Vilmar Bannach/Photo Press/Folhapress

Racha na esquerda

Como nunca antes na história, Lula enfrenta sérias dificuldades para rearranjar a aliança de partidos que outrora sustentou o projeto hegemônico do PT
29.11.19

A mais de um interlocutor, nos últimos dias, Lula arriscou o vaticínio: “O PT retomará o protagonismo. Como o Flamengo, que era questionado, mas depois atropelou todo mundo e ganhou tudo”. O petista recorreu à analogia futebolística para fazer referência às eleições municipais de 2020 e às estratégias do partido para conquistar o maior número de capitais possíveis. Na avaliação do ex-presidente, a corrida eleitoral do próximo ano será determinante para os seus planos, e os do PT, de regressar ao poder em 2022. Eis a questão. Lula parece aquele jogador que, flagrado em trapaças, acabou condenado a tirar o time de campo. Mas graças ao beneplácito do STF responsável por derrubar a prisão em segunda instância, agora ele tenta despendurar as chuteiras e recuperar o comando da peleja, só que repetindo as mesmíssimas jogadas manjadas de sempre – achando que ninguém vai perceber o seu esquema de jogo. Não tem mais bobo na arena política, se é que houve algum dia. Bastaram as negociações preliminares, deflagradas desde a saída de Lula da cadeia, para que os partidos com os quais o PT busca construir alianças e erigir palanques já entendessem que, de novo, e mais uma vez, o objetivo da legenda da estrela rubra é se constituir como partido hegemônico. Assim, a persistir a tentativa de reedição do projeto personalista de poder, sob a orientação de Lula, o que se desenha na refrega municipal de 2020 é o isolamento do PT e um consequente racha histórico na esquerda.

Apenas representantes do PCdoB e do PSOL compareceram ao 7º Congresso do PT, no qual Gleisi Hoffmann, reeleita presidente do partido, falou em “hegemonia democrática”, defendeu o “protagonismo do PT nas eleições 2020” e exortou a militância a se preparar para ajudar a “conduzir as grandes manifestações” tão logo elas “ecoarem” pelo Brasil. A ausência de líderes dos demais partidos foi mais do que um mero recado. Legendas acostumadas a orbitar em torno do PT e de Lula ensaiam independência. Se a realidade regional impuser uma convivência sobre o palanque, as siglas não vão mais aceitar ficar a reboque dos interesses petistas. Até 2018, decisões que envolviam desde os nomes escolhidos para encabeçar a chapa, com quem eles deveriam se aliar, como gastar a verba eleitoral e até quais políticos mereceriam destaque no horário eleitoral eram do PT de maneira vertical — e normalmente com pouca ou nenhuma contestação.  Lula quer repetir a dose. Planeja que o PT lance candidaturas a granel, seja o mentor das alianças, defina o destino do Fundo Eleitoral e utilize o espaço de rádio e TV para fazer a defesa da sigla e do que chamou de “legado de seus governos”. A julgar pelo estado de ânimo dos líderes partidários, os desejos acalentados por Lula não passarão de sonho.

Dirigentes de PSB e PDT, e mesmo alguns expoentes do PSOL e do PCdoB, rejeitam a condição de “linha auxiliar” do lulopetismo. Se a corda for esticada, com a manutenção do discurso do PT, as composições para 2020 correrão risco. “Temos que construir uma alternativa que saia do ódio. Ódio mais ódio só multiplicação do ódio, não é como negativo com negativo que dá positivo. A gente tem que começar a pensar no Brasil”, declarou o presidente do PDT, o notório Carlos Lupi, após encontro com Carlos Siqueira, do PSB. Indagado se as circunstâncias regionais poderiam inviabilizar os planos nacionais do seu partido, Lupi respondeu: “A paróquia não pode ser maior que a matriz, então todas as questões paroquiais têm que ser resolvidas em nome da matriz”. “Não podemos aceitar de forma alguma o hegemonismo que o PT quer instalar”, entoou recentemente o líder do PDT na Câmara, André Figueiredo. “O PT cumpre um modus operandi próprio. O PDT, PCdoB e PSB têm outro”, arrematou.

Renato S. Cerqueira/Futura Press/FolhapressRenato S. Cerqueira/Futura Press/FolhapressCiro Gomes: o eterno presidenciável acredita que é possível disputar o espaço do PT
A dupla do PDT ecoa o eterno presidenciável Ciro Gomes, um pote até aqui de mágoas com o PT desde as eleições de 2018, quando se disse “miseravelmente traído” por Lula e seus “asseclas”. De acordo com aliados do pedetista, Ciro não sossegará enquanto não colocar em marcha a lei de Talião. Para ele, agora, é “olho por olho, dente por dente”.  “Se Lula me ligar, é evidente que vou atender. Mas a conversa terá de ser com testemunha, porque perdi a confiança nele”, afirmou Ciro na última semana. Um gesto de boa vontade para atenuar a cizânia seria o PT hipotecar apoio à legenda em Fortaleza, cidade administrada pelo PDT. Mas os petistas planejam lançar candidatura própria. Diante do cenário nada amistoso, em recente reunião, o político cearense desabafou. Para além de tentar isolar o PT, ele revelou que um dos seus objetivos para as eleições do próximo ano é quebrar a hegemonia do petismo no Nordeste, região influenciada também por ele. Ciro quer ser o nome da esquerda para o Planalto em 2022 e, por isso também, enfraquecer Lula é do seu interesse.

Para se dissociar de um projeto que, na avaliação de seus dirigentes, parece condenado ao fracasso, o PSB também resolveu falar grosso com o PT. Na conferência nacional do partido, iniciada na quinta-feira, 28, o PSB lançou um documento denominado “Projeto de Autorreforma: Brasil, um passo adiante”. No texto, teceu críticas ao Partido dos Trabalhadores. Afirmou ser “preciso identificar os erros produzidos pela esquerda, especialmente pelo PT” e classificou de “tragédia” o fato de a esquerda, ao chegar ao poder, ter levado “para o núcleo duro de seus governos não os parceiros de empreitada da construção da democracia, mas o PMDB e agremiações que hoje estão no centrão”.

Em sintonia com esse espírito, a ordem no PSB é tratar as alianças com partidos de esquerda para 2020 como algo pontual. As situações serão analisadas caso a caso. Ou seja, o PT não terá mais prioridade. “Não será mais um processo orgânico”, ressalta o deputado federal Júlio Delgado. O parlamentar é o candidato natural do PSB à Prefeitura de Belo Horizonte, mas uma coligação com o PT e o PSOL na cidade está praticamente descartada. No Rio, o PSB também arriscará voo solo com a candidatura do deputado federal Alessandro Molon. Com isso, a legenda ficará fora do palanque idealizado pelo PT para robustecer a candidatura de Marcelo Freixo, do PSOL. Nem mesmo a dobradinha PT-PSOL por Freixo está mais assegurada. Até semana passada, a composição era considerada pelo PT como líquida e certa. No entanto, o presidente do partido no Rio, Washington Quaquá, ameaça abandonar a aliança e lançar uma candidatura própria encabeçada pela ex-governadora Benedita da Silva, hoje deputada federal, porque ela representaria, segundo ele, “a defesa do legado de Lula”. O próprio Lula acalenta a ideia e já mencionou o nome de Benedita publicamente nos últimos dias. O PSOL não gostou. O caldeirão entre os partidos coirmãos já havia fervido em agosto, durante evento da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no Rio, quando Cid Benjamin, do PSOL, teria vetado um pronunciamento da petista. “Além de uma indelicadeza, foi um desrespeito com uma figura icônica do povo brasileiro, que é a Benedita. Não vamos entrar numa aliança onde uns acham que são mais que outros”, disparou Quaquá. Coube ao ex-deputado Wadih Damous respondê-lo via redes sociais. “Se o PT terá candidatura própria ou vai integrar uma frente de esquerda é decisão que cabe à militância e não a quem se acha dono do partido ou a pseudas (sic) personalidades partidárias”. O ambiente está conflagrado.

Bruno Poletti/FolhapressBruno Poletti/FolhapressCarlos Siqueira, presidente do PSB: em busca de novas alianças
Em São Paulo, capital mais estratégica do País, a almejada união da esquerda não terá vez no primeiro turno. Nesta etapa do pleito, cada agremiação pretende correr por si. Mostrando que não aprendeu nada com as últimas derrotas na cidade, de novo o PT insiste em encabeçar a chapa na corrida à prefeitura. Ex-ministro da Justiça de Dilma Rousseff, José Eduardo Cardozo seria o mais cotado para assumir o posto de candidato, mas há quem diga no partido que ele próprio opõe resistência. Correm por fora os deputados Carlos Zarattini, Paulo Teixeira, Jilmar Tatto e até o vereador Eduardo Suplicy. Fernando Haddad também pode ser o candidato petista, até para verificar a viabilidade para ser novamente o postulante ao Planalto, em 2022, caso Lula não tenha suas condenações anuladas. Enquanto os petistas não se definem, PSB, PSOL e PCdoB já escalaram seus candidatos. O PSB vai de Márcio França, o PSOL provavelmente com a deputada Sâmia Bomfim e o PCdoB, com Orlando Silva. Parceiro tradicional do PT, o partido do ex-ministro do Esporte, inclusive, já adiantou que, com a nova regra proibindo a formação de coligações nas eleições proporcionais ao Legislativo, o PCdoB será forçado a lançar, por uma questão de sobrevivência, o maior número de candidatos próprios possíveis – o que contribui para aprofundar o racha na esquerda no primeiro turno do pleito municipal.

Na verdade, a postura de Lula, não só agora, recém-saído da cadeia, mas desde que alcançou o poder, jamais ajudou a oxigenar o ambiente político. O ex-presidente se acostumou com o papel de morubixaba da esquerda e, como se fosse onipresente e fonte da quintessência da sapiência política, evitou construir lideranças capazes de substituí-lo. No jogo nada amistoso das alianças, subjugou aliados e relegou ao sereno político quem não se submetesse aos seus desígnios. Não raro, encarnou o sermão de Santo Agostinho segundo o qual “Roma locuta, causa finita”, com ele mesmo, Lula, assumindo o papel de Roma, algo como “se Lula falou, caso encerrado”. A realidade agora é outra. Por mais que Lula ainda seja o principal nome da esquerda, não se justifica mais para as principais siglas de esquerda um “amém” incondicional. “Seria contrariar o que dizem as ruas. Hoje o antipetismo é muito forte. Basta dar uma volta pelo país”, disse a Crusoé um dirigente do PSB.

A retórica cáustica do ex-presidente tem apavorado até mesmo petistas acostumados aos ditames do comissário Zé Dirceu. Hoje, participam das costuras em favor das alianças municipais do PT a ex-senadora Ideli Salvatti, as ex-ministras Miriam Belchior (Planejamento) e Márcia Lopes (Desenvolvimento e Combate à Fome) e o ex-assessor da Casa Civil Vicente Trevas. “Se não conseguimos abrir portas, que abramos janelas”, afirma um integrante do grupo que discorda da política de portas cerradas de Lula. Acontece que o tempo passou na janela, o PT até viu, mas nascido com a vocação para o hegemonismo, a legenda segue irremediavelmente prisioneira de suas raízes. O plano do PT sempre foi reproduzir uma visão antiquada do socialismo e moldá-la com a etiqueta do século XXI, a partir do controle da máquina estatal no sentido mais amplo. Uma espécie de projeto de “ditadura perfeita”, como Mario Vargas Llosa se referia ao Partido Revolucionário Institucional, o mexicano PRI, só que na versão brasileira.  A Lava Jato frustrou o que o PT quer outra vez pavimentar. No que depender de PSB, do PDT e até de alguns líderes do PSOL e PCdoB, ao menos isso não se dará mais com os préstimos deles. A ver.

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