MarioSabino

As minhas férias

03.01.20

No meu tempo de escola primária, a primeira redação do ano invariavelmente era sobre o tema “As minhas férias”. Como ando meio regressivo, as minhas breves férias natalinas serão também o assunto da minha primeira coluna do ano.

Fazia tempo que eu não passava o Natal e Réveillon numa praia brasileira. Ou em qualquer praia. Resolvi fazê-lo.

A praia localiza-se em Florianópolis, cidade de geografia extraordinária, com as suas ilhas cercadas pelo mar verde e ligeiramente encrespado pela brisa com jeito de vento, os seus morros de vegetação ainda luxuriante e os seus mangues que resistem pelo preço da eterna vigilância dos seus habitantes. As faixas de areia praianas são, em geral, estreitas, mas isso só aumenta a majestade marítima. Nos restaurantes à beira-mar ou um tantinho afastados, a natureza nos serve frutos do mar excepcionais, apesar dos preços salgados em demasia. Parece que também é assim na baixa estação.

Florianópolis é um encanto e sua gente, muito simpática e educada. Voltarei, espero. Fui parar na capital de Santa Catarina depois de descartar o litoral do Nordeste, por causa do óleo derramado não se sabe por quem ou o porquê, resultado costumeiro das investigações brasileiras. A praia onde fiquei se chama Jurerê. Hospedei-me na parte nomeada Jurerê Internacional, embora o acesso não requeira passaporte.

Não sabia o significado de Jurerê. De acordo com a pesquisa feita na internet, trata-se de palavra tupi-guarani para “o que se vira (gira). jerê + jerê”. Se é isso, casa-se à perfeição com o que fiz durante a minha passagem em Jurerê Internacional: virei-me, girei-me.

Antropólogos dizem que a praia é a expressão da nossa democracia. O principal deles é Roberto DaMatta. Até fizeram um documentário baseado nas suas conclusões. Intitula-se Arpoador — Praia e Democracia. Nele, Damatta diz que “ir à praia é uma espécie de ritual, pois excede ao normal e habitual com suas regras prescritas. Pois nela se vence a rotina e se produz a festa. O trabalho é trocado pelo lazer e, de certa forma, todos se igualam pela quase nudez de seus corpos e pela busca comum de diversão e descanso – a praia é um bom lugar para se pensar a sociedade como um todo”. Eu nunca mais voltei ao Arpoador carioca depois de quase terem roubado o meu relógio, mas acho que a Jurerê Internacional catarinense me fez pensar um pouco sobre a sociedade como um todo — e, consequentemente, sobre a nossa peculiar democracia. 

Acompanhado do meu caçula de 14 anos, fui ao pedaço em frente ao hotel. Aboletado na cadeira que me foi dada por um haitiano, cometi a imprudência de virar a cabeça para a direita. Havia um monte de gente fumando maconha. Sei que hoje se fuma maconha abertamente em qualquer lugar. Tudo bem. A questão é que um sujeito estava vendendo maconha retirada de uma mochila cheia da erva. Tendo a crer que se trata de tráfico de droga, mas não sei dizer se Dias Toffoli ainda acha que isso é crime. Jerê + jerê, virei o rosto para a frente e vi que novas moças haviam sido incorporadas à paisagem. Igualadas pela quasíssima nudez de seus corpos, elas se pegavam e beijavam para uma terceira que as fotografava. “Foca bem a minha bunda e vai logo porque já estou com dor no traseiro de tanto arrebitar”, disse uma das religiosas à Cartier-Bresson munida de celular.

Jerê + jerê, girei a cabeça para a esquerda, os meus ouvidos sensibilizados com o que escutavam: “Na favela, ela bota pra fudê; imagine em Jurerê…” Era o verso mais romântico do funk que um grupo de marmanjos bêbados havia colocado em 380 decibéis, calculo. Ao mesmo tempo, eles faziam comentários em 590 décibeis de fazer corar até as freiras que se exibiam à minha frente. E também não escondiam o entusiasmo explícito por meninas de 16, 17 anos a caminho do mar. Tendo a crer que se trata de pedofilia, mas igualmente não sei dizer se a Justiça ainda acha que isso é crime.

As inúmeras famílias presentes, muitas delas com filhos pequenos, faziam de conta que não viam ou ouviam o que ocorria à nossa volta. Acho que por receio de ameaçar a nossa peculiar democracia. Sugeri ao meu filho ir a uma praia autoritária. Usei o eufemismo “tranquila”. Ele gostou da ideia. Achamos uma não muito longe. Chama-se Praia da Daniela. Foi nela, aliás, que vimos passar o avião com a faixa “Lula cachaceiro, devolve o meu dinheiro”. O pessoal aplaudiu. Praia bem autoritária, mesmo. Nela, vencia a rotina de jogar frescobol, comer milho verde e fazer castelinho com as crianças — e nada de exceder ao normal e produzir festa. Até procurei saber se havia polícia de costumes ou mulheres de burquíni. Nada. Pelo jeito, o autoritarismo já está introjetado nessa gente. A novela das nove precisa fazer algo a respeito.

Jerê + jerê, fui convidado para um passeio de barco por um amigo que tem casa do outro lado da cidade. Omiti a democracia praiana e comentei como estava impressionado com a quantidade de casas luxuosas em Jurerê Internacional.

“Muitas estão à venda, reparou?”, disse ele.

“É verdade”, respondi.

“Lavagem de dinheiro.”

“Ah.”

Nas minhas próximas férias, vou tentar virar-me e girar-me menos ainda do que faço costumeiramente. Jerê menos jerê.

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