Alfredo Brant/Divulgação"A polarização da política faz o combate à corrupção perder espaço. Do lado da esquerda, o tema é um grande tabu"

‘O sistema deixa a elite impune’

Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional, diz que o Judiciário neutraliza os esforços contra a corrupção e rebate as acusações feitas por Gilmar Mendes à instituição
29.11.19

O economista Bruno Brandão é o diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil. No início de novembro, a organização, que tem sede em Berlim e presença em 130 países, foi alvo de ataques venenosos do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento que mudou o entendimento da corte sobre as prisões após condenação em segunda instância.

Dias antes, a Transparência havia publicado um relatório sobre os retrocessos da luta contra a corrupção. Mendes acusou os membros da entidade de “desvirtuamento ético”, por atuar “como verdadeira cúmplice da força-tarefa da Lava Jato nos abusos perpetrados no modelo de justiça criminal brasileira”, o que os impediria de fazer “qualquer avaliação séria do combate à corrupção no Brasil”. Como resposta, o comando da organização publicou uma nota lamentando as “inverdades e ilações irresponsáveis” do ministro.

Para Bruno Brandão, que também é mestre em gestão pública e em relações internacionais, há motivos de preocupação com as decisões do Judiciário que afetam o combate à corrupção. O remédio, diz, pode estar no Legislativo. “O Congresso é o espaço mais legitimado para o debate e aprovação das reformas tão necessárias que farão com que o país olhe para frente na luta contra a corrupção”, defende. A seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu a Crusoé.

Os brasileiros foram às ruas pedir o impeachment de dois ministros do Supremo, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Como o sr. vê esses protestos?
Vejo como um protesto legítimo, assim como pode ser legítimo o remédio de impeachment de ministro do STF. Nossa Constituição Federal garante à sociedade as liberdades de expressão, de reunião e de associação, assim como prevê ao Senado a competência de processar e julgar ministros do Supremo. Agora, uma medida como essa não deve jamais ser banalizada, especialmente em tempos de disparates autoritários como o que vivemos. Em primeiro lugar, um impeachment não se justifica pela simples discordância de decisões dos juízes. A lei condiciona esse remédio a casos de crime de responsabilidade. Em segundo lugar, é necessária muita cautela com o viés autoritário que vem imbuído nesse debate, pois não são poucos os que desejam a solução do “cabo e do soldado”. Se formos por aí, certamente terminaremos em situação muito pior do que a que estamos.

Gilmar Mendes atacou a Transparência Internacional após a divulgação de um relatório sobre a corrupção no Brasil. Qual é a razão do incômodo?
Não deve ser coincidência que, na semana anterior, publicamos um relatório apontando os retrocessos nos marcos legais e institucionais na luta anticorrupção no Brasil. O documento foi crítico a ações no âmbito dos três poderes e não deixou de apontar decisões de alguns ministros do STF. Elas vão na contramão dos compromissos internacionais assumidos pelo país. Uma delas foi considerada ilegal pela Procuradoria-Geral da República. Exemplos do que criticamos foram a decisão do ministro Toffoli que praticamente paralisou por meses o sistema brasileiro contra lavagem de dinheiro, e o chamado “inquérito do fim do mundo”, que foi utilizado, entre outras ações autoritárias, para censurar a Crusoé. Esse inquérito continua em curso. É uma das passagens mais arbitrárias da história do tribunal constitucional brasileiro.

Alfredo Brant/DivulgaçãoAlfredo Brant/Divulgação“A América Latina é a região que mais concentra a criminalidade organizada”
A Transparência Internacional atua em 130 países. É comum vocês sofrerem ataques como esse, de um magistrado de Suprema Corte?
Estamos acostumados a ser objeto de calúnias, ameaças e, infelizmente, até mesmo retaliações violentas como reação ao nosso trabalho. E é natural que a Transparência incomode mais onde esteja cumprindo mais a sua missão. Agora, não há dúvida de que todos os alertas se acendem quando, em um contexto de crescente hostilidade às organizações da sociedade civil no Brasil, um ataque venha agora não mais de um agente político, mas de um membro do tribunal constitucional.

A Transparência alertou para o risco de o movimento para conter a Lava Jato aqui no Brasil ter impacto para além das nossas fronteiras, particularmente na América Latina.
Os países da América Latina têm hoje os níveis mais altos do mundo em matéria de mobilização social em relação ao problema da corrupção. Esse é um dado positivo como força transformadora, mas ao mesmo é preocupante porque é crescente na região a desconfiança quanto ao próprio regime democrático. Nesse contexto, torna-se essencial a atuação eficaz e equilibrada das instituições, para que deem resposta adequada à profunda e justificada indignação popular em relação à corrupção. Aliada ao risco de corrosão da democracia, está a questão da segurança internacional, pois a América Latina é também a região no mundo que mais concentra a criminalidade organizada, visceralmente ligada à corrupção.

O ministro disse que é “chocante” a acusação da OCDE, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, de que a lei de abuso de autoridade fragiliza o combate à corrupção. Qual é a opinião da Transparência?
Nem a OCDE nem a Transparência Internacional são contrárias a legislações de abuso de autoridade. O que nós criticamos foram os problemas do texto que se originou da proposta do senador Renan Calheiros e que o Congresso aprovou sem debater com especialistas e a sociedade. O Brasil sofre com um problema grave de abuso de autoridade em todas as instâncias e isso precisa ser tratado. Tanto reconhecemos isso que no pacote das Novas Medidas contra a Corrupção, que ajudamos a compilar, incluímos um projeto de lei de abuso de autoridade redigido e revisado por especialistas e que passou por consulta popular.

Quais são os problemas que se originaram da proposta do senador Renan Calheiros?
Há um risco substancial de a lei ser utilizada contra investigadores e julgadores que atuam dentro dos limites de suas atribuições. Além disso, também deve ser levado em conta um efeito dissuasório, que poderá diminuir a quantidade de investigações sobre esquemas de corrupção.

O ministro também mencionou um acordo firmado por procuradores com a J&F pelo qual a Transparência ficaria responsável pela gestão dos recursos provenientes de uma multa aplicada à companhia. Isso procede?
Totalmente improcedente. Esse acordo foi assinado com o máximo de transparência e o documento está acessível para qualquer cidadão conhecer a natureza das contribuições da Transparência. Jamais pretendemos gerir esses recursos e sim oferecer, sem qualquer remuneração, recomendações e monitoramento independente, a fim de garantir os melhores padrões internacionais de governança e eficácia na aplicação dos recursos da multa imposta à J&F.

O ministro Gilmar falou ainda de um acordo entre o MPF do Paraná com a Petrobras, com participação da Transparência, para criar o que ele chamou de Fundação Dallagnol. Faz sentido?
Outra vez, uma deturpação. O MPF não indicou a Transparência. O que ele fez foi nos consultar formalmente, assim como a outras entidades, solicitando a indicação de organizações idôneas e com conhecimento técnico para compor um comitê de curadoria social. Ao contrário também do que o ministro fez entender, esse comitê não ficaria responsável pela gestão e destinação do recurso. Sua função seria limitada a supervisionar o processo de constituição da fundação, pois não havia qualquer referência prévia para um caso como esse e era importante que entidades com credibilidade e que conhecessem o tema acompanhassem o processo. Esse comitê serviria também para apresentar críticas, o que foi feito.

LuisMacedo/DivulgaçãoLuisMacedo/Divulgação“Para o pobre, a realidade é a instância zero”
Como a Transparência se posiciona quanto à decisão do STF de proibir a prisão após a condenação em segunda instância?
A Transparência não se posiciona contra a decisão do STF porque respeitamos a competência do tribunal para a interpretação constitucional e reconhecemos a complexidade do debate. O que apontamos é que o país precisa enfrentar — de preferência no Poder Legislativo, mais legitimado para a função — a situação gravíssima de seu sistema judicial, que não executa sentenças quando o réu pode litigar indefinidamente, seja ele um indivíduo abastado, uma corporação ou o próprio estado. Estamos muito focados na dimensão criminal pela personalização do debate em torno do Lula. Contudo, esse é o mesmo sistema que não executa dívidas trabalhistas, que não paga precatórios e que deixa centenas de famílias esperando indenização por 25 anos por um prédio que desabou por ser construído com areia de praia por um deputado corrupto. É um sistema que pune indiscriminadamente na base, mas que deixa a elite impune e inadimplente.

Qual é a regra em outros países democráticos? Eles também exigem a execução da sentença após trânsito em julgado?
Varia muito. Há países em que se executa a sentença já em decisões de primeira instância, como é o caso dos Estados Unidos, onde em geral a apelação ocorre com a sentença já em execução. Outros, como a Alemanha, exigem o trânsito em julgado, mas o sistema não permite infindáveis recursos e são raríssimos os casos que alcançam a instância máxima. Aqui no Brasil temos a pior combinação: um sistema recursal irracionalmente protelatório e uma escala de instâncias extremamente permeável. Isso só funciona, obviamente, para o rico. Para o pobre, a realidade é a instância zero.

A Câmara e o Senado estão corretos em avançar com projetos para estabelecer a prisão em segunda instância?
Sem dúvida. O Congresso é o espaço mais legitimado para o debate e aprovação das reformas tão necessárias que farão com que o país olhe para frente na luta contra a corrupção. A sociedade já deu subsídios para um debate qualificado. Cabe agora aos nossos representantes eleitos fazerem sua parte.

Lula deveria voltar para a prisão?
Deve voltar para a prisão se assim a lei e a Justiça determinarem. Quanto mais personalizarmos o debate público sobre a corrupção, menos atenção daremos para a melhoria das nossas instituições e nossa política nunca superará o caudilhismo populista, de um lado ou de outro.

O ministro Dias Toffoli desistiu de acessar dados sigilosos de 600 mil pessoas. O que isso significa?
Significa um movimento de autocontenção importantíssimo que faz bem à instituição que ele preside. Também é um sinal de que o debate e a crítica, desde que pacíficos, são essenciais não apenas para a luta contra a corrupção, mas para a vitalidade da nossa democracia.

Por que a direita tem monopolizado a defesa da luta anticorrupção?
A polarização da política faz o combate à corrupção perder espaço. Do lado da esquerda, o tema é um grande tabu. Esse setor da sociedade, que historicamente defendeu a luta contra a corrupção, afastou-se da causa e tornou-se incrivelmente tolerante à impunidade. No outro lado, surgiu um campo político que capturou o discurso anticorrupção, associando-o a um discurso de ódio, de intolerância, de violação de direitos e de autoritarismo. O desafio que se coloca, portanto, é encontrar um campo de legitimidade para tratar da luta anticorrupção de maneira séria, buscando soluções para suas causas estruturais.

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