Paulo Lisboa/Brazil Photo Press/Folhapress

Os ratos estão reagindo

Carlos Fernando dos Santos Lima, procurador da Lava Jato em Curitiba, diz que a mais nova ofensiva contra a operação é reflexo direto do sucesso das investigações, que passaram a incomodar todos os lados da política
29.06.18

“Sem querer usar isto como ofensa, mas apenas como analogia: o rato é muito menor que o ser humano e vai fugir normalmente. Se você encurralá-lo, contudo, ele vai reagir e possivelmente causar danos. O que nós estamos vendo hoje é um sistema encurralado pelas descobertas da operação Lava Jato e que reage.” Quem faz a analogia entre políticos, ratos e a mais nova onda de ataques à Lava Jato é um dos mais experientes investigadores do país, especialista em casos de corrupção e crimes do colarinho branco. Integrante da força-tarefa de Curitiba, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima vê o atual momento da operação como um dos mais delicados desde que o esquema da Petrobras, um consórcio entre políticos e empreiteiras para pilhar os cofres da estatal, passou a ser implodido pela investigação. 

O cenário sombrio que o procurador traça tem como pano de fundo a conclusão de que o mesmo sistema que fez funcionar o petrolão agora se arma fortemente – e se une – para reagir à Lava Jato. Se antes uma parcela dos políticos defendia a operação enquanto os alvos eram seus adversários, agora que ela se espraiou sobre integrantes de praticamente todos os grandes partidos do país, há um esforço conjunto para torpedeá-la. Os sinais dessa reação são vários, e vêm de diferentes direções. No Congresso, políticos enrolados nas investigações se empenham para abrir uma CPI cujo objetivo, velado, é questionar os métodos da operação.

Na última terça-feira, a Lava Jato sofreu um grande revés da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, um conhecido front de oposição à operação no Judiciário. Em algumas horas, o trio formado por Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, que forma no colegiado a maioria dos sonhos para qualquer investigado, soltou o ex-ministro petista José Dirceu, atropelando a decisão do plenário da corte que autorizou prisões em segunda instância. A turma também libertou João Carlos Genu, acusado de ser operador do PP no mensalão e no petrolão, e invalidou buscas da polícia que colheram provas no apartamento da senadora petista Gleisi Hoffmann. Na mesma leva, os ministros trancaram um processo que não tem a ver diretamente com a Lava Jato, mas que surgiu na esteira do ambiente criado pela operação e pôs no banco dos réus o deputado paulista Fernando Capez, do PSDB, acusado de participar do desvio de  1 milhão de reais da merenda escolar. O trio decidiu trancar a ação penal que o tucano respondia na Justiça de São Paulo.

Carlos Fernando ainda crê na sobrevivência da Lava Jato, mas vê um empecilho no Judiciário. Para o procurador, os crimes de colarinho branco – que essencialmente envolvem ricos e poderosos – ainda são tratados com certa “voluntariedade” pelos juízes. Conhecido por não medir palavras contra os que tentam atacar a operação, ele avisa: enquanto a situação exigir, não poupará palavras duras, nem mesmo ao falar de ministros do Supremo Tribunal Federal. “Não temos seres supremos que são imunes a críticas”, diz. A seguir, a entrevista.

Imaginava-se que o Supremo, que durante um bom tempo endossou a Lava Jato, em algum momento poderia mudar de rumo. Esse dia chegou?
Tivemos alguns momentos tão ou mais críticos que o atual, como na soltura do Paulo Roberto Costa (ex-diretor da Petrobras) pelo ministro Teori Zavascki. O juiz Sergio Moro teve que perguntar ao ministro se ele queria soltar realmente todo mundo. No passado, havia um sentimento natural de que crimes de colarinho branco envolvendo interesses políticos acabavam influenciando no julgamento do Judiciário. Mas, na Lava Jato, sobrevivemos porque conseguimos manter a frente política desunida, no sentido de que um acreditava que somente o outro era objeto da investigação. Descobriram, talvez um pouco tarde, que nós não tínhamos preferência partidária e que iríamos até onde as provas nos levassem. Hoje estamos vendo uma união do “salve-se quem puder”, daqueles que querem salvar o sistema tal qual ele existia antes. Agora nós estamos enfrentando aquilo que poderia ter aparecido no começo e, felizmente, não apareceu, que é uma reação conjunta, de modo a interromper as investigações da Lava Jato e todas as decorrências e esperanças da operação.

É mais difícil reverter essa onda contra a Lava Jato quando toda a classe política está unida?
É mais difícil porque eles contam com a desmobilização popular, com as distrações diversas, caso da Copa. Foi assim quando aconteceu o acidente da Chapecoense e a Câmara mutilou as dez medidas contra a corrupção. Nós somos incapazes de manter o controle de todas as variáveis. Então, na medida do possível, ainda estamos sobrevivendo e estamos numa posição positiva. Mas há realmente um temor do que virá pela frente.

É uma espécie de freio que estão tentando impor?
Estamos vendo um fenômeno interessante, em que três ministros se sobrepõem ao plenário do Supremo. E não só ao plenário, mas a todo o aparelho judiciário. Quando se dá um habeas corpus de ofício sem o conhecimento profundo do caso em questão, apenas com análise probatória superficial, isso significa um poder muito grande para individualidades. Precisamos discutir esse poder que os ministros têm para dar esses habeas corpus cangurus (que saltam instâncias), usados para fazer, por exemplo, o trancamento de uma ação penal como a de Fernando Capez, em que o próprio tribunal competente reconheceu que há indícios mínimos contra o acusado. O Supremo tomou uma decisão absolutória em desrespeito às instâncias inferiores. Precisamos discutir a competência do Supremo, as indicações para o Supremo e também a diminuição do poder de cada ministro. Há poucos recursos para impedir problemas como os da última terça-feira, na Segunda Turma.

Por que agora a classe política conseguiu se rearranjar de maneira tão mais eficiente do que nas tentativas anteriores?
Há o desespero e também a percepção de que é preciso unidade. Sem querer usar isto como ofensa, mas apenas como analogia: o rato é muito menor que o ser humano e vai fugir normalmente. Se você encurralá-lo, contudo, ele vai reagir e, possivelmente, causar danos. O que estamos vendo hoje é um sistema encurralado pelas descobertas da Operação Lava Jato e que reage. Às vezes a percepção é de que a Lava Jato está sendo derrotada, mas a verdade é que ainda estamos vencendo. Os fatos estão aí para o público formar a sua opinião. O que estamos vendo é o espernear da velha ordem.

Há algo a se fazer contra essas decisões do STF?
Eu sei que alguns ministros reclamam de nossas manifestações. A reclamação não é problema, podem reclamar. Mas é preciso preciso refletir sobre o procedimento do tribunal e o quanto isso está causando desesperança em relação ao combate ao crime do colarinho branco. Não existem vacas sagradas nem seres supremos. Não existem opiniões dogmáticas religiosas. O que existem são decisões de um órgão que deveria se ater muito mais às questões constitucionais. Votos e decisões devem ser acatados, mas não estão imunes a críticas de todos os cidadãos, inclusive membros do Ministério Público. Não raro, o que vemos em ação é a velha Justiça que tranca ações, uma atrás da outra, sem que nós cheguemos a saber o que estava sendo investigado. Sempre pergunto em minhas palestras se alguém sabe por que foi encerrada a Operação Boi Barrica ou Satiagraha, e a maioria não sabe. Quando você tem um trancamento, é uma decisão definitiva muito grave, porque impede o julgamento dos fatos.

O que se passa na cabeça de alguém que pensa em delatar ou está em algum esquema de corrupção e vê decisões como essas do Supremo?
A sensação de impunidade gera necessariamente dúvidas nos colaboradores. O pressuposto das colaborações é uma Justiça que funcione. Se a Justiça não funciona, é melhor eu ficar quieto com os meus milhões. Porque posso não ser investigado ou, se for, posso trancar uma ação no Supremo, e, se não trancar, tenho diversas possibilidades para anular a operação. Por que eu iria ao Ministério Público? Essa é uma pergunta que os candidatos a colaborador vão fazer daqui para a frente, e a maioria da Segunda Turma do Supremo está incentivando esse jogo contra a Justiça.

Como o senhor vê a decisão de soltar José Dirceu?
É simbólico que, com uma condenação de 30 anos, tenha sido expedido um habeas corpus de ofício, sem pedido da defesa. Esse habeas corpus foi deferido por uma plausibilidade de que, dos 30 anos, restaria uma pena tão pequena que talvez houvesse o risco efetivo de ele ficar mais tempo na cadeia do que deveria. Precisamos lembrar que há outras ações contra José Dirceu. É muito característico que, na verdade, o argumento tenha sido usado para contornar a decisão do plenário sobre a prisão em segunda instância. Se há recurso, há sempre plausibilidade abstrata de que ele seja provido. Se continuar assim, daqui a pouco, todos vão ser soltos.

Um pobre desconhecido também mereceria uma discussão no STF sobre dosimetria, como teve José Dirceu?
Dosimetria é uma questão que envolve análise probatória e no recurso especial ou extraordinário (duas modalidades de recursos apresentados por advogados aos tribunais superiores) não há análise da prova. Mas não vejo essa mesma voluntariedade em casos clássicos de crimes de classe social inferior, como roubo. Não vejo tanta  preocupação com as dezenas mulheres que transportam droga entre o Paraguai e o Brasil. O Supremo hoje se preocupa com o crime do colarinho branco de uma maneira que deixa de lado até as questões constitucionais.

Há chance de Lula ser solto?
Não creio que haja argumentos jurídicos que sustentem essa posição. Temos grandes juízes no Supremo e temos uma maioria bem formada que sabe e tem esses limites de razoabilidade na interpretação das situações. Eu creio que não há perigo de ser deferida no plenário (composto pelos 11 ministros da corte) qualquer medida (que resulte na soltura do ex-presidente).

Já na Segunda Turma…
É, nossa esperança agora é que haja uma mudança na Segunda Turma causada pela entrada da ministra Cármen Lúcia (em setembro, ela passará a integrar o colegiado no lugar de Dias Toffoli, que assumirá a presidência do STF). Que seja uma maioria que compreenda melhor as esperanças da população e a necessidade de combater o colarinho branco de uma forma tão rígida quanto o tráfico de entorpecentes ou o roubo.

O que o senhor acha da decisão que anulou as buscas no apartamento da senadora Gleisi?
O Supremo já criou o foro privilegiado de telefone de segurança de ex-presidente e agora criou o foro de apartamento. Criam-se paraísos. Significa que é melhor deixar as coisas no apartamento conjunto porque realmente você tem uma restrição quanto à possibilidade de buscas (no caso, o alvo era o marido de Gleisi, o ex-ministro Paulo Bernardo, mas os ministros entenderam que a busca foi ilegal porque a senadora, detentora de foro especial, também morava lá). Há uma série de consequências não pretendidas que acabam desestabilizando o sistema de justiça e impedindo investigações sérias. Apesar de todo o discurso de restrição do foro, ainda vejo um interesse de ampliá-lo. Agora, temos foro privilegiado até sobre objetos. Há investigação sobre fatos em relação aos quais o Supremo não tem competência nenhuma, como aquela promovida pelo gabinete do ministro Gilmar Mendes sobre as algemas colocadas no ex-governador Sérgio Cabral. Esse problema não é do Supremo, absolutamente.

Nem algema nem ex-governador têm foro privilegiado…
Exatamente. E nem os policiais que conduziam o ex-governador.

Como essas decisões afetam o trabalho da força-tarefa da Lava Jato?
As investigações da Petrobras hoje não têm obviamente aquela pujança inicial porque é natural que seja assim. Mas a Lava Jato é um fenômeno. Vamos continuar trabalhando e creio que o Ministério Público está imbuído dessa vontade de continuar no mesmo caminho, independentemente de todas as circunstâncias. Já sabíamos que seria assim, desde o começo. A Lava Jato tem uma veia comunicativa e nós vamos continuar a levar os fatos à discussão pública, para que as versões não os substituam.

A eleição no segundo semestre muda alguma coisa?
Não. No trabalho do dia a dia, não. De qualquer maneira, estamos envolvidos, como boa parte da sociedade civil, em mudanças. Analisamos novas medidas contra a corrupção propostas pela Transparência Internacional. Acreditamos, no papel que nos cabe como Ministério Público de defesa da ordem democrática, que temos que dizer à população para apoiar candidatos que tenham compromisso com a democracia, com um passado limpo e que apoiem essas medidas. Se há uma chance de o país mudar, não está na Lava Jato. Está no processo democrático e no aperfeiçoamento dele. A Lava Jato não quer menos democracia, quer uma democracia aperfeiçoada.

Como o senhor vê a atuação do Conselho Nacional do Ministério Público contra as suas declarações?
Nós, do Ministério Público, temos dois limites a mais do que o cidadão. Devemos nos manifestar sempre com decoro, que é um conceito aberto, e não devemos exercer atividade político-partidária. Fora disso, não há substância qualquer capaz de restringir a palavra de um procurador. Palavras duras não são quebra de decoro. Muitas vezes é preciso ter palavras duras porque a situação exige. Não podemos ter seres supremos imunes a críticas. Podemos e devemos criticar qualquer autoridade. E inclusive nós, como Ministério Público, devemos ser criticados e ouvir críticas. Essas tentativas de usar o CNMP para diminuir a voz do Ministério Público não podem prevalecer.

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