Ricardo Moraes/Folhapress

Uma carta do leitor

26.12.19
Fernando Gabeira

Sigo a Crusoé desde quando nasceu. O mesmo vale para O Antagonista. Ambos me fazem refletir sobre a revolucão digital, seus ganhos e perdas.

Nenhuma profissão foi tão atingida por ela como a de jornalista. Mas quase nenhuma delas é tão flexível e capaz de se adaptar ao novo momento como ela o foi.

Não se trata apenas de mudar do papel para o virtual, divulgar notícias rapidamente, online. O avanço digital revelou também grandes legiões inexploradas de leitores, que buscavam novas referências.

Como saber disso no passado, em que o feedback se resumia em cartas de leitores? A própria concepção do que interessa ou não, o que é ou não digno de ser impresso, também se ampliou vertiginosamente.

A Crusoé sofreu no seu primeiro ano um grande ataque contra a liberdade de imprensa. Os ministros Toffoli e Alexandre de Moraes tentaram censurá-la. Dentro dos meus limites, protestei. Fui ao ponto de pedir a demissão de Toffoli e Moraes pela gravidade de seu ato. Sei que jamais largariam o osso e que o Senado não os importunaria.

Mas é sempre bom lembrar a frase do western americano Liberty Valance: não tome liberdades com a liberdade de imprensa.

Às vezes não coincidimos sobre o governo Bolsonaro, sou muito focado na política ambiental, que é um desastre, mas creio que pertencemos a um campo que tem algo em comum: leva porrada dos dois lados.

Outro tema exasperante é a chamada guerra cultural do governo Bolsonaro. Crusoé a tratou numa dimensão política, através de um artigo de Felipe Moura Brasil, revelando com dados e documentos como funciona o gabinete de ódio no Palácio do Planalto.

No campo da cultura esse ódio é destilado de outras maneiras. Ora com uma agressão a Fernanda Montenegro, ora com afirmações estapafúrdias do tipo “o rock leva ao aborto, que leva ao satanismo”.

Há outras provocações que são ilegais, como nomear um diretor da Fundação Palmares que desconhece o que foi a escravidão no Brasil e o que ela representou para os negros.

Nesse governo, o ministro da Educação usou o dia da Proclamação da República para dizer que ela foi um golpe e exaltar a monarquia.

Essa tonelada de bobagens não é inócua. Não há projeto de modernização liberal no Brasil que suporte tão baixo nível.

Estou tocando nesses temas apenas para ampliar um pouco a conversa. Na verdade, existe um ponto em que estamos juntos: o apoio à Lava Jato.

Já não há ilusões sobre essa bandeira no governo Bolsonaro. Mas a luta continua.
Algumas pessoas na esquerda consideram a luta anticorrupção como uma nota de pé de página na história moderna do Brasil.

Não só pelos milhões de dólares recuperados, pelo terremoto político no continente, pela destruição de um poderoso esquema, a Lava Jato é um marco que define um rumo desejado por milhões de pessoas.

Cada um tem sua visão da história. Os Beatles propagavam o comunismo, Moro foi instruído pelo Departamento de Estado.

Daí a importância de um campo onde as narrativas não atropelem as evidências – uma espécie de terreno comum, onde, mesmo divergindo, as pessoas usam fatos e argumentos.

Lord Keynes disse uma vez: “Quando os fatos mudam, mudo minhas ideias. O senhor, o que faz?”. No mundo dos extremos, isso não faz sentido. Os fatos não interessam.

Fernando Gabeira é jornalista.

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