Dida Sampaio/Estadão

Depois do iceberg

26.12.19
Pedro Fernando Nery

A reforma da Previdência foi aprovada, afastando o receio de uma argentinização da economia brasileira. Sem ela, com um crescimento do gasto previdenciário de 50 bilhões de reais por ano, rumávamos para uma dívida impagável, colocando no horizonte um calote ou uma hiperinflação, passando no caminho por aumentos da carga tributária e dos juros – preço do risco dessa dívida. Com ela, esses perigos foram substancialmente reduzidos para os próximos anos, mas sozinha a reforma não promoverá forte aceleração do crescimento. No jargão: ela é condição necessária, mas não suficiente.

A diferença entre os cenários com ou sem reforma é significativa, à medida que se evita uma grande crise com sua aprovação, o que não implica dizer que voltaremos rapidamente a crescer a taxas mais robustas. Ao longo da discussão sobre a reforma, usei frequentemente a metáfora de um transatlântico para o Brasil. Um iceberg se apresentava e tínhamos que decidir se seríamos o Titanic. Uma manobra difícil tinha que ser feita, e a fizemos. A reforma assegura que não vamos naufragar, mas não nos leva ao destino final. Agora podemos continuar navegando e decidir para onde ir.

A redução na incerteza e os ganhos de confiança puderam começar a ser medidos já em julho, com a aprovação em primeiro turno na Câmara dos Deputados. O risco-país passou por sucessivas quedas e atingiu um nível historicamente baixo, compatível com a era em que tínhamos o grau de investimento (“selo de bom pagador”).

A reforma permitiu também ao Comitê de Política Monetária, o Copom, empreender reduções nas taxas básicas de juros, que contribuirão para palpáveis melhoras no consumo e no investimento. Em termos nominais, a Selic nunca esteve tão baixa.

De fato, as semanas seguintes à aprovação da reforma coincidiram com uma melhora nas expectativas para o PIB de 2020. No Sistema de Expectativas do Banco Central – Boletim Focus –, a previsão mediana para o crescimento da economia no próximo ano passou a crescer semana após semana. Trata-se uma reversão de oito meses em que o PIB esperado era sempre o mesmo ou revisto para baixo. A mediana agora está em 2,24% (era de apenas 2% em outubro).

Já a queda estrutural nos juros significa menos dinheiro entrando à procura dessa remuneração mais fácil. O dólar tenderia a ficar em um patamar mais alto: não à toa o ministro Paulo Guedes afirmara que “é bom se acostumar com o câmbio mais alto e juro mais baixo por um bom tempo”.

A reforma não acabou: após a decisão da Câmara de retirar estados e municípios, onde se encontra boa parte do desequilíbrio nos próximos anos e muitos privilégios, o Senado buscou facilitar a adesão deles à reforma por meio de uma nova PEC, a PEC Paralela. Há o temor de que, sem essa facilitação, muitos não conseguirão reformar. Em algum momento, quebrariam, trazendo a conta para a União (mais dívida).

Se é verdade que o maior desequilíbrio atuarial está no INSS – que atende muito mais famílias –, é verdade também que o desequilíbrio do regime dos servidores não é desprezível e, no caso dos estados, ameaçador. O chamado déficit atuarial (diferença entre despesas e receitas no futuro) nos estados é de quase 5 trilhões de reais. A dívida futura que esses entes contrataram com os seus servidores é muito maior do que a própria dívida que eles frequentemente renegociam com a União e, no caso de diversos estados, maior que o próprio PIB.

Além da PEC Paralela, o ajuste fiscal exige também a aprovação da chamada PEC Emergencial (apresentada pelo governo no Senado, em novembro) ou da PEC da Regra de Ouro (da Câmara). Se a reforma da Previdência foi fundamental para a consolidação fiscal em médio e longo prazo, o curto prazo ainda aperta. Por conta das regras de transição e respeito aos direitos adquiridos, a reforma tem pouco impacto nas contas do governo nos seus primeiros anos. O gasto previdenciário ainda crescerá 40 bilhões de reais na União no próximo ano. A PEC Emergencial garante o cumprimento do teto de gastos, concentrando o ajuste no funcionalismo. Vale lembrar que 2020 será o sétimo ano seguido de déficit primário (diferença entre arrecadação e gastos do governo, antes de contabilizar as receitas e pagamentos da dívida).

Um terceiro tipo de medida também é discutido pelo Congresso, buscando a sustentabilidade política do ajuste fiscal. Visando inserir uma mensagem ao conjunto de reformas, programas para reduzir a pobreza sem prejudicar o equilíbrio fiscal constam da própria PEC Paralela aprovada pelo Senado (como o benefício universal infantil) e da Agenda para o Desenvolvimento Social da Câmara. Os acontecimentos de novembro – protestos no Chile, soltura de Lula – fortalecem a tese de que a agenda reformista precisa ser conciliada com uma pauta mais fácil e simpática.

Contudo, anos pares são normalmente bem menos produtivos no Congresso Nacional, à medida que se aproximam as eleições (em 2020, municipais). A prioridade do governo não está clara, e o conjunto de propostas de sua iniciativa ainda é pouco compreendido. Muitos economistas pensam que idealmente ele deveria se reorganizar no recesso e tentar priorizar a PEC Emergencial, que traria ganhos adicionais quanto à redução de incertezas, melhora da confiança e ampliação do investimento. Agendas complexas como a reforma tributária e a reforma administrativa ficariam para depois. Sem necessidade de passar pelo Congresso, o Executivo pode continuar tocando as agendas de abertura comercial e de redução do custo do crédito (via Banco Central).

Apesar da reforma da Previdência, ainda poderemos assistir uma colisão com o iceberg e contemplar do que nos livramos: é que em dezembro assumiu Alberto Fernández na Argentina. Assumindo uma situação já difícil, em parte herdada do próprio kirchnerismo, já anunciou um calote na dívida, aumentos nas aposentadorias e congelamento de preços. O naufrágio argentino permitirá que visualizemos o que poderia ser a realidade do Brasil nos próximos anos. Que façamos uma boa viagem em 2020, depois do iceberg.

Pedro Fernando Nery é economista.

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