Sérgio Lima/ADPF

A hora dos estados

26.12.19
Erika Mialik Marena

O artigo 3º da Constituição Federal preconiza serem objetivos fundamentais da República construir uma sociedade justa, livre e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, sem desigualdades regionais e sociais, extirpar a pobreza e a marginalização e buscar a promoção do bem de todos. Tais objetivos estão diretamente relacionados à efetivação das diversas gerações de direitos fundamentais.

Não obstante múltiplos avanços da legislação, acompanhados da instalação de estruturas estatais para a realização de políticas públicas correlatas, ainda há muito trabalho a ser desenvolvido. Um pilar estrutural para o sucesso de toda e qualquer política pública é, em paralelo à transparência de gestão orçamentária, a coerção do desvio e, por óbvio, o combate de forma sistemática, permanente e coordenada à corrupção.

O Brasil teve um grande avanço no combate à corrupção nos últimos anos. No âmbito federal e quanto as investigações conduzidas pela Polícia Federal, pode-se atribuir parte desse avanço à criação de unidades especializadas de combate à corrupção em todos os estados. Tal medida possibilitou aos policiais integrantes dessas delegacias a aquisição de experiência e capacitação e, assim, maior facilidade na investigação de esquemas de desvio de verbas e pagamento de propinas.

À medida que as autoridades de investigação, persecução penal e julgamento se especializam na matéria, mais rápido os casos tendem a se desenvolver e serem concluídos, imprimindo assim maior qualidade técnica e eficiência aos procedimentos, o que também favorece o mandamento constitucional da duração razoável do processo. Exemplo claro disso é a Operação Lava Jato. Grande parte de seu reconhecimento pode ser atribuído à celeridade das investigações e à instrução dos processos e isso só pode ser alcançado devido à participação de profissionais da Polícia Federal, Ministério Público Federal e Justiça Federal oriundos de unidades especializadas e com anos de experiência em investigações relacionadas à lavagem de dinheiro e crimes complexos correlatos.

Examinando a esfera dos estados verifica-se que, infelizmente, o quadro não é o mesmo. De forma ilustrativa, em janeiro de 2019 apenas dois estados tinham unidades especializadas no combate à corrupção em suas polícias civis. Observe-se que os estados, e também cada um de seus municípios, para entregarem os serviços que os cidadãos deles esperam, precisam lidar com recursos públicos expressivos, conduzem licitações, celebram contratos e realizam pagamentos. Em todo esse universo existem muitas oportunidades para que servidores públicos e agentes políticos – de forma isolada ou em conluio com a iniciativa privada – incorram em condutas como corrupção e desvio de verbas, exatamente nos mesmos moldes dos casos descortinados em investigações no campo federal. Sabidamente as investigações envolvendo verbas estaduais cabem às polícias civis, as quais, em muitos estados, não se encontram aparelhadas para esse tipo de investigação.

A fim de estimular os estados a vislumbrarem a importância de se estruturarem para combater, de forma sistemática, a corrupção também em nível local, elegemos como projeto prioritário, neste ano, o fomento à criação e estruturação de delegacias especializadas no combate à corrupção nas polícias civis. Ao longo de todo o ano de 2019, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional manteve intenso contato com autoridades de todos os estados da federação, auxiliando aqueles que, dentro de sua autonomia, apresentaram interesse em criar suas unidades especializadas de combate à corrupção.

Uma das bases de tal projeto foi a Lei n. 13.675/2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública – SUSP. A mesma lei prescreve que um dos objetivos do Plano Nacional de Segurança Pública é fomentar ações permanentes para o combate ao crime organizado e à corrupção. Desse modo, a temática do enfrentamento à corrupção assume um papel relevante. A lei que instituiu o SUSP autoriza que, por regulamento, sejam disciplinados os critérios de aplicação dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública, viabilizando o estabelecimento de metas e resultados a serem alcançados. Neste contexto, como medida inicial do projeto de “Fomento à Criação e Estruturação de Unidades de Combate à Corrupção nas Polícias Civis”, instituiu-se como um dos critérios de rateio para a transferência de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública para os estados a criação e o efetivo funcionamento de unidades dedicadas exclusivamente ao combate à corrupção no âmbito das polícias civis.

Atualmente há 20 estados da federação com tais unidades já criadas, a grande maioria ao longo do ano de 2019. Entretanto, a mera edição de instrumento normativo por parte dos estados não é garantia de efetivo funcionamento, para o qual se mostra necessária a existência de equipes de policiais que atuem com exclusividade e em número suficiente para o enfrentamento desta modalidade delitiva.

Também essencial para o funcionamento adequado das delegacias especializadas é a existência de garantias funcionais e institucionais para proteção dos policiais ali atuantes. Não é demais lembrar a existência da Lei 12.830/2013, que prevê que o inquérito policial só pode ser redistribuído por motivo de interesse público e de forma fundamentada, e também que um delegado de polícia só está sujeito a ser removido igualmente por ato fundamentado. Nessa linha, espera-se que, no plano político, os governos estaduais prestigiem e protejam as autoridades policiais e equipes que venham a se dedicar a essas complexas investigações.

Existem exemplos de importantes investigações de desvio de verbas públicas e combate à corrupção já realizadas pelas polícias civis, de norte a sul do país. Entretanto, há um vasto espaço para que essa atuação se expanda e se aprimore, de forma a alcançar estruturas criminosas cada vez mais complexas e institucionalmente elevadas. É inegável que cabe aos estados assumir o protagonismo e, de fato, fazer com que essas estruturas especializadas operem de forma adequada e eficiente, sem ingerências políticas e com uma gestão transparente.

Uma das várias lições a serem tiradas da Operação Lava Jato é que, por mais surpreendentes que os resultados iniciais das apurações possam parecer, sempre há muito mais a ser feito no combate à corrupção, em especial em um país com as dimensões do Brasil. Os estados têm papel fundamental nessa luta, contribuindo para o fim da impunidade e concretizando os objetivos fundamentais da República previstos na Constituição Federal.

Erika Mialik Marena, delegada da Polícia Federal que integrou a primeira equipe da Lava Jato, comanda atualmente o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO