Renan, o liso
No auge da Lava Jato, em 2016, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, conversava com dois interlocutores em um restaurante na Asa Sul, em Brasília. Um dos assuntos do bate-papo regado a vinho eram as dificuldades enfrentadas pelos procuradores durante as investigações relacionadas a um conhecido político. Intrigava o então nome forte da operação na capital federal a intrínseca capacidade do alvo de escapar da Justiça. “Nós chegamos aqui, onde aparenta ter algo dele”, gesticulava Janot com as mãos. “E ele vaza pra lá. Vamos até lá e ele já não está”, explicava o procurador em seu esforço para ilustrar os percalços enfrentados pela PGR na hora de encontrar provas concretas que pudessem fundamentar, por exemplo, um pedido de prisão ou busca contra o parlamentar. Janot referia-se ao notório Renan Calheiros, senador pelo MDB de Alagoas.
Pela estupenda habilidade de “vazar” entre as garras da Justiça, para usar o verbo empregado pelo ex-procurador-geral, Renan parece encarnar a versão nacional de Frank Abagnale Jr, fonte de inspiração do filme “Prenda-me se for capaz”. Alvo de 25 investigações nos últimos anos, o senador segue invicto: não foi condenado em nenhuma. Dos 19 inquéritos instaurados contra ele, onze já foram mandados para o arquivo ou tiveram as denúncias rejeitadas por falta de provas. Somente em dezembro do ano passado, ou seja, mais de cinco anos depois do início da maior investigação contra a corrupção já realizada no Brasil, o alagoano virou réu pela primeira vez na Lava Jato por lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Mesmo assim, os valores envolvidos destoam dos números superlativos que notabilizaram a operação: segundo o MP, teria Renan recebido 150 mil reais em setembro de 2010, por meio de uma doação a um aliado do diretório estadual do MDB de Tocantins.
A fama de “ás da corrupção bem-sucedido”, no entanto, pode estar com os dias contados. Segundo procuradores ouvidos por Crusoé, das oito investigações em andamento, duas têm potencial para tirar Renan da zona de conforto em que se encontra. Uma delas é o inquérito aberto para apurar o pagamento de propina da Braskem, empresa do Grupo Odebrecht, a parlamentares que ajudaram na aprovação de um projeto de resolução pelo Senado que estipulava novas regras para a concessão de benefícios fiscais estaduais em operações de importação. Renan nem era investigado nesse caso, mas seu nome foi incluído após a Lava Jato encontrar nos sistemas do departamento de propina da empreiteira registros sobre a entrega de 1 milhão de reais para o codinome “Justiça” – segundo os delatores, era o apelido do senador.
Pelos registros em poder dos procuradores, aos quais Crusoé teve acesso, o pagamento teria sido realizado em 31 de maio de 2012 em um endereço no bairro da Mooca, em São Paulo. Os valores teriam como intermediários o motorista Fabio Brito Matos, o doleiro Adolpho Mello e o lobista Milton Lyra. Matos é motorista de Lyra, apontado como principal operador de Renan e de outros senadores do MDB. Adolpho Mello, por sua vez, é considerado pelos delatores da Odebrecht um preposto de Marco Matalon, conhecido dos investigadores como um dos maiores doleiros de São Paulo. Matalon já foi alvo da Operação Satiagraha e preso em maio de 2018 na Operação ‘Câmbio, desligo’, da Lava Jato do Rio, por atuar em sintonia fina com o “doleiro dos doleiros”, Dario Messer. Subordinado a ele, Adolpho Mello agia por meio de um banco pouco conhecido, o Trendbank, e já foi denunciado por desvio nos fundos de pensão, outro setor de atuação do MDB de Renan.
A outra investigação com possibilidade de se desdobrar em mais uma denúncia contra o senador de Alagoas tem por base a delação de Sérgio Machado e de executivos da JBS. O inquérito apura o repasse de 40 milhões de reais da empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista a Renan e aliados em troca do apoio à reeleição da Dilma Rousseff, em 2014. O senador teria ficado com 8 milhões de reais desse total. Além de alcançar um suposto intermediário de Renan — um motorista de seu filho, Renan Filho, atual governador de Alagoas –, os investigadores mapearam notas fiscais supostamente emitidas para serviços prestados ao senador. Uma delas refere-se a uma pesquisa do Ibope. Uma diretora da empresa chegou a admitir que o próprio Renan a avisou de que parte dos pagamentos viria da JBS. A investigação continua na PF e é mantida sob sigilo.
Se os investigadores finalmente conseguirem apanhar o senador, será uma grande reviravolta para quem vem desfrutando uma vida de benesses e facilidades, sempre à sombra do poder. Raposa felpuda da política nacional, Renan acostumou-se ao aconchego da impunidade. Deputado estadual e federal, nas décadas de 1980 e 1990, aliado do então presidente Fernando Collor, com quem rompeu na sequência, ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, senador há vários mandatos com forte influência nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, quando foi presidente do Senado, Renan é um dos políticos mais influentes do país. Símbolo do que se convencionou chamar atualmente de “velha política”, o emedebista ainda preserva o domínio quase que absoluto sobre seu estado natal, onde o primogênito é governador. Além de poder, o senador acumulou ao longo desse período uma série de acusações de envolvimento em casos de corrupção e desvios de dinheiro público. Crusoé se debruçou sobre todas as investigações, processos e menções a Renan em supostas irregularidades para entender como inacreditavelmente o político chegou a 2020 sem nunca ter sido condenado pela Justiça.
A análise minuciosa dos processos mostra que são vários os fatores que contribuíram para que ele atravessasse ileso tantas suspeitas. Como, por exemplo, a existência de falhas nas próprias investigações – a dúvida que resta, e que é praticamente impossível de ser sanada, é se foram propositais ou não. O rumoroso episódio em que o senador foi acusado pela jornalista Mônica Veloso de se valer de um lobista para pagar pensão a uma filha, fruto de um relacionamento extraconjugal, escancara como apurações mal feitas ajudaram o político. Em 2007, a jornalista assumiu que suas contas e as da filha que ela tivera com Renan eram pagas por Cláudio Gontijo, lobista da empreiteira Mendes Júnior. O caso fez Renan renunciar à presidência do Senado. O inquérito aberto pela Procuradoria-Geral da República se arrastou por seis anos, até que, em 2013, Roberto Gurgel o denunciou às pressas, em meio a mais uma disputa para a presidência do Senado. A acusação capenga resultou, em setembro de 2018, na absolvição de Renan. A pergunta que fica é: por que, mesmo com uma testemunha assumindo publicamente os recebimentos, indicando os gastos do lobista com o aluguel de sua casa e dando detalhes sobre valores, não foi possível chegar a uma condenação? Quem acompanhou de perto o processo diz que medidas básicas foram deixadas de lado no processo formal de investigação.
Outra hipótese mais do que plausível é o fato de Renan ter sempre transitado com desenvoltura pelos principais gabinetes do Judiciário, o que lhe teria conferido uma blindagem de fazer inveja a outros políticos experimentados. Há quem diga também que, acostumado a se esgueirar pelo submundo nada republicano do poder, Renan aprendeu a não deixar digitais nas operações em que atua. A famosa conversa gravada por Sérgio Machado, na qual Renan é um dos protagonistas, é emblemática de como ele seria vacinado contra investigações. Embora tenha resultado em um pedido de prisão contra ele, negado pelo STF, o diálogo não serviu para que fossem produzidas provas. “Ele é o mais safo de todos”, resume um delegado. Outra evidência da dificuldade são os inquéritos com base no acordo da Odebrecht. Todos os pagamentos delatados pelos ex-executivos da empreiteira não foram efetuados diretamente para o senador. Sempre há intermediários ou os valores são destinados a diretórios partidários.
O advogado de Renan Calheiros, Luis Henrique Machado, disse a Crusoé que seu cliente tem tido sua vida “pessoal e profissional vasculhada” pelo Ministério Público desde 2007. Ele festeja o fato de não terem sido encontradas “contas no exterior, nem offshores, muito menos transferências suspeitas”. Afirma o advogado: “A estratégia é deixá-lo sangrando, utilizando o processo penal ou para eliminá-lo da vida política desgastando a sua imagem perante o eleitorado, ou tentando buscar a condenação pelo conjunto de investigações até minar sua idoneidade e reputação perante os tribunais.” Renan não quis se manifestar. Somente ao final dos nove inquéritos ainda em andamento será possível dizer se, realmente, o senador obterá um atestado de idoneidade da Justiça.
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