Dainik Bhaskar Hindi/ FlickrGhosn foi acusado de desviar recursos da Renault-Nissan para si próprio e de fraudar sua declaração de renda

Truque de mestre

Ao empreender uma fuga fantástica do Japão, o fraudador brasileiro Carlos Ghosn chega ao Líbano e se safa da Justiça
03.01.20

O ex-presidente da Renault-Nissan, o brasileiro Carlos Ghosn, vivia em uma mansão em Tóquio, aguardando o julgamento em abril de diversos crimes imputados a ele. No Natal, um grupo musical realizou um concerto privado em sua casa. Segundo um amigo, Ghosn deixou a casa escondido dentro da caixa de um dos instrumentos. Em Osaka, pegou um jato particular e cruzou o espaço aéreo russo até Istambul. Da Turquia, embarcou em outra aeronave até pousar no Líbano, o país de sua mãe.

A fuga espetacular deixa Ghosn a salvo da rigorosa Justiça japonesa. Ele já tinha sido indiciado formalmente e teve de pagar uma fiança equivalente a 14 milhões de dólares para seguir em liberdade até o julgamento. O prognóstico não era bom. Pelas estatísticas do país, os juízes condenam os réus em 99% dos casos depois que há um indiciamento formal. “Não fugi da Justiça. Escapei da injustiça e da perseguição política”, disse Ghosn, em comunicado. Ele é acusado de ter desviado recursos da Nissan para si próprio, de ter fraudado sua declaração de renda e de ter enriquecido com operações ilícitas no Oriente Médio.

A Interpol emitiu um alerta vermelho solicitando a prisão de Ghosn, mas o efeito deve ser nulo. O Líbano não possui tratado de extradição com o Japão. O país também não extradita pessoas de nacionalidade libanesa. A regra também vale na França e no Brasil, para onde Carlos Ghosn estará livre para viajar. Ghosn tem nacionalidade brasileira porque nasceu em Guajará-Mirim, em Rondônia. É libanês porque foi viver no país aos seis anos e sua família é de lá. Também tem nacionalidade francesa porque estudou e trabalhou no país. “Como nenhuma dessas nações extradita seus nacionais, Ghosn já ganhou essa. A coisa está feita”, diz o advogado Wilson Furtado, especialista em direito internacional.

Norsk Elbilforening/FlickrNorsk Elbilforening/FlickrGhosn, quando ainda comandava a Renault-Nissan, em 2013
No Japão, o julgamento de Ghosn deve seguir mesmo sem sua presença. Com a fuga, ele também deve ser acusado de ter burlado o sistema de imigração e de justiça. Um processo poderá ser iniciado contra ele no Líbano. Essa possibilidade existe quando os crimes cometidos no exterior estão tipificados na legislação local. Além disso, o Líbano e o Japão são signatários da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, que entrou em vigor em 2005. O tratado estabelece que, quando um país decide não extraditar uma pessoa por questões de nacionalidade, um processo penal deve ser aberto. “Isso é o máximo que pode acontecer. Ainda assim, uma condenação firme é improvável, uma vez que o estado de direito do Líbano não segue as mesmas diretrizes dos países da OCDE”, diz o advogado Luis Fernando Baracho, especialista em direito internacional e professor da Universidade São Judas Tadeu, em São Paulo.

Além da Justiça libanesa não ser propriamente um exemplo, Ghosn é considerado uma personalidade admirada no Líbano. Nas semanas anteriores à fuga, cartazes nas ruas mostravam suposto apoio popular à causa do executivo. “Somos todos Carlos Ghosn”, diziam. Rumores davam conta de que Ghosn teria se encontrado com o presidente do país, Michael Aoun. A reunião não foi confirmada.

ReproduçãoCartaz que foi espalhado pelas ruas de Beirute: “Somos todos Carlos Ghosn”
Em comunicado nesta quinta-feira, 2, Ghosn afirmou que preparou sozinho sua fuga. Foi uma tentativa de inocentar todos os que o ajudaram, incluindo a sua mulher. A história é pouco plausível. Pela complexidade da operação, o mais provável é que o planejamento tenha levado semanas, com a participação de ex-agentes de forças especiais e cúmplices em vários países. O advogado de Ghosn no Japão, Junichiro Hironaka, admitiu que uma “grande empresa” pode estar envolvida.

A facilidade com que Ghosn passou pelos aeroportos de Osaka e Istambul é um indício de que ele contou com a colaboração de terceiros. Os três passaportes de Ghosn — o brasileiro, o francês e o libanês — estão guardados no cofre de seus advogados em Tóquio. Ainda assim, ele não teve qualquer problema nos departamentos de imigração. Na Turquia, nem a sua entrada nem a sua saída foram registradas. Três funcionários do aeroporto de Istambul e quatro pilotos foram interrogados. Outra hipótese para explicar como Ghosn conseguiu passar pelos controles é que ele teria um segundo passaporte francês. As investigações sobre o que de fato ocorreu ainda tomarão algum tempo. De qualquer forma, Ghosn já conseguiu o que queria.

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