respaldar a decisão dos congressistas, para a alegria daqueles que se esbaldam nas conhecidas gostosuras da velha política. A turma é a mesma que desfruta das benesses de outro fundo, o partidário, que, em tese, tem como função primordial garantir o dia a dia dos partidos, com os pagamentos de contas como as de aluguel, água e energia. O dinheiro, que tem de ser repassado mensalmente, não corre risco de ser bloqueado por ninguém. Sai, claro, dos cofres da União.
São muitas as investigações envolvendo siglas diferentes que comprovam o mau uso dos dois fundos. Algumas têm como protagonistas o Partido Republicano da Ordem Social, o Pros, e seu fundador e agora ex-presidente, Eurípedes Gomes de Macedo Júnior. A mais recente está narrada em um relatório ao qual Crusoé teve acesso e que resume as descobertas de um inquérito com 1.100 páginas concluído em dezembro e recém-enviado à Justiça Federal. O relatório ilustra como os milhões de reais do fundo eleitoral servem para enriquecer e dar boa vida a líderes políticos. O documento aponta o uso de “laranjas”, empresas fantasmas e notas frias na lavagem do dinheiro desviado. Delatores e testemunhas são ex-dirigentes e ex-correligionários do próprio Pros. O líder do esquema, que desviou 5 milhões de reais, segundo a investigação, é Eurípedes Júnior. Ele presidia a sigla até o último sábado, 11, mas a executiva nacional fez uma reunião às pressas para tirá-lo do cargo ao saber da conclusão da apuração.
O inquérito foi conduzido pela Polícia Civil de Goiás. Por envolver recursos da União, acabou remetido para a Justiça Federal. De acordo com a investigação, em 2015, por meio de contadores e funcionários do Pros, foram criadas duas empresas fantasmas para lavar dinheiro público recebido pelo partido. Elas funcionavam — só no papel — em Planaltina de Goiás, a 60 quilômetros de Brasília, uma das cidades que formam o cinturão de pobreza ao redor da capital federal, local de residência e base política de Eurípedes. Dois anos depois de serem abertas, cada uma das firmas, mesmo sem sede ou funcionário, recebeu 2 milhões de reais do fundo partidário por meio de serviços nunca prestados. Elas também serviram para fornecer notas fiscais frias à Fundação da Ordem Social, entidade mantida com recursos públicos recebidos pelo partido e dirigida por pessoas da confiança do então presidente da legenda. Ainda em 2017, as empresas mudaram de natureza, trocaram de sócios e de cidade. Tudo para manter o esquema oculto. Ambas foram para a também goiana Cidade Ocidental, distante 80 quilômetros de Planaltina. Na mudança, as empresas passaram a usar o endereço de duas casas vizinhas, no centro do município, onde residem famílias que nem sequer conheciam as empresas, o Pros ou mesmo Eurípedes Júnior.
Quando a empresa mudou de cidade, outro laranja foi chamado para integrar a sociedade. Ele, um desempregado, foi convidado para a empreitada pelo filho de um contador que trabalha para o partido. Pelo empréstimo do nome, topou receber 1.500 reais. Não sabia, porém, que estava entrando em um esquema político. Em tese, o convite era para ser sócio de um salão de beleza. Outro que seguiu o mesmo caminho foi o também desempregado Reginaldo Moreira da Silva, de 38 anos, que Crusoé localizou nesta semana na porta de uma mercearia, ao lado de sua casa, na periferia de Planaltina. “Esse empresário aqui não tá com nada. Os únicos sócios que tenho são os meus amigos do sindicato dos bêbados”, disse ele, aos risos. O homem de boné furado, bermuda jeans surrada e chinelo de dedo diz que só soube do esquema quando foi chamado à polícia para prestar depoimento. Pela empresa da qual ele era sócio haviam passado 2 milhões de reais — dinheiro que Reginaldo nunca viu, nem de longe.
No lugar onde deveria funcionar a empresa há uma casa de dois quartos e um barracão, ambos com paredes descascadas e pouca mobília, que ocupam a metade de um lote. Oito pessoas de uma mesma família moram nos dois imóveis. A matriarca, Maria de Luzilena da Silva, diz que nunca nem ouviu falar da firma. “Preciso trabalhar para a ajudar os meus filhos a criar os meus netos. Você acha que se eu tivesse 2 milhões ia estar nesse sacrifício!?”, respondeu. A segunda empresa, por cujas contas passaram outros 2 milhões do esquema, fica perto dali. A dona do endereço, que não quis se identificar ao ser abordada por Crusoé, estranhou as perguntas. “Moço, sempre morei aqui. Nunca tivemos loja ou empresa alguma. Sempre paguei as contas direitinho, nunca me meti com política. Não é possível que alguém tenha feito uma maldade dessa com a gente”, disse a senhora de voz baixa e semblante cansado antes de pedir licença e sair caminhando em direção à porta enfeitada por um crucifixo. “Preciso rezar. Meu Deus, não é possível que isso esteja acontecendo.”
As informações sobre a origem de imóveis de Eurípedes foram confirmadas à polícia pela ex-mulher dele, Sandra Caparrosa, que foi tesoureira da Fundação da Ordem Social até 2018, quando foi afastada — segundo ela, depois de apontar pagamentos a funcionários fantasmas. À Justiça de Goiás, em um processo ainda em curso, Sandra afirmou que todos os bens adquiridos pelo ex têm origem ilícita e foram comprados com dinheiro que deveria ter sido usado em campanhas eleitorais. Em um desses imóveis ficam a sede do diretório municipal do Pros e a gráfica que serve ao partido — outra investigação, tocada pela Polícia Federal, apura o uso dessa mesma gráfica no desvio de mais 5,7 milhões de reais. As construções formam uma espécie de bunker, cercado por um muro com 4 metros de altura, cerca elétrica e câmeras de vigilância. Lá dentro há uma casa, de três pavimentos, com piscina e churrasqueira, usada por Eurípedes e outros dirigentes do Pros.
As máquinas da gráfica ficam em um galpão totalmente vedado, sem uma brecha sequer, onde também fica guardado o helicóptero de 2,4 milhões de reais que Eurípedes comprou em 2014, sempre com dinheiro do fundo partidário — da história da aeronave o leitor certamente já havia ouvido falar. Naquele mesmo ano, o “dono” do Pros, partido que já teve em suas fileiras o eterno presidenciável Ciro Gomes, adquiriu um pequeno avião por 400 mil reais. O bimotor, comprado por um empresário que mantinha contratos com a prefeitura de Marabá, no Pará, foi transferido depois para o Pros. O prefeito da cidade era do partido. A transação deu origem a uma apuração policial, no âmbito da qual Eurípedes chegou a ser alvo de uma ordem de prisão. A própria casa do ex-chefão do Pros teria sido comprada com dinheiro do fundo partidário. Segundo a ex-mulher, Eurípedes usou 600 mil reais do partido na aquisição da residência, em 2017. Depois, gastou mais de 1 milhão para reformar e ampliar o imóvel, que destoa de todas os demais de Planaltina de Goiás. Em 500 metros quadrados de área construída, a casa tem oito quartos, quatro suítes, academia de ginástica, garagem para quatro carros e jardins com palmeiras imperiais.
O talento de Eurípedes para os negócios é inversamente proporcional ao seu desempenho eleitoral. Embora tenha conseguido fundar um partido, até hoje ele só conseguiu se eleger vereador em Planaltina. Em 2014, concorreu a uma vaga de deputado federal por Goiás, mas ficou só com a segunda suplência. Oficialmente, Eurípedes declara ser dono de três lojas, ter patrimônio inferior a 500 mil reais e ganhar 4,8 mil reais por mês, renda proveniente dos serviços prestados por sua autoescola. Hoje, além de responder solto às suspeitas que pesam sobre ele, o ex-presidente do Pros trabalha para retomar o comando do partido, ao mesmo tempo em que enfrenta a acusação de ter agredido a filha de 19 anos — como informou o Diário de Crusoé, a jovem foi a polícia há uma semana para denunciar o pai. Tanto no caso da agressão quanto no da lavagem de dinheiro, Eurípedes se defende por meio de seu advogado, Bruno Pena, que ataca o delegado que o investigou. “Não nos furtamos de nenhuma investigação, mas tudo isso só está acontecendo porque o Cristiomário (Medeiros) será candidato a prefeito e é adversário político do Eurípedes”, afirma o defensor. Cristiomário nega o interesse político.
Eurípedes Júnior não é o único dirigente partidário que protagoniza histórias pouco republicanas envolvendo fundos públicos. O deputado federal Luciano Bivar, presidente nacional do PSL, partido que elegeu o presidente Jair Bolsonaro, gastou 250 mil reais provenientes do fundo eleitoral para contratar a empresa de um dos seus filhos na eleição de 2018. Para as campanhas políticas nas eleições 2018, os 35 partidos do país receberam mais de 1,7 bilhão de reais. Na Justiça Eleitoral, quase nunca há punição à altura para os desvios descobertos. E não é de hoje que é assim. Um caso emblemático é a decisão do TSE que, em 2012, inocentou o Partido Progressista a despeito de uma auditoria da Receita Federal ter apontado fraudes grosseiras que resultaram em desvios de 20,1 milhões do fundo partidário. Sem mecanismos eficazes de fiscalização, e sem punição rigorosa às legendas e a seus dirigentes políticos, o financiamento público de partidos e de campanhas vira mais um ralo sem fundo para o dinheiro do contribuinte. “O fundo eleitoral é o único modelo em que pessoa jurídica que lida com dinheiro público não se submete aos mesmos mecanismos que todos precisam se submeter. Está errado. Independentemente do sistema, ele só funciona com uma fiscalização rigorosa”, afirma Silvana Batini, procuradora regional da República no Rio de Janeiro.
Caso o presidente Jair Bolsonaro vete os 2 bilhões de reais para o fundão neste ano, o projeto será analisado novamente pelo Congresso Nacional, que pode manter o veto ou derrubá-lo e manter a lei conforme foi aprovada. Ao explicar por que deve assinar embaixo da decisão dos congressistas, ele disse que, se vetasse, poderia sofrer processo de impeachment por crime de responsabilidade, acusado de atentar contra a lei orçamentária e o livre exercício dos direitos políticos. E, dias atrás, jogou a responsabilidade para os eleitores. “Eu lanço campanha: não vote em parlamentar que usa dinheiro do fundão.” Não parece suficiente. O presidente tem até terça-feira para decidir-se. Caso não decida nada, nem a favor nem contra, o fundão será validado automaticamente.
Atualização – No fim da noite desta sexta-feira, 17, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge de Oliveira, anunciou que o presidente Jair Bolsonaro sancionou sem vetos a lei orçamentária para 2020, o que inclui o fundão eleitoral.
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